Cultura

Akira Kurosawa foi, sem dúvida, o mais conhecido cineasta japonês no Ocidente. Nos deixou uma filmografia de 31 títulos, muitos dos quais obras-primas do cinema mundial

O cinema foi o grande portal através do qual o Ocidente conheceu e por vezes se surpreendeu com o Japão. E Akira Kurosawa (1910 - 1998) foi, sem dúvida, o mais conhecido cineasta japonês no Ocidente. Este artista, que nos deixou uma filmografia de 31 títulos, muitos dos quais reconhecidas obras-primas do cinema mundial, foi também alvo de um debate (lá e cá) acerca de uma falsa questão: faria ele filmes genuinamente japoneses, ou filmes apenas adequadamente japonizados para atender à demanda de exotismo por parte de um Ocidente deslumbrado? Outra acusação, vinda sobretudo da parcela à esquerda do chamado público médio, reclamava da visão de mundo que extravasava de seus filmes e que seria "apenas humanista" e cobrava-lhe uma atitude mais politizada. Vistas de um plano mais geral que o tempo confere, essas discussões se revestem de uma assombrosa inutilidade. É vão querer saber se Rashomon (1950), o primeiro filme japonês a obter reconhecimento em um grande festival internacional, o de Veneza, em 1951, foi fruto de uma elaborada estratégia de conquista de mercado externo ou se, em uma versão menos business, trata-se de uma bem-sucedida adaptação para o cinema de um brilhante conto de Ryunosuke Akutagawa - e por isso mereceu a atenção de um público tão exigente. De qualquer modo, abriu caminho para uma cinematografia desconhecida no Ocidente, o que não é e nunca foi trabalho de pouca monta e para gente de pouco fôlego.

Imerso em uma atmosfera de rigidez e conservadorismo, Akira foi um adolescente alto e franzino submetido ao método de fortalecimento escolhido pelo pai: fizesse frio ou calor, usava o mesmo uniforme escolar, andava quilômetros até a escola e na volta ainda tinha de parar em um templo para conversar com o monge e meditar. Jovem, ingressou no mercado de trabalho fazendo ilustrações para livros de receitas culinárias. E foi atirado à idade adulta pelo suicídio do irmão mais velho, um benshi (narrador, explicador de filmes mudos) e líder do sindicato dos benshis num momento em que o cinema começava a falar e, portanto, às voltas com o desemprego - o seu próprio e de seus colegas de profissão.

Começou no cinema no década de trinta, como todos àquela época começavam: como assistente de um já consagrado diretor de um dos estúdios. "Assistente" então tinha um significado muito, muito mais profundo do que seriam capazes de cumprir os nossos assistentes atuais. No Japão sobretudo, em que os laços do ofício sempre foram mais fortes do que os de qualquer outra ordem, "discípulo" seria um termo mais apropriado. Aprendia-se a trabalhar e, se tivesse sorte de ter como mestre uma pessoa digna desse nome, aprendia-se também a viver. Pelo relato em sua Autobiografia, Kurosawa teve sorte, e com Kajiro Yamamoto, aprendeu a amar o cinema e a se tornar um cineasta que, como poucos, soube dizer que "embora fraco, o homem pode ter esperanças, e através disso pode prevalecer", para mais tarde - com rigor - nos mostrar que "não, não há saída", e mais tarde ainda, fazer filmes que valorizaram a vida, sem se esquivar de seus pesadelos.

Para a imprensa, era O imperador. Mas suas equipes não o chamavam assim. Aliás, muitos dos integrantes seguiram-no por várias décadas, o que dá conta da permanência de uma estrutura de trabalho e da fidelidade que ele conseguiu manter à sua volta.

Dos 31 filmes de sua filmografia, treze estão disponíveis nas locadoras. Estes títulos, ainda que poucos em um universo tão grande e plural, formam uma mostra de sua trajetória e revelam as várias fases pelas quais passou: Rashomon (1950), O idiota (1951), Viver (1952), Os sete samurais (1954), Trono manchado de sangue (1957), Yojimbo (1961), Dodeskaden (1970), Dersu Uzala (1975), Kagemusha (1980), Ran (1985), Sonhos (1990), Rapsódia em agosto (1991), Madadayo (1993).

Nesse conjunto de filmes são nítidas as duas grandes vertentes de sua obra: os filmes de época, geralmente contando histórias de samurais, e os filmes que se debruçam sobre o presente. Trafegou com desenvoltura nos dois gêneros, sempre preocupado com questões sociais e com as do relacionamento do indivíduo com a sociedade. Em todos, no entanto, avultam os temas centrais, básicos do cinema de Kurosawa: aqueles que dizem respeito às posturas do indivíduo em relação à vida, sobretudo do ponto de vista ético.

O idiota, adaptação do romance de Dostoiévski, é tratado pelos críticos como um necessário feixe de erros e desapontamentos, que libertou o diretor da submissão ao original nas produções posteriores. Ao querer transpor, com o mínimo de interferência, o drama russo para Hokkaido, ao querer "preservar" o autor que mais amava, "o filme não é nem Dostoiévski, nem Kurosawa", segundo o crítico Donald Richie, "especialista" em Kurosawa. É considerado um filme menor em sua filmografia, mas talvez seja um exemplo rico para alimentar as permanentes discussões sobre linguagens e adaptações.

Em Viver, o personagem central Kanji Watanabe (vivido pelo grande Takashi Shimura) é um pequeno burocrata de uma repartição governamental que descobre que está com câncer e tem apenas um ano e meio de vida. Esta revelação leva-o a perceber o que fora a sua vida: 25 anos enfurnados em um trabalho inútil, estéril, a contaminar todo o resto, provocando mesmo o afastamento de seu único filho. A descoberta da proximidade da morte traz a premência de uma ação que justifique sua passagem pelo mundo. A única ação possível - ainda que tenha que se humilhar para consegui-lo - é dar andamento ao processo, então parado, que prevê a construção de um parque infantil em um bairro pobre e insalubre. Watanabe descobre a força da solidariedade ativa.

Já em Os sete samurais, uma aldeia do século XVI, regularmente saqueada por bandidos, contrata samurais independentes para defendê-la. Eles não se limitam a combater os bandidos: ensinam aos aldeões a fazê-lo, organizam a resistência e, juntos, se preparam para as batalhas que, filmadas de pontos de vistas variados e editadas em um ritmo vertiginoso, são verdadeiras obras-primas de arquitetura narrativa.

Nestes dois filmes estão anunciados os temas centrais da primeira fase: os homens são, de modo geral, bons, mas sempre submetidos a estruturas sociais injustas e massacrantes (a repartição pública - metáfora da sociedade japonesa de então -, ou o bando que saqueia a aldeia). Essa pressão distorce o comportamento das pessoas e as torna corruptas, más ou simplesmente indiferentes. É preciso que sejamos capazes de nos opor a este mal - às vezes ativamente, com espadas e outras armas, às vezes solidariamente, com vontade, paciência, humildade. E a possível vitória sobre essas guerras é maior que ela própria: em Viver, significa a libertação de um homem até então, de "pouca qualidade"; em Os sete samurais, é a recuperação da consciência e da dignidade de um grupo de camponeses.

Um traço, entretanto, é fundamental na concepção dos heróis de Kurosawa: eles são extremamente competentes no que fazem. Esse aspecto dos personagens é importantíssimo. A bondade, o estar do lado certo, o ter razão não bastam. É necessário dominar com maestria os meios de realizar os atos necessários. É assim que Watanabe escolhe como forma de ação o que melhor domina: dar andamento a um processo dentro da burocracia. É também assim que agem os samurais: eles exercem seu ofício de lutar com total competência. Não basta combater o mal - é necessário fazê-lo com extrema competência. Invertendo: o bem, a bondade, a razão, o estar certo, quando desprovidos da competência no fazer, só resultam em grandes prejuízos. Uma lição quase desconfortável, de tão oportuna, nos tempos atuais.

Em Yojimbo, Kurosawa mostra mais uma vez o herói e sua arte - a luta - entrando em uma situação na qual grupos que disputam o poder sobre uma aldeia se digladiam. Os dois lados tentam cooptar o samurai, mas ele usa sua astúcia e sua habilidade marcial para derrotar os dois grupos e permitir que o povo da aldeia controle a situação. Depois, vai embora. Qualquer semelhança com o western americano não é mera coincidência. Tanto Os sete samurais quanto Yojimbo foram refilmados como westerns. Os sete samurais, em Hollywood, com o nome de Sete homens e um destino. Yojimbo transformou-se em Por um punhado de dólares, um dos filmes fundadores do spaghetti western.

Trono manchado de sangue é a visão de Kurosawa do Macbeth shakesperiano. Aqui - como tempos depois retomaria em Ran - o interesse do diretor se concentra no estudo de como a luta inescrupulosa pelo poder - ou pela sua manutenção - destrói as pessoas antes de destruir a estrutura social em que vivem. O móvel é o exercício do poder; segue-se a volúpia que ele gera, com o espetáculo de intriga e matança; a conseqüência é a destruição dos indivíduos - moral primeiro, depois física. Trono manchado de sangue trata da conquista desse poder por um aventureiro; Ran, inspirado no Rei Lear, também de Shakespeare, trata da divisão do poder pelo patriarca da família. A ligar os dois, e em frontal discordância com um certo otimismo triste dos filmes da fase anterior, um universo em que os personagens não têm futuro, não há esperança, não há saída. No plano formal, também a ligar os dois, um rigor quase absurdo na construção desse universo composto como um quebra-cabeças formado de castelos, neblina e a terra vulcânica do sopé do Monte Fuji. Em Trono, a busca de uma textura preenchida a nanquim; em Ran, a transferência das cores fortes dos desenhos feitos pelo próprio Kurosawa.

Dodeskaden, baseado em contos de Shugoro Yamamoto, cruza as vidas de diversos personagens que vivem em uma favela. São os excluídos de uma sociedade em rápido crescimento econômico. Uma grande variedade de tipos: o mendigo bom, mas incapaz de viver na realidade, que deixa o filho morrer envenenado por peixe estragado; a mulher mal-humorada, insuportável, mas que apoiou o marido quando ele mais precisava; o tecelão irremediavelmente sepultado em depressão pela traição da mulher. Todos giram em torno do jovem deficiente que se imagina condutor de bonde e o próprio bonde ao mesmo tempo. Dodeskaden é a onomatopéia com a qual ele imita o ruído do bonde - e quase um jeito de se dizer "Como vai?". Num certo sentido, esse filme é um resumo das preocupações de Kurosawa - e de todos os filmes por ele realizados anteriormente. Considerado hoje um filme importante, foi um fracasso comercial - e de crítica. Possivelmente, o establishment e o público japonês não queriam ser lembrados das mazelas que permaneciam no bojo de seu milagre econômico. Não se pode e não se deve estabelecer ligações simplistas, mas esse fracasso é marcado por uma tentativa de suicídio de Kurosawa e a dissolução da sua produtora independente (junto com outros três grandes diretores japoneses: Kinoshita, Ichikawa e Kobayashi) que produzira o filme.

É portanto desta forma melancólica que se inicia a transição para os filmes do período mais recente. Período que é aberto com Dersu Uzala, uma fábula moderna sobre um homem bom, que vive em comunhão com a natureza e que transmite aos outros as lições desse equilíbrio. Assim começa a trilha das co-produções com produtoras fora do Japão: Dersu foi financiado quase que inteiramente pela Mosfilm, da União Soviética. Duramente criticado por alguns estudiosos, que viram nele apenas sentimentalismo, "um vazio encoberto pela irresistível amplidão da tela, pelos efeitos sonoros e pelo elegíaco tema musical", foi recebido com entusiasmo e ternura por platéias do mundo todo.

Esse período recente de Kurosawa traz também, além de Ran, um outro soberbo trabalho: Kagemusha. A discussão central do filme é o embate entre a realidade e a aparência. Conta a história do sósia de um senhor feudal, usado para substituí-lo, e que acaba incorporando a personalidade do outro, em meio às lutas pelo poder. De novo, os temas de sua preferência: a vida que só alcança seu sentido por meio da dedicação a uma causa, a necessidade de uma identidade, o horror das guerras fratricidas, a ilusão tão forte quanto a realidade. E de novo, a maestria, o rigor na direção das cenas de batalhas.

Nos três últimos filmes (Sonhos, Rapsódia em agosto e Madadayo) há uma alteração na visão geral de até então: aqui os homens bons não disputam mais o mundo e o futuro com os maus, com os mesquinhos ou com os indiferentes. Aqui, os homens bons dominam os filmes. É deles que se fala, cabe a eles representar todos os papéis das tramas - o que rendeu algumas críticas negativas a Kurosawa. O conflito se estabelece com algo que está fora - fora, inclusive, do alcance dos homens comuns. Em Rapsódia em agosto, a avó vive, até os dias de hoje, o horror da bomba atômica. Enxerga um imenso olho no céu, como se o espírito malévolo da bomba vigiasse a todos. O mal, representado pela existência, pela possibilidade da bomba, alojou-se irremediavelmente em sua memória e em seu coração. Ainda assim, recebe com amor a visita do neto americano (Richard Gere) e a ele e aos outros netos, tenta ensinar os caminhos da paz.

No último filme (Madadayo) o mal talvez seja a morte (que pode ser tratada com mofa), mas sobretudo a velhice atrapalhada pela falta de moradia e pelo sumiço do gato querido: o final da vida. O velho mestre, um homem bom, apoiado por seus ex-alunos, luta contra o esquecimento: madadayo, verso da brincadeira de esconde-esconde, significa "ainda não" e é a palavra que se repete quando os ex-alunos ritualmente perguntam bem-humoradamente ao mestre se já terá chegado sua hora.

Mesmo em Sonhos - uma multiplicidade de histórias -, essa visão também se faz presente: algo assustador e demoníaco está sempre à espreita de homens e crianças, seja na forma de lendas infantis, medos ancestrais ou pesadelos de nosso tempo. Talvez seja o inventário mais completo de Kurosawa dos grandes medos que podem nos fazer sucumbir. Mas também aponta a possibilidade de reagir, seja através da persistência, da paciência, da coragem, da sabedoria, seja através da realização artística.

A figura de Kurosawa sorridente, cordato, que vimos receber homenagens da Academia de Hollywood e de cineastas famosos do Ocidente, como Spielberg e Lucas, ainda que combine com a atmosfera geral de seus últimos trabalhos, contrasta com a imagem de "um homem que pisou a cauda do tigre" (para lembrar um filme seu de 1945) - do diretor exigente, em constantes brigas com produtores e constantes fugas da imprensa. Sobretudo, contrasta fortemente com alguns dos planos desses mesmos filmes de sua produção recente, planos que ficam em nossa memória. Até porque, aparentemente, em sua última fase, há um encantamento maior em relação ao "quadro" da tela, mais do que à articulação da montagem. Teríamos inúmeros exemplos em sua filmografia. Mas fiquemos com o final de Rapsódia em agosto, em que a avó, em delírio, foge em meio à tempestade que recorda e, ao mesmo tempo, prefigura os efeitos imediatos da explosão nuclear.

Vemos: uma velha pequenina, correndo sob a chuva, contra o vento, a segurar com dificuldade e inutilmente um guarda-chuva com as pontas reviradas pelo tufão, tentando avançar para lugar nenhum, possivelmente a fugir do horror fixado em sua memória. Atrás dela, correm - a socorrê-la, a consolá-la? - os filhos e os netos... que jamais a alcançarão. É uma imagem poderosa, e "não-cordata", diante da qual temos de nos render.

Há uma boa mostra de Kurosawa em vídeo

1943 A lenda do grande judô (Sugata Sanchiro)
1944 A mais bela
1945 Sugata Sanchiro - Parte 2
Aqueles que pisaram na cauda do tigre
1946 Os que constroem o amanhã
Nenhum pesar pela nossa juventude
1947 Domingo maravilhoso
1948 Anjo embriagado
1949 Duelo silencioso
Cão danado
1950 Escândalo
Rashomon*
1951 O idiota*
1952 Viver*
1954 Os sete samurais*
1955 Crônica de um ser vivo
1957 Trono manchado de sangue*
Ralé
1958 A fortaleza escondida
1960 O homem mau dorme bem
1961 Yojimbo*
1962 Sanjuro
1963 Céu e inferno
1965 Barba Ruiva
1970 Dodeskaden*
1975 Dersu Uzala*
1980 Kagemusha, a sombra do samurai*
1985 Ran*
1990 Sonhos*
1991 Rapsódia em agosto*
1993 Madadayo*

*disponíveis em vídeo

Olga Futemma é cineasta e pesquisadora de cinema.

Renato Tapajós é videomaker, autor de Em câmera lenta, entre outros livros.