Sociedade

Voam todos de cá para lá, encarando a história com galhardia, imprimindo sua marca nos itinerários da demografia mundial.

Para confraternizar com brasileiros que emigram ilegalmente para os Estados Unidos, basta sentar-se ao fundo do avião, no setor reservado aos fumantes. Como nossos compatriotas fumam desbragadamente, não se corre o risco de desperdiçar boa companhia e bom papo.

Pode ser um faxineiro de plataforma de petróleo da Petrobrás, farto do universo concentracionário que é seu horizonte. Se o problema é falta de qualificação, melhor ser faxineiro lá do que cá - e é o que se dispõe a fazer.

Mais ou menos jovem, na casa dos trinta, nem um pouco preocupado com o tom café-com-leite da pele, lá vai ele tomando seu uisquinho no avião. Apresenta-se aos demais passageiros, perfeitos desconhecidos, com: "Estou indo para ficar". Alertado para o perigo de se denunciar, alça os ombros com despreocupação. Sem disfarce, nem leva bagagem, só uma sacola de mão arrebanhando a soma de seus pertences, o rescaldo de incêndio de uma vida moça em seu torrão natal.

Ao desembarcar, foi preso, é claro. Mas como não falava sequer uma palavra de inglês e, sobraçando sua sacola, limitava-se a sorrir e acenar com a cabeça, acabou sendo solto. Deus protege os anjos. Tinha visto de turismo, de curta duração, portanto ainda não era o ilegal em que logo se tornaria. Esperava-o, conforme combinado de antemão, um colega de funções na mesma plataforma, o qual, mais afoito, seguira antes e lhe mandara uma passagem. Viera a seu encontro com um carrão daqueles de cinema que, conforme contava atabalhoadamente, comprara por 2 mil dólares apenas. Trouxera junto uma amiga porto-riquenha com o dobro de sua idade, que vivia na mesma comunidade. O segredo era o seguinte: moravam todos juntos, uma dúzia de pessoas de várias nacionalidades, numa casa barata de subúrbio, e tinham a propriedade coletiva de dois desses carrões. Dado o alto gasto de gasolina, os veículos não podiam evidentemente ser usados todos os dias, para isso havia o metrô. Mas sempre estavam à mão para uma ocasião excepcional e celebratória, como acolher um amigo no aeroporto.

A comunidade tinha instituído um coletivo que fazia limpeza em Nova York. Distribuíam um cartão impresso com o nome da firma (ilegal) e seus telefones. Enquanto o emigrante recebia salário mínimo na plataforma de petróleo, mais uns trocados por insalubridade, risco, horários anômalos etc., sem falar no seqüestro a que a profissão obriga e nos meses sem ir à terra, cada sócio do coletivo ganhava cerca de mil dólares por mês, o que explica os dois carrões. Esfalfavam-se, sem dúvida, mas bem que se divertiam. E o padrão de vida, para quem ia do Brasil, não era nada mau.

Para confraternizar com brasileiros que emigram ilegalmente para os Estados Unidos, basta sentar-se ao fundo do avião, no setor reservado aos fumantes. Como nossos compatriotas fumam desbragadamente, não se corre o risco de desperdiçar boa companhia e bom papo.

Pode ser um faxineiro de plataforma de petróleo da Petrobrás, farto do universo concentracionário que é seu horizonte. Se o problema é falta de qualificação, melhor ser faxineiro lá do que cá - e é o que se dispõe a fazer.

Mais ou menos jovem, na casa dos trinta, nem um pouco preocupado com o tom café-com-leite da pele, lá vai ele tomando seu uisquinho no avião. Apresenta-se aos demais passageiros, perfeitos desconhecidos, com: "Estou indo para ficar". Alertado para o perigo de se denunciar, alça os ombros com despreocupação. Sem disfarce, nem leva bagagem, só uma sacola de mão arrebanhando a soma de seus pertences, o rescaldo de incêndio de uma vida moça em seu torrão natal.

Ao desembarcar, foi preso, é claro. Mas como não falava sequer uma palavra de inglês e, sobraçando sua sacola, limitava-se a sorrir e acenar com a cabeça, acabou sendo solto. Deus protege os anjos. Tinha visto de turismo, de curta duração, portanto ainda não era o ilegal em que logo se tornaria. Esperava-o, conforme combinado de antemão, um colega de funções na mesma plataforma, o qual, mais afoito, seguira antes e lhe mandara uma passagem. Viera a seu encontro com um carrão daqueles de cinema que, conforme contava atabalhoadamente, comprara por 2 mil dólares apenas. Trouxera junto uma amiga porto-riquenha com o dobro de sua idade, que vivia na mesma comunidade. O segredo era o seguinte: moravam todos juntos, uma dúzia de pessoas de várias nacionalidades, numa casa barata de subúrbio, e tinham a propriedade coletiva de dois desses carrões. Dado o alto gasto de gasolina, os veículos não podiam evidentemente ser usados todos os dias, para isso havia o metrô. Mas sempre estavam à mão para uma ocasião excepcional e celebratória, como acolher um amigo no aeroporto.

A comunidade tinha instituído um coletivo que fazia limpeza em Nova York. Distribuíam um cartão impresso com o nome da firma (ilegal) e seus telefones. Enquanto o emigrante recebia salário mínimo na plataforma de petróleo, mais uns trocados por insalubridade, risco, horários anômalos etc., sem falar no seqüestro a que a profissão obriga e nos meses sem ir à terra, cada sócio do coletivo ganhava cerca de mil dólares por mês, o que explica os dois carrões. Esfalfavam-se, sem dúvida, mas bem que se divertiam. E o padrão de vida, para quem ia do Brasil, não era nada mau.

Outra vez, foi o caso de uma senhora de Governador Valadares, protótipo da cidade de emigração. Era, e é, empregada doméstica em sua terra. Tomara o avião com um embrulho de papel na mão, levando guloseimas mineiras e toalhinhas de crochê para sua filha, com quem ia passar um mês. Esta, de 20 anos, trabalhava por hora fazendo limpeza em Washington, para onde emigrara meses antes, convocada por amigos que já lá viviam. A mãe era crente adventista, dessas que não cortam o cabelo nem furam a orelha. Mas tinha saudades da filha, que lhe mandara de presente uma passagem aérea. Como é óbvio, não falava nem ok em inglês, e pediu socorro aos companheiros de viagem menos inabordáveis.

Lá chegando, aguardava-a a filha, que viera com um carrão, já de sua propriedade exclusiva. Elegante e bem vestida, parecia uma nativa ostentando a cabeleira com mechas louras feitas em salão de beleza; e usava brincos. Cochichava para os circunstantes: "Não deixem minha mãe perceber que furei as orelhas! Nós somos crentes, nossa religião não permite..." Isto é, nós éramos crentes, nossa religião não permitia... De Governador Valadares para Washington, um salto do arcaico ao pós-moderno.

Mais um instantâneo: a garota entra no avião em Newark e, feliz ao ouvir sua língua natal, puxa conversa. Voltava para passar um mês de férias com a família em sua cidadezinha no interior de Minas. Já lá estava há uns dois anos, trabalhando como... (adivinha?)... faxineira. Mostra um anel de ouro e ametista que comprara para a mãe, indagando se estaria a seu gosto. E confidencia, com desenvoltura, que o preço das jóias está muito mais em conta nos Estados Unidos que no Brasil.

Os pescadores de Portugal, grandes trabalhadores qualificados, passam o ano nas águas frias e alienígenas de Massachusetts, como tripulação de barcos de pesca. No verão, quando a faina é suspensa, regressam para aproveitar umas semanas, poucas, com a família, longe da qual viveram o ano quase todo. Voltam ricos, tão alegres, fumando sem parar tanto quanto os brasileiros, de pé bem no fundo do avião. Que dessa vez voa dos Estados Unidos para a Europa, por curto prazo devolvendo-os a suas aldeias carregados de presentes que vão desde aparelhos eletrônicos de última geração até relógios Mickey Mouse.
Nas asas da fantasia? De um movimento do capital? De uma diáspora da globalização?

A mocinha que volta da Alemanha é originária de Ubatuba e fala pelos cotovelos. Formara-se em fonoaudiologia em São Paulo, onde estudara sustentada pela família, que a ajudara a montar um consultório. Após dois anos sem conseguir um só cliente, desistira e resolvera emigrar. Escolhera Munique porque lá contava com uma amiga de infância, que se fora na base da aventura e acabara por se casar com um alemão, de quem a esta altura já tinha filhos. A mocinha há algum tempo se empregara naquilo que lá se chama de "negro", isto é, ilegalmente, sem carteira profissional e ganhando menos que um empregado cadastrado. Mas justo por não ser legal é que só podia funcionar na cozinha do restaurante, lavando pratos, e não como garçonete. Morava sozinha, pois ganhava miraculosamente bem, em bases jamais sonhadas em seu país. Mas 1.200 dólares iam mensalmente para o curso intensivo de alemão, sem o qual não teria acesso nem ao patamar legal nem a um aceno de melhoria. Arranjara um namorado, a quem, dizia ela, estava ensinando a namorar à moda brasileira, pois ele, muito alemão, pensava que devia labutar feito um mouro a semana toda e só usufruir de companhia feminina aos sábados. Ela mesma lavava cada noite 2.000 pratos e ainda por cima estudava. Já tinham ido passar juntos uns dias de folga na Floresta Negra, onde aproveitara para ensiná-lo a namorar no mato, coisa que, segundo ela, todo brasileiro sabe. Retornava ao Brasil por um período de férias e também para se exibir à família, mostrando sua capacidade de sobreviver com autonomia. Tinha-se vestido na moda e mais do que elegantemente, com traje bem curto, para despistar a polícia - seu visto de turista há muito expirara -, o que fez em grande estilo. Mas contava retomar logo seu emprego na Alemanha, pois estava adorando tudo, inclusive no que diz respeito a amestrar seu par.

Outra passageira, fortemente mestiça, arribou ao mesmo país sem eira nem beira, nem qualquer formação, como figurante numa companhia de dança folclórica; e se deixou ficar para trás. Em pouco tempo se casou com um engenheiro nativo, adquirindo a cidadania. Teve sorte, pois como os casos se multiplicavam, logo veio uma lei que estipulou um prazo após o casamento para a obtenção dos papéis. Enquanto isso, não precisa trabalhar. Toma conta da casa, lava, passa e cozinha, aliás primorosamente. O marido está satisfeitíssimo, inclusive com o lado carnal da relação. Em todos esses setores, sem excluir este último, nossas patrícias são requestadas e gozam de alta cotação na bolsa matrimonial, pois oferecem muito mais serviços que uma esposa alemã, a par da reputação de serem mais dóceis; saem barato, portanto. Ela também se sente contente por ter quem a sustente, até com largueza, sem que precise dar duro num emprego.

Voam todos de cá para lá, encarando a história com galhardia, sem cuidar das armadilhas que os fados podem estar a lhes preparar, imprimindo sua marca nos itinerários da demografia mundial. Os ares lhes sejam leves.

Walnice Nogueira Galvão é professora aposentada de teoria literária e literatura comparada da USP.