Sociedade

Entrei na Ciências Sociais da USP em 1972. O clima era barra pesada. Sensação de medo, os corredores cheios de tiras. As paredes tinham ouvidos. Manifestações públicas, dentro ou fora do campus, nem pensar

Entrei na Ciências Sociais da USP em 1972. O clima era barra pesada. Sensação de medo, os corredores cheios de tiras. As paredes tinham ouvidos. Manifestações públicas, dentro ou fora do campus, nem pensar. Os "veteranos" estavam marcados pelas histórias das muitas prisões ocorridas no ano anterior: a mais terrível delas a de um colega preso pela Oban em plena sala de aula. Mas também havia muita expectativa: não era pouca coisa estar na USP, no curso de Ciências Sociais. Apesar da sensação de estar vivendo "o fim do poço", desde o início pudemos sentir também os efeitos do que depois eu vim a identificar como uma característica bastante especial da universidade brasileira em tempos de ditadura: ela não foi destruída na mesma medida em que o foram as universidades no Chile, Argentina ou Uruguai.

Na Ciências Sociais isso era muito concreto: não tínhamos mais o Florestan Fernandes, o Octavio Ianni, o Fernando Henrique (naquela época ele não era o FHC) dando aulas, ainda que eles continuassem sendo muito importantes na memória da escola como professores comprometidos, de esquerda, marxistas, que haviam participado junto com os estudantes nas lutas de 68. Mas havia toda uma nova geração de professores, excelentes, e que, de certa forma, "continuavam a luta". E isso foi fundamental para manter a qualidade do ensino, e para que a USP se transformasse, naqueles anos, numa verdadeira "aldeia gaulesa" de resistência à ditadura.

Nós, o grupo de "calouros"de 1972, não perdemos tempo. Estudávamos, e muito. Sofremos algumas torturas, como tentar entender um texto do Marcuse falando do Hegel, logo de entrada. Passávamos horas quebrando a cabeça, lendo e relendo, tentando decifrar dois ou três parágrafos. Mas aquilo era muito estimulante. Um mundo novo se abria. Além de tentar descobrir o que era a sociologia, queríamos sempre saber quem, entre os professores, era "realmente marxista" e o que seria fazer uma sociologia comprometida com o país, com o povo (daí vinham as inumeráveis discussões sobre a "função do sociólogo"). Também nos divertíamos, e muito: festas, chopadas, grupos de teatro.

Segundo semestre: preparação das eleições do Ceupes (o centro acadêmico das Ciências Sociais). Quase todos os diretores eleitos no final de 1971 haviam sido presos. Começamos a participar do processo eleitoral. Queríamos dar a nossa contribuição para sair daquele "fundo do poço". Tínhamos na cabeça a referência do movimento estudantil de 68 (os nossos "irmãos mais velhos") e a clara consciência de que ele havia sido destruído. Queríamos "reconstruir o movimento em outras bases".

Identificávamo-nos com a resistência de esquerda, mas tínhamos uma idéia muito clara de que "o trabalho de massa" era o único caminho possível para ampliá-la. Isso significava fazer algo que pudesse aproximar a entidade do "conjunto dos estudantes". Não dava para ficar só denunciando as prisões. Isso era necessário, mas não poderia ser, naquele momento, a atuação central do centro acadêmico. A primeira vez que assisti o pessoal do Ceupes entrando na classe para denunciar as prisões de colegas, tive a sensação de que, da maneira como aquilo era feito, parecia aumentar o medo e a impotência. Daí surgiram as propostas de tentar mexer também com a questão do ensino, do papel do sociólogo, organizar cineclube, grupo de mural. E lá viramos nós diretores do Ceupes.

Depois veio o plebiscito do ensino pago, em resposta à acusação do então ministro da Educação, coronel Jarbas Passarinho, que havia afirmado que a luta contra o ensino pago era resultado de "uma aliança entre ricos e comunistas". A grande maioria dos estudantes que votou no plebiscito apoiou a posição dos centros acadêmicos em defesa do ensino público e gratuito.

De repente 1973: nossa primeira grande "tarefa" como diretoria do Ceupes era organizar a recepção aos calouros. Fim da primeira semana de aula, sábado à tarde, chopada nos barracos. Chega o Bombom, um amigo da Geologia, agitado, assustado: "O Minhoca caiu, e tenho certeza de que ele não vai abrir". Minhoca era o estudante da Geologia Alexandre Vanucchi Leme. Aquilo me assustou. Meio da semana seguinte: estávamos fazendo, à noite, uma reunião de avaliação da semana dos calouros na casa de uma colega. De repente, agitadíssimos, chegam dois amigos da Geologia: "Mataram o Minhoca". Tinha acabado de sair a maldita notícia. No rádio, acho.

Perplexidade total. Esse, a gente conhecia de perto. Esse não estava na clandestinidade (nas semanas anteriores, vários outras pessoas tinham sido assassinadas pela ditadura, na tortura ou no meio da rua). O que fazer? Lembro, como se fosse hoje, da discussão: difícil, tensa (tínhamos, todos, 20 anos ou menos). Havia duas posições. A primeira: não podemos fazer nada; agir agora será dar um pretexto para que a repressão caia mais ainda em cima da gente (ela é muito forte, nós somos muito fracos). A segunda: nada disso, temos que fazer alguma coisa, porque se a gente ficar parado, quieto, aí que eles vão cair em cima cada vez mais. Lembro-me claramente do Bino e do Armando defendendo esta segunda posição.

Saímos de lá sem saber o que fazer. Era tarde, a gente andando, na escuridão, aqueles três ou quatro quarteirões da casa em que estávamos até a avenida Faria Lima. Eu tinha a nítida sensação de que a qualquer momento apareceria um camburão da Oban para nos prender. Insegurança total, desamparo. Fomos até a casa de um amigo da Poli, tentar juntar mais gente para saber o que fazer: os amigos um pouco mais velhos, com um pouco mais de experiência, o pessoal do XI de Agosto, que eram aprendizes de advogado. Os advogados eram figuras importantíssimas na época (os "do bem", é claro): sabiam entender mais a repressão, davam uma certa sensação de proteção naquele contexto de imenso desamparo. Mas enfim, naquela noite de março de 1973, acabamos indo todos para minha casa, pedir a opinião do meu pai, pedir que ele nos ajudasse a pensar (já nos sentíamos muito responsáveis pelo que iria acontecer no dia seguinte na universidade). Porque ele era de esquerda, mais experiente, e jornalista.

Os jornalistas também eram muito especiais na época. Supunha-se que, no meio de toda aquela desinformação provocada pela censura, eles tinham um pouco mais de informação, que nos poderiam ajudar a decidir o que fazer. Mas acho também que, além de todas essas razões, fomos conversar com ele aquela noite porque a sensação de pequenez e desamparo era tão forte, que precisávamos mesmo ter uma figura de pai por perto. Ele e a minha mãe foram acordados e ficamos lá conversando por bastante tempo. Não me lembro o que concluímos. Lembro que cheguei na USP no dia seguinte com a mesma dúvida: o que fazer? Mas logo de manhã tivemos a resposta. Sem muita análise, o pessoal da sala do Alexandre, ao chegar na escola pela manhã e receber a notícia, resolveu interromper as aulas e se declarar em assembléia permanente. O conjunto da escola aderiu imediatamente. O que tinha acontecido era inaceitável. O Minhoca era um cara muito querido. A indignação venceu o medo. Isso deu o rumo para todos nós. Assembléias gerais nas escolas, decretação de luto na universidade. Era uma sexta-feira. Pusemos faixas negras nos prédios em sinal de luto. No dia seguinte todas haviam sido retiradas pela repressão. Aí veio a idéia (que também nos parecia inexeqüível, num primeiro momento) de pedir para o D. Paulo Evaristo Arns rezar uma missa na Catedral da Sé. Parecia inexeqüível porque pouco tempo antes ele havia se recusado a rezar uma missa pelo Otavinho, um assassino da Oban que havia sido "justiçado" por alguma organização de esquerda. E o Alexandre era apresentado pelos jornais como um "perigoso terrorista da ALN". As negociações duraram vários dias. Até que o D. Paulo, num imenso ato de coragem e dignidade, aceitou rezar a missa. Que foi celebrada na sexta-feira, pleno 30 de março, um dia antes do 9º aniversário do golpe de 1964.

Duas canções
Os agentes da Oban filmando ostensivamente, por segundos ou minutos que pareciam eternos, a cara de cada um de nós. Presente o tempo todo a sensação de que a polícia poderia cercar a igreja. Sérgio Ricardo cantando Calabouço: Edson Luís em 68, Alexandre Vanucchi Leme em 1973. Tenuamente começávamos a refazer os fios de uma história que havia sido cortada, brutalmente interrompida. O texto da missa falava do "nosso irmão Alexandre, morto misteriosamente", reivindicando o seu exemplo de luta ("para que as suas vida e morte não tenham sido em vão"), questionando duplamente a versão da ditadura: de que Alexandre era um "perigoso terrorista", e de que ele havia morrido atropelado por um caminhão numa tentativa de fuga ao receber a ordem de prisão. Pode parecer pouco hoje, mas naquele momento tratava-se de uma disputa simbólica, pela linguagem, pelas versões da história, que era de importância crucial.

A polícia estava lá fora. Ninguém sabia direito o que fazer. Para todos nós aquilo era inédito. Os padres oficiantes recomendavam insistentemente pelo microfone que todos saíssem em grupos, ordenadamente. De repente, eles começaram a cantar a música de Geraldo Vandré, "Caminhando e cantando e seguindo a canção...". Além de muito emocionante, foi realmente uma saída muito inteligente. E inaugurou outro símbolo, outro código, que nos serviria muito, muitas vezes mais. Apesar disso, vários estudantes foram presos na saída da missa.

Na segunda-feira seguinte a USP não era mais a mesma. Era um pouco melhor. Todos nós éramos um pouco melhores. E um pouquinho mais fortes. Não há nenhuma dúvida de que o Bino e o Armando tinham toda razão na discussão daquela noite.

Laís Abramo é socióloga e foi militante do movimento estudantil nos anos 70.