Nacional

A vitoria eleitoral de FHC foi obtida de maneira completamente artificial. Em seu segundo mandato, ele se torna um presidente sem legitimidade

"Este ceticismo em relação à política é mais profundo e amplo do que qualquer resistência natural a propostas para mudanças sociais e econômicas. Talvez sua manifestação mais extrema seja a negação pós-moderna de que haja alguma estrutura para o presente ou algum modo de organizar o futuro."
David Miliband, em Reiventando a esquerda

I
Não vou, aqui, fazer o balanço dos nossos "erros" e "acertos" na campanha. Este é um processo que exige – pelo menos para mim – uma madura e fraterna reflexão coletiva que certamente faremos ao longo deste ano. Pretendo com a presente avaliação, escrita logo após a publicação dos resultados que apontam FHC como eleito no primeiro turno, contribuir para propor alguns eixos temáticos para o debate.

Todos estes temas, suponho, têm certa importância teórica e serão capazes de ajudar a discussão no próximo período. Nele o Partido dos Trabalhadores estará se defrontando, para superá-los, com as perguntas que ficaram transparentes ao longo da conjuntura eleitoral: nosso destino, a médio prazo, será o de ser uma oposição que aguarda melhores momentos para o ascenso da luta socialista "estratégica" ou seremos, logo, um "partido de governo" para dirigir reformas sociais e políticas de caráter socializante e democrático? Somos um partido para, a partir da gestão do Estado, impulsionar transformações de caráter distributivo, que incidem desde logo sobre a vida cotidiana das pessoas, ou somos um partido que espera melhores "condições internacionais" para ascender ao poder?

Neste texto procuro enfocar a luta eleitoral como um dos momentos importantes da reconstituição estratégica do projeto da esquerda socialista, no âmbito das limitações que nos são impostas pela hegemonia neoliberal. Na verdade, é uma hegemonia que está em descenso, mas, como contraponto problemático para quem ainda não desistiu do socialismo, carregamos os ônus políticos do desgaste social e moral, causado pela perversão estatista-ditatorial dos modelos direta ou indiretamente vinculados às experiências do Leste. Cada momento da disputa política, portanto, estará sempre carregado dos enigmas originários desta crise, que nem toda a esquerda quer resolver ou mesmo conseguiu desvendar.

Este roteiro de análise não considera as limitações "objetivas" da campanha, tais como a brutal insuficiência de recursos (que certamente despotencializou a política da União do Povo) e mesmo uma certa divisão no próprio partido quanto à política de alianças, que atrasou a integração da militância nas mobilizações eleitorais de base. No texto abordamos apenas o quadro político e econômico mais geral, no qual a campanha se inscreveu, para verificar como nos movemos numa situação profundamente adversa, mas que, mesmo assim, alterou favoravelmente para nós a correlação de forças no próximo período da luta de classes no país.

"Este ceticismo em relação à política é mais profundo e amplo do que qualquer resistência natural a propostas para mudanças sociais e econômicas. Talvez sua manifestação mais extrema seja a negação pós-moderna de que haja alguma estrutura para o presente ou algum modo de organizar o futuro."
David Miliband, em Reiventando a esquerda

I
Não vou, aqui, fazer o balanço dos nossos "erros" e "acertos" na campanha. Este é um processo que exige – pelo menos para mim – uma madura e fraterna reflexão coletiva que certamente faremos ao longo deste ano. Pretendo com a presente avaliação, escrita logo após a publicação dos resultados que apontam FHC como eleito no primeiro turno, contribuir para propor alguns eixos temáticos para o debate.

Todos estes temas, suponho, têm certa importância teórica e serão capazes de ajudar a discussão no próximo período. Nele o Partido dos Trabalhadores estará se defrontando, para superá-los, com as perguntas que ficaram transparentes ao longo da conjuntura eleitoral: nosso destino, a médio prazo, será o de ser uma oposição que aguarda melhores momentos para o ascenso da luta socialista "estratégica" ou seremos, logo, um "partido de governo" para dirigir reformas sociais e políticas de caráter socializante e democrático? Somos um partido para, a partir da gestão do Estado, impulsionar transformações de caráter distributivo, que incidem desde logo sobre a vida cotidiana das pessoas, ou somos um partido que espera melhores "condições internacionais" para ascender ao poder?

Neste texto procuro enfocar a luta eleitoral como um dos momentos importantes da reconstituição estratégica do projeto da esquerda socialista, no âmbito das limitações que nos são impostas pela hegemonia neoliberal. Na verdade, é uma hegemonia que está em descenso, mas, como contraponto problemático para quem ainda não desistiu do socialismo, carregamos os ônus políticos do desgaste social e moral, causado pela perversão estatista-ditatorial dos modelos direta ou indiretamente vinculados às experiências do Leste. Cada momento da disputa política, portanto, estará sempre carregado dos enigmas originários desta crise, que nem toda a esquerda quer resolver ou mesmo conseguiu desvendar.

Este roteiro de análise não considera as limitações "objetivas" da campanha, tais como a brutal insuficiência de recursos (que certamente despotencializou a política da União do Povo) e mesmo uma certa divisão no próprio partido quanto à política de alianças, que atrasou a integração da militância nas mobilizações eleitorais de base. No texto abordamos apenas o quadro político e econômico mais geral, no qual a campanha se inscreveu, para verificar como nos movemos numa situação profundamente adversa, mas que, mesmo assim, alterou favoravelmente para nós a correlação de forças no próximo período da luta de classes no país.

Pretendo, com este método, contribuir para revelar as "macrolimitações" da esquerda num período histórico avesso – em termos culturais e econômicos – às idéias humanistas e intolerante em relação a qualquer "pregação" socialista ou social-democrata. Este painel, penso, também nos auxiliará para apontar as insuficientes formas organizativas, em especial do nosso partido, herdadas de um período histórico anterior, com uma sociedade de classes ainda relativamente estruturada e funcional.

Somos originários de um período histórico que está finalizado. Nele a sociedade evoluía com sindicatos atuantes e uma estrutura de classes estável, fundada na 2ª revolução industrial, na qual uma grande parte da intelectualidade estava relativamente coesa em torno dos ideais humanistas. Nos países da semiperiferia, como o nosso, havia uma classe média mais sensível aos apelos de um projeto nacional.

A campanha revelou, porém, um outro quadro. Nela pesou significativamente, mais do que ocorreu com a eleição de Collor, uma grande parte da população marginalizada, lumpensinada ou meramente excluída do mundo da Lei e do Direito. A classe operária tradicional, que era portadora de uma cultura política agregadora e combativa já encontrava-se significativamente abalada, social e psicologicamente, pela ameaça do desemprego, pelo surgimento de novas formas jurídicas de exploração e pelas transformações que rapidamente alteram o processo produtivo tradicional.

II
O período "quente" do processo eleitoral – seus últimos 45 dias – ocorreu no bojo de uma aguda crise econômico-financeira mundial. Ela bateu fortemente em nosso país. Todos os movimentos ofensivos da nossa campanha foram pautados "a partir" e "de dentro" da crise, permitindo que Lula fizesse uma forte e qualificada denúncia do governo FHC e do modelo neoliberal em curso no país. O "discurso da crise" possibilitou que as nossas propostas alternativas alcançassem um grau de polarização inédito, desde a ascensão de FHC ao governo.

Nossos movimentos de denúncia obrigaram, inclusive, a que o governo, com a solidariedade da grande imprensa e da mídia eletrônica, viesse a público reconhecer a crise, embora sem aceitar o debate sobre as suas raízes e as soluções para enfrentá-la. O governo atuou, mesmo assim, de forma ofensiva. Prometeu medidas "duras" – evidentemente sem precisar contra quem – e recoesionou fortemente a sua base social, em nome da sua capacidade para resolver a crise. A mídia foi extremamente importante para potencializar este movimento do governo, pois trabalhou para induzir a população a pensar que a crise originava-se principalmente de uma "agressão externa" a um país que, ao fim e ao cabo, era bem conduzido e estava estabilizado pelo Real.

As amplas camadas populares, cujo voto estava em disputa, foram colocadas, neste processo, entre a mediocridade estável do presente – com um timoneiro "capacitado" – e a indeterminação do futuro, comandado por um líder político "superado" e "sem experiência". Estes foram os estereótipos introjetados no imaginário popular, que obstruíram fortemente o nosso crescimento, mesmo porque não criamos as condições necessárias para superá-los antes do início da campanha.

Faltou-nos, no calor do combate, desde recursos materiais, até uma incidência politicamente organizada junto aos "formadores de opinião", cuja influência, hoje, para a inclinação do voto popular, é extremamente importante. Faltou-nos também imaginação para "adiantar" novas formas organizativas, já que as atuais não conseguem atingir os "desclassificados" e a infinidade de quadros intelectuais e formadores de opinião "sem partido"O Conselho Político da U.P., montado no final da campanha, é um bom exemplo das novas formas de comunicação com a seriedade que um partido "novo tipo" deve experimentar. Alguns membros não integrantes do PT: Dalmo Dallari, Fábio Comparato, Hesio Cordeiro, Celso Furtado, Celso Antonio Bandeira de Mello, Eros Grau, Luis Pinguelli Rosa e Luciano Coutinho.. As nossas dúvidas programáticas, que freqüentemente retardaram as manifestações de Lula sobre temas cruciais da campanha, emergiram face a uma insuficiente elaboração da esquerda – como conjunto – para passar segurança à população de que estávamos aptos para governar.

III
A campanha presidencial ocorreu em meio ao esgotamento do projeto neoliberal em escala mundial e a uma crise financeira sem precedentes no bloco dos países chamados "emergentes". De uma parte, os países capitalistas desenvolvidos precisavam e precisam manter "cativos" os mercados dos países da periferia e da semiperiferia, para fixar uma balança comercial desigual e também para transferir a estes os custos dos seus "ajustes". De outra parte, eles – os países industriais do "centro orgânico" do capitalismo mundial – internamente reciclam-se para moderar o seu liberalismo, de maneira a poder valorizar o seu mercado interno.

Para proceder desta forma usam protecionismos de todos os tipos e também já passaram a reconhecer que é preciso "regular minimamente" a insanidade do cassino global. Este reconhecimento internacional, amplamente divulgado pela mídia, ajudou vastos setores empresariais e camadas médias a renovarem a sua confiança em FHC, num momento extraordinariamente importante da disputa, ou seja, aquele em que os capitais evaporaram-se do cassino local.

Com isso, vários setores da sociedade, inclusive nas camadas médias, renovaram suas esperanças no modelo, pautados por um projeto que aparentemente teria condições de assegurar os seus interesses imediatos e ao mesmo tempo consertar um mínimo equilíbrio social interno.

Estas condições internacionais de "reação anticrise" refletiram fortemente na correlação das forças políticas internas no país. Os setores empresariais de grande porte – nacionais ou não – que estavam fortemente pressionados para ficar "de bem" com a economia mundial, agruparam mais motivos para tanto. A "ameaça" do capital financeiro em "retirar-se" do país ("quebrando" o Estado brasileiro), era um motivo, mas agregava-se outro, a saber: fora disso, só havia uma alternativa nitidamente de esquerda que oferecia a intervenção estatal, a valorização do mercado interno, um projeto nacional com políticas distributivas e reforma agrária, medidas que, por chocarem-se diretamente com as recomendações do FMI e do Banco Mundial, eram consideradas francamente subversivas em relação aos interesses que o governo FHC representava.

Os setores burgueses mais fortes e organizados já vinham se ajustando completamente a um gerenciamento das suas necessidades. Eles já se orientavam, em função da natureza das medidas econômicas do governo FHC (já em andamento), para o "convívio" com a economia global, o que era considerado um objetivo a longo prazo. Isso ocorria não só através da abertura de novas "fronteiras de acumulação", via privatizações insanas e predatórias, mas também através de subsídios estatais a grandes projetos "globalizantes" e associados, que abriam espaços, alguns reais, outros ilusórios, ao capital local.

IV
As conseqüências deste novo bloco orgânico de dominação no terreno da disputa pública da informação foram devastadoras. A ampla maioria dos formadores de opinião dos principais meios de comunicação primeiro defenderam que FHC representava o "moderno", o "contemporâneo", o "progressista" e que Lula significava o "atraso", o "arcaico", o "conservador". Esta apropriação do reformismo pelo neoliberalismo não é vazia. As reformas que os governos neoliberais vêm realizando normalmente têm apelo popular, já que o Estado atual, burocratizado e ineficiente, é desconsiderado pela população. O modelo recorrentemente se legitima com a defesa do "reformismo" até que a economia "atrapalha". Foi o que ocorreu.

Quando o modelo FHC mostrou, de maneira clara, sua impotência e sua dependência do capital puramente especulativo, os mesmos formadores de opinião convenceram a maior parte da população que o Brasil estava sendo alvo de um "ataque externo" e que FHC era o defensor do país. No interior de uma tormentosa fuga de centenas de milhões de dólares aqui investidos, eles mantiveram o cinismo "subliminar" de que Lula poderia significar "a fuga de capitais" do país enquanto FHC significava a estabilidade e o respeito internacional! Os gênios da globalização não perderam a pose e continuaram a desfilar os "axiomas" dos executivos dos especuladores e o fizeram com sucesso.

Na verdade não estávamos preparados – nem o PT nem qualquer partido de esquerda – para enfrentar uma nova etapa da hegemonia econômica e cultural do liberalismo modernizante, que através da ideologia (neoliberal), dissimulava a violência da dominação por meio do controle e da seleção da informação.

Esta hegemonia trabalha com técnicas revolucionárias de formação e indução da subjetividade popular, por formas que serão ainda mais desenvolvidas e apuradas daqui para diante. Como sucedâneo da ditadura e da violência aberta, que assegurava a dominação e os privilégios com a "sinceridade" da força bruta, a atual dominação ocorre por intermédio da manipulação cientificamente concebida.
É necessário notar, porém, que o que ocorreu não foi uma conspiração dos donos da informação no país. Nem uma malévola articulação entre empresas de comunicação concorrentes, mas expressão de uma hegemonia orgânica no país, que se dá originariamente no terreno econômico, através do projeto representado por FHC.
Ele soube mostrar aos grandes empresários e a uma grande parcela da população incluída (aquela que tem a capacidade de formar amplamente a opinião pública) que representava uma saída "sensata" num mundo "caótico", em crise profunda, da qual o Brasil não escaparia qualquer que fosse o governo.

Boa parte das massas excluídas simplesmente repercutiram esta estratégia manipuladora, mas um percentual elevado dos que vivem à sombra da Lei e do Direito querem mesmo separar-se do resto e assumir o risco de "globalizar-se", lutando por um espaço de sobrevivência. O senso comum reproduz espontaneamente a ideologia neoliberal porque ele está imerso num "modo de vida", que vai do consumismo exacerbado até as explosões de violência dos marginalizados, que o orienta para o individualismo, o ceticismo e a concorrência.

V
As classes trabalhadoras organizadas tradicionais – do setor público e privado – ameaçadas pelo desemprego e pela perda dos direitos sociais, em que pese o esforço de alguns dos seus sindicatos e líderes mais importantes, entraram muito pouco na campanha. Sua conciliação com o neoliberalismo é impulsionada por dois fatos estruturais: a falta de crença de que a esquerda possa representar uma "vida melhor" do que esta que é simplesmente "estar empregado"; e a falta de qualquer vínculo cultural e político orgânico da esquerda com os setores modernos do mundo do trabalho e também com aqueles potencialmente anti-sistema, ou seja, os excluídos e semiproletários.

A cultura política da esquerda, seja ela socialista ou social-democrata, ainda não produziu uma articulação organizativa nem formulações teóricas capazes de unificar os novos e os antigos trabalhadores, os novos e os antigos excluídos, para um enfrentamento conjunto com o sistema. Isso ocorreu só onde a esquerda teve experiências de governo (e proporcionou estes vínculos através de políticas públicas de "inclusão", como no Rio Grande do Sul e Brasília) ou onde havia o impulso de uma certa tradição populista democrática, ainda não vencida, como no Rio de Janeiro.

A forma com a qual FHC obteve o segundo mandato torna-o um presidente sem legitimidade. A sua hegemonia (no terreno econômico e que está refletida na estrutura de classes da sociedade) já dissolve-se na crise econômica. Por isso a sua vitória eleitoral foi obtida de maneira completamente artificial. Ela firmou-se através de uma manipulação sem precedentes, que não só deformava, na mídia, com poucas exceções, as nossas propostas programáticas, mas também por condições que já foram preparadas por uma legislação eleitoral construída para fragmentar as mensagens da oposição e ainda evitar o debate democrático de idéias. Nossa primeira missão oposicionista é não permitir que FHC faça qualquer reforma, oriunda do seu ideário neoliberal, com legitimidade. Nossa segunda missão é desenhar no imaginário da sociedade a convicção de que representamos de verdade um outro modelo econômico-social, pautado por um novo modo de vida, no qual a distribuição de renda, o emprego e o sentido de nação sejam o lastro de uma cultura política democrática e participativa.

Tarso Genro é membro do Diretório Nacional do PT e da Coordenação da Campanha Lula 98, ex-prefeito de Porto Alegre (RS)