Cultura

Primeiro Prêmio Nobel de Literatura da língua portuguesa, José Saramago opõe ao individualismo contemporâneo o sonho de uma sociedade mais humana

Numa época de falta de convicções, a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura a José Saramago constitui um fato altamente relevante. Toda a arte literária desse ficcionista português aponta para suas convicções político-sociais, dialogando com imagens da utopia socialista. Ao individualismo contemporâneo (para ele um mundo de cego, como aparece no seu romance Ensaio sobre a Cegueira1, opõe o seu sonho de uma sociedade mais humana, pautada pelos valores da solidariedade.

Tais convicções ideológicas levaram-no a irmanar-se em outubro  do ano passado com Fidel Castro na cidade do Porto, em Portugal, quando se realizava a última Conferência de Cúpula Ibero-americana e se comemorava nacionalmente a atribuição, pela primeira vez, do mais significativo prêmio literário mundial a um escritor de língua portuguesa. José Saramago repartia  assim com o líder cubano as maiores atenções desse evento, que teve a participação dos chefes de Estado e intelectuais dos países ibero-americanos. É dentro desse horizonte de uma comunidade ibero-americana (por onde também se direcionam os sonhos do escritor), que pode ser situada uma das orientações básicas do seu trabalho literário. Significativamente, José Saramago vive atualmente na pequena ilha de Lanzarote, nas Canárias, um ponto no Atlântico entre Europa, África e Américas, para onde se mudou em 1993.

Uma ilha, no meio do caminho

Mais do que um escritor europeu, José Saramago é um escritor português que traz a maneira de ser do homem ibero-americano, através de sua face portuguesa. Para exemplificar, pode-se fazer referência ao seu romance A jangada de pedra2, que se presta à discussão do caráter nacional português, em face de uma dupla solicitação: a recente integração na União Européia (ao que tudo indica, como nação periférica)e a singularidade que leva o país a identificar-se, ao lado da Espanha, com suas ex-colônias.

Na efabulação desse romance, a Península Ibérica "descola-se" da Europa e desloca-se pelo Oceano Atlântico, vindo a estacionar num ponto ao sul, eqüidistante das Américas e da África. O deslocamento é simbólico: uma "viagem" que embute questões político-culturais e que permite, assim, que se sonhe com uma comunidade não apenas dos países de língua portuguesa, mas dos países ibero-afro-americanos.

Organizado em torno de estratégias geopolíticas e associado à situação histórica pós-abril de 1974, quando houve a redemocratização do país após quatro décadas de ditadura neofascista, esse romance permite repensar a cultura portuguesa em face de uma dupla solicitação: a integração européia e a singularidade peninsular. Esta singularidade liga-se às perspectivas que marcaram a história de Portugal: a atlanticidade (Portugal voltou-se historicamente pra o Atlântico dando as costas à Europa); a ibericidade (a formação cultural portuguesa se fez paralelamente à do conjunto da Ibéria, com a participação das culturas de origem céltica e semítica); e a mediterraneidade (o Mediterrâneo reuniu historicamente as culturas clássicas e as semíticas).

O nacional e o comunitário

O nacional - o sentimento de parentesco mais geral de um povo - ultrapassa, assim, no romance de Saramago, as fronteiras do Estado português. Sem as limitações coloniais, tornam-se possíveis formas de aproximações comunitárias. Dessa forma, poder-se-ia afirmar que o enfraquecimento dos Estados nacionais favorece a possibilidade de uma aproximação comunitária supranacional, como se pode observar nas contínuas conferências de cúpula realizadas entre nossos países e na formação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. É verdade que atualmente é geral a tendência de aproximação na dinâmica dos comunitarismos entre os povos, que os leva para novos reagrupamentos determinados por afinidades culturais.

Dentro dessa perspectiva, torna-se importante também para nós brasileiros uma efetiva implementação de estratégias político-culturais que permitam  (re) imaginar essa constelação de países ibero-afro-americanos - uma comunidade que, segundo previsões, atingirá cerca de 645 milhões de falantes do português e do castelhano para o início do século XXI.

Uma comunidade ibero-afro-americana, imaginada assim em termos de futuro, como as imagens da jangada de Saramago levam a refletir, não se voltaria para os símbolos do passado, mas permitiria reimaginar a nação, cada uma das nações, numa relação mais estreita e aberta. Já não é o momento de se ficar olhando para trás, limitando-se à ritualização de heróis, sejam esses atores sociais de caráter monumental ou representativos das ruínas de cada pátria.

A nova nação, reimaginada sob influxos desse horizonte comunitário comum e sem as sobredeterminações coercitivas de Estado, aproxima-se mais facilmente de suas parentes - filhas, irmãs e sobrinhas. No horizonte dos seus atores não figuraria a pátria tradicional, mas simbolicamente uma mátria (em termos culturais) ou mesmo uma fratria, entre nações irmãs.

Essa estratégia de integração, com laçadas envolvendo os países de língua espanhola e portuguesa, certamente não deixará de ser subsistema do atual processo de mundialização. É uma tendência correlata à UE, Nafta, Mercosul, CEI, Círculo do Pacífico, mas que se efetivaria com ênfase maior no comunitarismo cultural do que no territorial. Com isso emerge uma nova atriz: a comunidade, como pólo de integração dos tradicionais Estados nacionais.

A comunidade ibero-afro-americana desloca-se hoje ainda timidamente dos sonhos de José Saramago para um direcionamento estratégico em nível governamental (conferências de cúpulas ibero-americanas e formação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). É dentro deste contexto que se pode explicar o gesto de José Saramago festivamente abraçado a Fidel Castro, imagem que consubstancia a intersecção do comunitarismo social com o comunitarismo cultural sonhado pelo escritor. Recorde-se, nesse sentido, que o romance A Jangada de pedra tem como epígrafe uma referência de Alejo Carpentier, escritor cubano, que também convicção que "Todo futuro es fabuloso". como nessa efabulação sonhadora do escritor português.

O sonho e o projeto

A trajetória literária de José Saramago, iniciada em 1947, tem como marco artístico a publicação da narrativa Manual de pintura e caligrafia, uma espécie de exercício de incorporação de técnicas literárias que propiciarão as bases de seu primeiro grande sucesso de crítica e de público: Levantando do chão3, romance que denuncia a exploração dos latifundiários do Alentejo e narra como os trabalhadores se "levantam do chão", fantasticamente os mortos e os vivos, para a grande marcha da revolução anti-salazarista de 1974. Começava então a recontar ficcionalmente a história portuguesa na óptica dos oprimidos, valendo-se de documentos históricos e literários, muitas vezes invertendo com humor, outras com ironia próxima do sarcasmo, suas formulações discursivas (discurso ideológico oficial).

Memorial do convento4, talvez sua melhor realização literária, mostra algumas de suas estratégias discursivas, quando inverte - entre outras imagens de personagens e situações que seriam típicas dos inícios do século XVIII, quando da construção do convento de Mafra, em Portugal - as relativas ao brasileiro padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Essas imagens sarcásticas e preconceituosas estão num opúsculo editado pela Universidade de Coimbra em 1935, que foi apropriado por José Saramago, justamente para subvertê-lo ironicamente. Como se sabe, Bartolomeu de Gusmão procurou concretizar seu sonho de voar construindo um aeróstato - a passarola, que imbricava a forma de um pássaro com o da caravela. A experiência não deu certo e ele foi ridicularizado.

O título do opúsculo anônimo é Descrição burlesca de um imaginário aeróstato e de seus apetrechos, sátira ao padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão5 e ele procura associar a postura científica do inventor com a alquimia e a bruxaria, contra as quais se colocava a Inquisição. Saramago, em seu romance, torna seu o sonho de Bartolomeu  de Gusmão, e a sua passarola voa, justamente para se distanciar do mundo opressivo de seu tempo. E o faz com a força alquímica ridicularizada na Descrição burlesca..., enfatizando  que o aparelho alça vôo por conseguir sintetizar no âmbar (ao contrário do que afirma o autor anônimo) as vontades individuais. Isto é, simbolicamente, o aeróstato se eleva pela vontade coletiva - uma espécie de potencialidade subjetiva, vontade coletiva, capaz de materializar o sonho num objeto. Trata-se, pois, de um sonho diurno capaz de mobilizar a ação coletiva num projeto.

Como no mito de Ícaro, ao elevar-se o artefato (produto da imaginação e da técnica) permite fugir e compreender os traçados de um mundo labiríntico. É uma forma de se conseguir a liberdade. Ao contrário do mito grego, onde Ícaro não poderia aproximar-se do Sol que derreteria a cera de seu artefato, em Memorial do convento passarola dele dependia. Tal como o Sol se levanta e se põe, a reunião das vontades é diurna e segue seus movimentos de ascensão e de queda.

Ortodoxia e heterodoxia

Ao contrário do zdanovismo reducionista do chamado socialismo real e de suas práticas ortodoxas, o imaginário de Saramago aponta para soluções heterodoxas à margem do poder de Estado e de caráter comunitário. Essa ortodoxia minimizava a potencialidade subjetiva (do escritor, do leitor), considerando a literatura apenas como representação dos discursos provenientes das séries culturais mais diretamente vinculadas à infra-estrutura. Se essa ortodoxia procurava domesticar a subjetividade individual, em função de uma objetividade que subestimava a força das vontades daqueles que afinal são sujeitos da história, a perspectiva heterodoxa torna-as uma potencialidade subjetiva, o sonho diurno motivado, no dizer de Ernst Bloch, pelo princípio esperança.

Saramago situa-se entre os escritores motivados pela utopia libertária. Pela imaginação procura construir suas passarolas, acreditando num mundo mais humano, libertário, sem os labirintos traçados pelos que detêm o poder. Ao recontar ficcionalmente a história de seu país, há em seus romances um horizonte de sonho, contra a indiferença social do individualismo contemporâneo. É a própria nas concretizações utópicas uma indefinição do tempo: seria como se o futuro se expressasse no presente - uma materialização, com base no desejo de seus atores, que traz a utopia para ser vivenciada no presente. São momentos, uma espécie de iluminação que dialoga com o devir, como no vôo da passarola de Memorial do convento.

Benjamin Abdala Júnior é professor da área de estudos comparados da literaturas de língua portuguesa na USP