Política

O peruano José Carlos Mariátegui, possivelmente o maior teórico marxista latino-americano, com sua obra Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, conquistou um espaço definitivo no âmbito do socialismo criador

Há setenta anos, em novembro de 1928, publicou-se, no Peru, um livro que se autodefinia "espontâneo" e "inadvertido". Sem prólogo ou introdução, continha apenas uma "Advertência". Nela, o autor confessava estar em sintonia com Friederich Nietzsche e Faustino Sarmiento, ao mesmo tempo que se reconhecia possuidor "de uma declarada e enérgica ambição: a de concorrer para a criação do socialismo peruano".

Meses depois, o operário peruano Julio Portocarrero entregaria a Vitorio Codovilla, durante uma reunião de partidos comunistas latino-americanos que ocorria em Buenos Aires, um exemplar do livro. O dirigente ítalo-argentino olhou para Portocarrero e, em tom de ironia, perguntou qual o significado de Ensaios - "um marxista escreve teses", teria pensado -, e a que propósito falar em "realidade peruana" em tempos de imperialismo.

Desde aquela data, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana - pois desse livro se trata -, além de ter se transformado no livro com o maior volume de reedições no Peru e no mais lido pelos peruanos, é a obra peruana mais amplamente traduzida no mundo1. Com ele, José Carlos Mariátegui conquistou um espaço definitivo no âmbito do socialismo criador.

A idéia subjacente ao texto de Mariátegui - e em geral à sua obra - é a do socialismo enquanto múltiplos ensaios, é também a do resgate de uma atividade que muitas vezes o ímpeto transformador deixa de lado: a de interpretar.

No momento em que muitos afirmam que as possibilidades globais de emancipação postergam-se por ainda um longo período, talvez estas intuições de José Carlos Mariátegui possam ser úteis.

Aonde reside a atração destes Ensaios? As respostas são múltiplas: dependem de quem e de quando a questão se coloca.

A pouca distância dos territórios que o Peru perdeu em conseqüência da Guerra do Pacífico (1789-1883), em Moquegua, na casa ocupada pela família do coronel Cavero, nasceu, a 14 de junho de 1894, uma criança que seria batizada com o nome de José del Carmen Eliseo, de sobrenome Mariátegui La Chira. Nascia em um país marcado não somente pela recente derrota militar, mas por uma história que alguns interpretavam como "ocasiões perdidas"; e outros, como se fosse uma sucessão de episódios de deterioração, de prosperidade fictícia e de ausência de liderança. Um país cuja estrutura social mantinha intactas a segmentação e as exclusões coloniais.

Social e territorialmente segregados, os governantes e intelectuais da primeira República vetaram o país como tema. O que mais chama a atenção nos debates e disputas da primeira metade do século XIX é sua vacuidade. O que havia de mais avançado só poderia ter sido chamado de "progressismo abstrato"2. Quando o primeiro socialista peruano, um jovem de sobrenome Alvarado, disse que seus professores haviam aprendido o liberalismo nos "livros e não no coração das massas", estava sinalizando uma característica comum à maioria dos políticos e ideólogos do século XIX.

Em outros países, a derrota, os tributos, as retaliações territoriais tornaram-se terreno fértil para revanchismos militares. No Peru não foi assim: a conseqüência política e intelectual mais importante do pós-guerra foi a gestação de um pensamento crítico que abriria "novos caminhos para a práxis", no dizer de Alberto Flores Galindo e Manuel Burga. "Onde o velho está em tão transparente decadência, o novo tem de emergir"3, essa contundente expressão de Ray Monk, sobre a Viena do começo do século, poderia ser aplicada ao Peru daquelas décadas. Do esgotamento e da frustração também pode surgir a possibilidade de renovação. As possibilidades que se atualizam em conjunturas privilegiadas se gestam em processos cumulativos bastante obscuros. Referindo-se às rebeliões indígenas, Mariátegui diria que no silêncio do planalto andino amadurecem as tempestades4. A metáfora poderia ser ampliada: é, ao contrário, no âmbito silencioso e obscuro dos anos no interior dos quais o futuro parece enclausurado, que amadurecem os projetos históricos. Os que haviam nascido naqueles anos, recém-chegados a um amadurecimento precoce, se tornariam, três décadas depois, construtores dos paradigmas decisivos na história política e cultural do Peru contemporâneo5.

Neste marco, a sociedade peruana do começo do século XX passou por duas tentativas de modernização conduzidas de "cima para baixo". A primeira, mais tímida e tradicional, deu forma ao que o grande historiador peruano Jorge Basadre denominou "República Aristocrática" (1895-1919). A segunda, alentada pela penetração do capital norte-americano, apresentou traços um pouco mais burgueses e deu origem à chamada Patria Nueva, período de onze anos em que governou Augusto B. Leguía (1919-1930). Foram modernizações superficiais na medida em que deixaram praticamente intactas as estruturas econômicas e sociais mais tradicionais: os latifúndios semifeudais, os poderes locais; mas que, no entanto, dinamizaram a política e a cultura.

No Peru do início do século emergiram movimentos sociais semelhantes aos de outros países latino-americanos. O movimento operário, apesar de seu número reduzido, chegou a atingir níveis muito altos de autonomia política e cultural, identificando-se com o anarquismo. O movimento da reforma universitária - primeiro em Cusco e logo em Lima - não só questionou o caráter senhorial da universidade, mas se propôs a estabelecer vínculos com o país. A causa indígena, que em realidade era um leque de agrupamentos e pessoas preocupadas com a situação dos habitantes dos Andes, ganhou maior visibilidade. Em movimento semelhante ao dos populistas russos, intelectuais e ativistas construíram um discurso sobre a autonomia do mundo andino a partir de diversos matizes filosófico-culturais: os indigenistas de origem positivista foram sucedidos por vitalistas, intuicionistas ou românticos.

No cruzamento desses movimentos, encontraremos com força crescente, a partir do final da segunda década do século XX, um grupo de jovens que, deixando de lado as diferenças sociais e regionais, compartilharam de um mesmo afã renovador inspirado na crítica de sua sociedade. É difícil defini-los. Talvez seja possível ir mais além do liqüefeito rótulo de "geração". Generación de la Reforma, devido à já mencionada reforma universitária que impulsionaram ou apoiaram; Generación del Centenario, por coincidir com o aniversário da independência do Peru: 1821/1921; ou Generación judicial, por sua atitude frente ao passado.

Jovens precoces e brilhantes, só reconheciam a um professor das gerações anteriores: o anarquista Manuel González Prada, do qual vale ressaltar a idéia judicial da vida peruana, a condenação radical do passado imediato, a denúncia do fracasso da classe dirigente, a reivindicação dos excluídos por antonomásia da "farsa de República": os índios. Dificilmente seria possível imaginar um futuro diferente a partir das forças atuantes no presente. Havia que buscar no passado: Manuel González Prada abriu o caminho pelo qual transitariam os indigenistas e Riva Agüero. Os primeiros reivindicariam o passado mais remoto e aparentemente menos contaminado: o Incaico. O segundo, o glorioso século XVII e as possibilidades de gestação de nobrezas crioulas e mestiças. Com eles inaugurou-se uma matriz do pensamento histórico regida pela ucronia (reconstrução da história tal como poderia ter sido) e que exerceria um papel decisivo no pensamento político e social, a ponto de tornar-se parte do sentido comum, tal como detectado por Gonzalo Portocarrero e Patricia Oliart em pesquisa sobre o "pensamento crítico" do Peru, realizada há vários anos com estudantes6.

Muitos deles eram provincianos - ainda que não fossem poucos os de Lima - e mestiços. Sendo intelectualmente brilhantes, estavam longe da erudição estéril. Inclusive os que passaram pelas universidades eram fundamentalmente autodidatas. Valorizaram a intuição, os foros da imaginação: a arte e a poesia"7. Transitaram pela boêmia, realizaram sua experiência de modernidade em uma Lima que mais que uma metrópole lhes parecia uma "aldeia grande", em outra expressão juvenil de Mariátegui. Não romperam com suas tradições: as redefiniram. Apesar das distâncias e das escassas comunicações, procuraram a todo custo estar a par do continente e do mundo. Alguns acontecimentos europeus os marcariam: a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Revolução Russa (1917). Literariamente transitaram do modernismo ao vanguardismo; do ponto de vista filosófico, sentiram-se pouco atraídos pelo positivismo, tendo sido impactados pelas filosofias da vontade e da vida. Em Mariátegui encontramos referências precoces a Schopenhauer, em sintonia com o pessimismo que lhe inspira a vivência em uma sociedade fechada. Anos depois, sua admiração se deslocaria para Nietzsche, Bergson e Miguel de Unamuno.

A Europa, em crise material e espiritual - como insistiria reiteradas vezes a revista Amauta -, provocou-lhes uma dupla reação: de um lado, a descoberta de si mesmos, do continente e sua especificidade; de outro, a valorização do arsenal cultural ocidental como componente indispensável para a gestação de identidades e projetos. "Tive na Europa meu melhor aprendizado", afirma o autor de Sete ensaios na "Advertência". E acrescenta: "Creio que não há salvação para a América índia sem a ciência e o pensamento europeu e ocidental". Isso também se aplicava à poesia e à política. Sua abertura para as correntes cosmopolitas de vanguarda não só alimentou a crítica ao tradicionalismo colonial, mas coincidiu com a redescoberta do mundo andino. No último parágrafo dos Sete ensaios, José Carlos Mariátegui resumiria bem esta experiência: "Pelos caminhos universais, ecumênicos, que tanto nos repreendem, nos reaproximamos cada vez mais de nós mesmos."

A civilização como tema

Mariátegui teve a oportunidade de realizar sua "experiência européia": viveu na Itália e viajou por outros países do continente europeu entre 1919 e 1923. Como reconheceria ao regressar, lá amadurecera suas intuições e opções juvenis que se nutriram de seu atento acompanhamento da realidade peruana em seus anos de jornalista (1911-1919). Essa experiência não lhe permitiu somente descobrir o país, o continente e a si mesmo, mas também construir seu próprio ponto de vista sobre o mundo.

Não é por acaso que o maior volume da obra madura de José Carlos Mariátegui seja dedicado à análise do cenário internacional; nem tampouco que nela se confundam escritos sobre política, filosofia e cultura. O fio condutor é reiterado: a crise mundial, a crise de civilização. Assim que desembarcou em Lima, em maio de 1923, desenvolveu um ciclo de conferências na Universidade Popular que hoje conhecemos por intermédio do livro Historia de la crisis mundial. Vale a pena citar um dos parágrafos finais da primeira conferência:

"A crise mundial é, pois, crise econômica e crise política. É, além disso e sobretudo, crise ideológica. As filosofias afirmativas, positivistas, as da sociedade burguesa estão, há muito tempo, minadas por uma corrente de ceticismo, de relativismo. O racionalismo, o historicismo, o positivismo declinam irremediavelmente. Este é, indubitavelmente, o aspecto mais profundo, o sintoma mais grave da crise. Este é o indício mais definido e profundo de que não está em crise apenas a economia da sociedade burguesa, mas que a crise da civilização capitalista, da civilização ocidental, da civilização européia é integral."8

A idéia de crise está em sintonia com a idéia de "época"; ou seja, de tempo histórico dominado por determinadas idéias-força. Uma época dominada pela idéia de crise e de mudança só pode configurar-se em uma época romântica ou revolucionária, em contraposição às épocas clássicas. Comentando um poema de Martín Adán, definido como "puro disparate", Mariátegui escreveria:  "O disparate puro certifica o falecimento do absoluto burguês. Denuncia mais o rompimento de um espírito, de uma filosofia do que de uma técnica. Em uma época clássica, espírito e técnica mantêm seu equilíbrio. Em uma época revolucionária, romântica, artistas de estirpe e de contextura clássicas como Martín Adán, não conseguem conservar-se na tradição9."

Desse ponto de vista, mais que um acontecimento singular, a revolução constitui-se em um período relativamente prolongado de trânsito. Uma "época", mais que um acontecimento; "a somatória de infinitos atos de soberania", para empregar uma expressão de Rosa Luxemburgo9. Muito mais que mudança econômica ou política, uma mudança de civilização. Longe de ser um mero reordenamento da modernidade burguesa, o socialismo em Mariátegui surge claramente como a proposta de outra modernidade. Modernidade que não renuncia à racionalidade, mas que constrói a sua própria. Que reivindica foros da intuição e da imaginação. Que incorpora as tradições nacionais presentes no trabalho de criação de uma nova ordem. A partir de um comentário da poesia de Jorge Manrique, José Carlos Mariátegui escreveria dois artigos fundamentais para a elucidação do problema da relação entre tradições e revolução. Distinguindo naquelas seu aspecto ideal de seus aspectos empíricos, afirma: "a tradição desta época vem sendo feita pelos que, às vezes, parecem negar, iconoclastas, toda e qualquer tradição"10.

Isto não apenas define as características do projeto histórico que José Carlos Mariátegui assumiria, mas também seu que fazer imediato. Se o socialismo é uma nova civilização que comporta uma época de transição, os sujeitos chamados a construí-lo devem ter características muito especiais. Não só enraizamento social mas, também, integridade ético-cultural. Em Defensa del marxismo11, polemizando com visões miserabilistas da revolução, Mariátegui dará uma importância especial à construção ético-cultural da classe, em um processo que se inaugura na fábrica e tem sua continuidade no sindicato, sem que nele se esgote. Mariátegui projeta-se na apropriação e recriação da cultura universal. Talvez isso explique porque as melhores produções de Mariátegui façam parte da galeria das mais altas produções culturais do século XX. Assim como a amplitude temática de Sete ensaios.

Cruzamento de duas épocas: Amauta (1926-1930)

Alberto Flores Galindo definiu Amauta, revista fundada por Mariátegui em 1926, como a ante-sala do Partido [Comunista], o espaço em que amadureceria o sujeito político do socialismo peruano. Poderíamos dizer que o "leitor ideal" da revista haveria de ser o militante ideal do socialismo peruano. A qualidade da revista até hoje surpreende; trata-se, sem dúvida, de uma das mais importantes revistas não apenas do Peru, mas do continente. E é bem provável que sua complexidade temática continue alimentando a suspeita de que representou mais um gesto diletante ou um divertimento pessoal do que uma atividade militante.

Amauta prescinde de rótulos e definições a priori, valoriza os processos, tal como assinalado na "Apresentação" de seu primeiro número:

"Sente-se, já há algum tempo no Peru, uma corrente cada vez mais vigorosa e definida de renovação. Aos fautores dessa renovação se lhes dá o nome de vanguardistas, socialistas, revolucionários etc. A história ainda não os batizou definitivamente. Há entre eles algumas discrepâncias formais, algumas diferenças psicológicas. Entretanto, para além do que os diferencia, todos estes espíritos têm em sua vontade de criar um Peru novo em um mundo novo o elo que os aproxima e une"12.

Não é o caso de buscar aqui uma síntese da trajetória da revista, suas etapas, suas linhas mestras etc.A esse respeito cabe assinalar que à bibliografia sobre o tema se somará em breve a edição em livro das conferências apresentadas no evento internacional organizado em setembro de 1996, por SUR - Casa de estudios del socialismo em parceria com a Casa Mariátegui. É suficiente assinalar algumas características significativas a partir de algumas presenças particularmente expressivas. O que o leitor habitual de Amauta encontrou na revista?

Em primeiro lugar, um único texto de Marx, da série hoje conhecida como La revolución en España. Não é casual: trata-se de um texto no qual o método marxista apresenta-se de modo criativo diante de uma sociedade não-capitalista, que para ser entendida requer, além da análise dos ciclos econômicos, a compreensão de suas tradições. Além disso, alguns textos dos líderes do socialismo revolucionário, mas não só Lenin e Lunatcharski, mas também Rosa Luxemburgo e até mesmo Trotski, naqueles anos já em desgraça.

Encontraria ainda outras críticas profundas e pungentes da sociedade/civilização capitalista: alguns processos da psicanálise, por exemplo; a proposta estética de Gorz e a dos surrealistas. Além disso, teria lido Miguel de Unamuno. Assim como o mais destacado seguidor peruano de Bergson: Mariano Iberico.

No campo da literatura, teria encontrado o melhor de seu tempo: não só a nascente literatura soviética - autores que significativamente começavam a ser suspeitos, como Fedor Gladkov - e também as diversas manifestações da vanguarda literária. Em um artigo do próprio Mariátegui, teria lido uma demolidora crítica do populismo literário e um entusiasmado elogio a Joyce, cujo Ulisses era recomendado como o livro de cabeceira de todo revolucionário.

No campo da poesia latino-americana e peruana, teria conhecido a obra de Neruda e Borges, jovens que engatinhavam em busca de um estilo próprio. Assim como os peruanos Vallejo, Westphalen e Martín Adán, três vozes maiores de nossa poética no século XX. Sem deixar nunca de reconhecer em José María Eguren o maior poeta vivo de então, delicado simbolista, poeta puro por antonomásia. Esse último ocupa mais espaço que todos os poetas indigenistas juntos.

Poderíamos continuar enumerando presenças, em particular as dos mais destacados intelectuais latino-americanos da época: Palacios, Vasconcelos, Ingenieros, Arciniegas, Mella etc.

Talvez uma das conclusões mais importantes e atuais a que se possa chegar seja a de constatar o quão difícil é estabelecer em Amauta a linha divisória entre política (ou socialismo) e cultura. Essa revista foi fiel ao ditado clássico "tudo o que é humano é nosso", citado na apresentação do primeiro número. A agudeza da crítica cultural dava as mãos ao talento político. Nesse contexto cabe mencionar, ainda que não tenha sido publicado em Amauta, um texto que merece figurar em qualquer antologia universal da crítica cultural e/ou cinematográfica: Esquema de uma interpretação de Chaplin13.

Este texto começa afirmando que "O assunto Chaplin parece, no âmbito de qualquer explicação de nossa época, não menos considerável do que o assunto Lloyd George ou o assunto McDonald" (ambos destacados políticos britânicos daquela época). E, depois de analisar A corrida do ouro, encontrando no filme "o capítulo romântico, a fase boêmia da epopéia capitalista", passa a construir uma explicação social do cinema, do circo e das artes como um todo nas condições do capitalismo. Descobrindo o caráter subversivo de Carlitos: "A arte atinge, com Chaplin, o ápice de sua função hedonista e libertadora. Chaplin alivia, com seu sorriso e seus traços doloridos, a tristeza do mundo. E contribui mais para a miserável felicidade dos homens do que qualquer de seus estadistas, filósofos, industriais e artistas."

Amauta é um espaço que se redefine, é um processo, uma obra em construção: começa como revista de cunho ideológico, porta-voz de uma geração, de um movimento de renovação. A uma certa altura, declara-se socialista, depois de um intenso debate com Haya de la Torre e sua proposta nacionalista, sem tornar-se sectária. Em sua 17ª edição (setembro de 1928) é publicado o famoso texto "Aniversário e balanço" que inclui frases hoje célebres:

"Certamente, não queremos que o socialismo na América Latina seja cópia e decalque. Deve ser uma criação heróica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis aqui uma missão digna de uma geração nova."

O número seguinte é dedicado a José María Eguren, o poeta puro já mencionado anteriormente.

Sete ensaios: interpretar para transformar

Sete ensaios parte do pressuposto de que "a realidade é sempre a realidade interpretada" a partir de um determinado ponto de vista. Daí a reiterada confissão do autor de não ser "um crítico imparcial e objetivo": "Minha crítica não se quer imparcial ou agnóstica, se é que a verdadeira crítica é capaz de sê-lo, coisa na qual não acredito em absoluto. Toda crítica obedece a preocupações de filósofo, de político, ou de moralista." 14.

Pois bem, os pressupostos de tal crítica, seus legítimos pré-julgamentos, só podem ser elucidados pela própria crítica. Isto é, pelas opções que assume, os pontos de vista que adota, as exclusões que produz. Uma leitura contemporânea de Sete ensaios deve perguntar-se antes que pela validade dos resultados do exercício crítico, pela validade dos pressupostos da mesma frente aos problemas do presente. Poderia ocorrer que tendo envelhecido todas e cada uma das afirmações que o texto inclui, o ponto de vista que as produziu mantenha intacta sua capacidade crítica para reproduzir uma nova interpretação do país.

Um primeiro aspecto a ser destacado é que Mariátegui, não sendo historiador de profissão, compreendeu em seu momento a relação peculiar que se iniciava no Peru entre historiadores e política: "A faculdade de pensar a história e a faculdade de fazê-la e criá-la, se identificam"15.

Sete ensaios foi escrito em clave histórica. Todos os problemas analisados se apresentam como um problema histórico: o primeiro intitula-se "Esquema da evolução econômica"; o segundo - "O problema do índio" - é uma "sumária revisão histórica" que ocupa a metade do texto; em "O problema da terra", analisa a questão agrária peruana, da conquista até o início do século XX; quanto aos quarto e sétimo ensaios, é suficiente ler os títulos: "O processo da instrução pública" e "O processo da literatura"; já "O fator religioso" e "Regionalismo e centralismo" são fundamentalmente apresentações históricas dos temas em questão.

Esta relação com a história não é exclusiva de Mariátegui. Nas representações que fazemos do Peru é indubitável que o peso da história é decisivo. Isto, assim como o papel peculiar dos historiadores em nossa sociedade, não é casual: responde à densidade de nosso passado e, seguramente, também à nossa incerteza quanto ao presente e ao futuro. É por isso que, como bem assinalou Guillermo Rochabrún, seu papel é ambíguo: "com freqüência o passado foi invocado para simplesmente condenar-nos"16.

Para além da própria vontade de Mariátegui de entender a história como raiz e não como programa, o peso do passado e de uma relação peculiar com ele levou a uma disputa inconclusa em torno do projeto proposto por Mariátegui em Sete ensaios. Dito de forma mais sintética, trata-se de uma crítica a partir do que se descobre possível - mas ainda não real - na modernidade, ou de uma crítica a partir das saudades do "bem perdido"? Trata-se de uma crítica a partir de um futuro possível, imaginado e desejado, ou de uma crítica a partir de um passado idealizado? As idealizações no texto são fartas, em particular com relação ao mundo andino - fala-se do comunismo incaico e se atribui à comunidade camponesa uma continuidade quase essencial com aquele.

Isto levou muitos a supor que o caminho próprio de Mariátegui identifica-se com a andinização do socialismo. Ou seja, com a atribuição, a determinadas características do mundo andino, de alternativas socialistas. Saudada por uns, estigmatizada por outros, essa andinização do socialismo seria a criação mais heróica de Amauta. A uma distância de sete décadas, não só o conhecimento do mundo andino, mas a própria evolução de suas instituições põe em causa tal projeto. Este convite a uma leitura contemporânea de Sete ensaios propõe-se, entre outras coisas, a identificar com maior nitidez a originalidade do socialismo de José Carlos Mariátegui. Originalidade que se descobrirá mais do que em alguma das teses presentes no texto, no ponto de vista que as constrói.

(Tradução de Mila Frati)

Eduardo Cáceres Valdivia é bacharel em filosofia, foi secretário-geral do Partido Unificado Mariateguista.