Nacional

Depois de ter um quinto do PIB do país transferido nas privatizações, o Estado brasileiro não pode mais estabelecer seus próprios parâmetros, porque já não existe enquanto conformação da sociedade

Examinado por qualquer dos critérios que, no campo da política, definem as formas do Estado e dos regimes políticos, o Estado brasileiro e o regime vigente podem ser classificados de democráticos ou, no mínimo, poliárquicos. Está-se na terceira eleição presidencial, caminhando-se para a quarta; um impeachment serve tanto de prova da autonomia do Poder Legislativo quanto da ausência de impunidade; a mais alta corte de justiça pronuncia-se freqüentemente sobre assuntos constitucionais e uma vez ou outra contraria o consenso entre o Executivo e o Legislativo; nenhuma tentativa de obstaculizar a posse de Itamar Franco se registrou; há alternância de poder entre indivíduos do corpo político e entre partidos, e até mesmo partidos políticos francamente dissidentes concorrem pelo poder estatal. A vontade do povo foi assegurada ao ponto de introduzir-se a reeleição para os postos do topo executivo, assim como os representantes parlamentares sempre desfrutaram dessa prerrogativa: se o povo está satisfeito, ele pode querer continuar com os mandatários superiores. Além disso, é democrático e da melhor tradição liberal que se dê a oportunidade da continuidade para desempenhos que se revelaram profícuos. Uma constituição e um amplo repertório de leis, regras, normas pautam as relações de todos os tipos e níveis entre os cidadãos, as empresas e os diversos níveis de poder, ao mesmo tempo que estão interditas todas as discriminações de sexo, étnicas, de classe, de crença de qualquer tipo. O princípio da territorialidade como jurisdição nacional não é contestado em nenhuma instância, nem por nenhum poder interno ou externo. Seria assim Shangri-lá?

Vista mais de perto, ou vivida durante um certo tempo, a ilusão se desfaz analiticamente, embora permaneça como totalidade. Desfolhemos a margarida, pétala por pétala, começando pelo fim. O princípio da territorialidade como jurisdição nacional não é, realmente, contestado. Só que ele é relativamente inócuo, a não ser como jurisdição de controle da força de trabalho. Sob outros pontos de vista, os Estados nacionais, contemporaneamente, foram supraterritorializados: guerra do Iraque, Bósnia, Iugoslávia e Kosovo, Granada, Panamá, para citar os mais ostensivos, e FMI, o menos ostensivo e o mais letal. É o lado da globalização que não é assumido enquanto tal, mas parece impulsionado por um dever global – diga-se as maiores potências, diga-se EUA – de manter os sistemas democráticos (?) em sua aura de intocabilidade. E a performance do capital fictício, que se move além fronteiras com a facilidade da Internet, escapa a toda territorialidade.

Há sinais visíveis de uma oligarquização não personalizada, na maioria dos casos, embora notórios caciques sejam reconhecidos pela vassalagem a que submetem largas porções de Estados, regiões e corpos políticos. A oligarquização não personalizada revela-se muito mais nas cliques, algumas até gangsteres, que nas figuras. Como se diria em teoria do oligopólio, há "barreiras de entrada" e de controle fechando os santuários do poder. Uma coalizão, insuspeitada para o olhar menos avisado, mantém-se no poder desde a redemocratização – vá lá a palavra – estruturalmente formada com os náufragos do ancién regime, e a aparente dança da infidelidade partidária não é outra coisa que um método político de "barreira", evitando-se sempre que conjunturas não previstas desfaçam a sólida maioria da ordem. Mas não é de oligarquização que se trata.

A independência dos poderes está sob o constante crivo do Ministério da Fazenda, vale dizer do Executivo presidencial. Questões como piso e teto salarial, como ilustra a recente e ilustrativa polêmica, espécie de batalha de Itararé do folclore político, são decididas pelo metro da Fazenda, isto é, pelo metro de fazenda e da fazenda. A federação sucumbe à ausência de um centro federativo, travando o que chamam de "guerra fiscal", que é um dos sintomas mais claros da desterritorialização, vista de dois ângulos: o primeiro, o da inocuidade da jurisdição, e o segundo, o da supraterritorialização do capital, que é um conceito melhor que o da globalização. O Legislativo impõe tetos, proporções e limites para gasto com pessoal aos estados federados e municípios e, se estes não cumprem, então a Fazenda os pune com cortes de recursos constitucionalmente assegurados. O uso abusivo das medidas provisórias pelo Executivo, superando até mesmo as marcas de regimes declarada e assumidamente "de exceção" – Vargas e a ditadura militar de 1964-84 –, é sinal não apenas da inocuidade do Legislativo, que se inscreve, aliás, numa tendência mundial de reforço do Executivo, mas, no caso da periferia, sinal da inocuidade do próprio Executivo. O ad hoc permanente transformou-se em permanente ad hoc: se o FMI recomendar – exigir, na verdade, sem meias-palavras – uma medida econômica tida como de emergência, tome medida provisória; não se trata de um redondo trocadilho, mas da impossibilidade de regras estáveis, da ausência de formas. O autoritarismo espreita, mas até ele é insuficiente: não muito longe, "nós que aqui estamos por vós esperamos" no estreito corredor do fascismo.

A periferia globalizada é reduzida, quase, à condição de província do império mas, cuidado, se a frase de efeito é boa permanece insuficiente e, talvez, inadequada. O permanente ad hoc é a nova condição periférica. Tensionada por uma aceleração talvez sem precedentes, obrigado a reciclar-se na velocidade da luz, o elemento central do Estado capitalista, a moeda, evapora-se: já a hiperinflação dos tempos do cólera – Sarney e em seguida Collor – anunciava-o. A indexação não era mais que isso, de forma ainda inacabada, canhestra. A estabilidade monetária e as moedas ancoradas, o real, o peso argentino e o peso mexicano, dizem tudo, escancaradamente, sem ambigüidades: para realizar o ajuste em tempo real, uma moeda nacional é um anacronismo, o melhor e mais adequado é o dólar. A Argentina já tornou-se um sistema monetário com uma moeda boa e uma moeda má (Gresham) e somente ainda não adotou o dólar de uma vez porque o Império recusou. Mas faz parte de Shangri-lá maquiar a prisão em liberdade, um truque de moeda falsa em aparência de autonomia e ilusão de estabilidade.

Sem moeda, um Estado não é nada; Shangri-lá não tinha moeda, ou alguém se lembra de Ronald Colman pagando alguma coisa? Sem moeda, perde-se o monopólio legal da violência e a capacidade de devolver à sociedade, da qual é sua conformação, regras e normas. Do tráfico de drogas ao de armas, interpenetrados por gangues que se arvoram não em representantes da lei, mas em distribuidores da justiça, os "justiceiros" das favelas e bairros pobres, a ausência do Estado é a contraface da dramática pobreza, que se acumula como montes de lixo, fracasso do Estado, sintoma do não-Estado, rictus do terror total. Mas se engana quem parar aí, como coisa de pobres e marginais. Uma conhecida animadora-apresentadora, nova griffe do parasitismo das classes dominantes, anunciou, depois de ser assaltada dentro de seu luxuoso apartamento, que se faria acompanhar de dois seguranças 24 horas por dia; até "naquelas" horas...? A blindagem de carros é hoje um setor "emergente", e sem dúvida o IBGE está anotando que por ali passa o crescimento do PIB.

A poliarquização da violência, para não dizer sua democratização, o que seria de um cinismo imperdoável, está ancorada na abissal desigualdade social, primariamente, e no Estado Shangri-lá. Pois a perda da moeda implica, também, que nenhuma política é possível; parece, apenas, que a política social é que se tornou impossível, mas a questão vai fundo: não há, também, política econômica, em quaisquer de suas acepções. Do permanente ad hoc: da não-política fiscal, eternamente remendada, à não-política federativa, com a permanente "guerra fiscal". Que quer dizer a emenda votada recentemente, o chamado DRU, substituto – eterno? logo veremos – do Fundo de Estabilização Fiscal? Que quer dizer não poder prever os próprios movimentos, nem mesmo os cortes permanentes de recursos orçamentários, por isso o DRU para "ajustar" permanentemente? Não era a hiperinflação a causa da imprevisibilidade? Restaurada a estabilidade monetária, restaurou-se a previsibilidade? Absolutamente. Tudo isto significa que esse Estado não pode estabelecer seus próprios parâmetros, porque ele já não mais existe enquanto conformação da sociedade.

A raiz está na aceleração implacável, que pode ser exemplificada – mas não resumida na – pela formidável transferência de patrimônios operada nos últimos cinco anos. Um quinto do PIB brasileiro foi transferido no banquete d(e)os próspero(s) das privatizações. Com uma aceleração desse porte, nenhuma forma de Estado pode resistir. Os capitalismos tardios foram, sem exceção, cenários dessa implacabilidade e, não à toa, todos resultaram em regimes totalitários. Destampada a caixa de Pandora, o mágico tornou-se incapaz de controlar o que pensava serem seus coelhos de cartola.

Incapaz de qualquer controle, dos preços e tarifas ex-públicos que subiram dezenas de vezes mais que a inflação, incapaz de deter a avalanche do desemprego, que todas as privatizações produziram. Apesar de que na maioria das privatizações de empresas figurava um item – não uma cláusula taxativa – helas! de garantia do emprego.

Que restou ao Estado Shangri-lá? Congelar os salários dos funcionários públicos de todos os níveis, incluindo-se os estados e municípios, de que somente escapam os altos escalões do três poderes e as assessorias. Mas nem sequer o congelamento afirma o poder estatal: na verdade, por não poder prever, resta apenas congelar; qualquer outro movimento, pequenos reajustes que fossem, evidenciariam de forma incontestável a fragilidade estatal, sua incapacidade de controlar qualquer movimento do lado dos preços, precisamente como ocorria no longo período de alta inflação. O congelamento dos salários dos funcionários públicos é uma forma da destituição dos direitos, imposta pela instabilidade que resulta da aceleração implacável da dívida pública como mecanismo de acumulação primitiva; tal modalidade termina por ser a única que pode realizar a subordinação à estratégia da globalização.

O congelamento transmite-se aos salários dos trabalhadores do setor privado, como resultado de uma dupla determinação: de um lado, a destituição de direitos operada pela estratégia de silenciamento e desqualificação das organizações do trabalho que as empresas aproveitam para reduzir a folha salarial; de outro, a forma financeira dos lucros que, embora descolados agora do capital variável produtivo, devem se reportar às taxas globais e compensar as devastadoras desvalorizações que podem ocorrer imprevistamente. Um círculo infernal se fecha sobre as economias periféricas. O Estado e suas agências reguladoras assistem ao processo dos camarotes da... Brahma.

Apesar da grande resistência dos jornais de griffe, todos tendem a transformarem-se em simulacros de suas próprias réplicas "populares", embaralhando a página policial com a da política, a de esportes, a cultural, fora, evidentemente, a página econômica, que é de polícia quase por definição. Menos que o gosto pela ironia – Henri Lefèbvre dizia que quando a ciência não sabe como enunciar, apele-se para a ironia – a repetição, que corre o risco de tornar-se monótona e por isso, perigosa, das chacinas, corre parelha com os desvios de verbas culturais, numa velada homenagem a Chatô, o rei da pilantragem, com a compra de votos para a reeleição, com os precários precatórios, com jogadores e clubes que falsificam idades, com as denúncias de uma ex-primeira dama, e finalmente com as fraudes de remédios, formação do cartel antigenéricos, golpes de bolsa e na bolsa. Falta algo?

Desliza-se perigosamente para uma espécie de anomia estatal, uma falta de formas, uma falsa forma. O enorme repertório teórico de que se dispõe sobre formas do Estado e dos regimes políticos pavimenta o chão da pesquisa, mas forçoso é reconhecer a urgência de uma teorização radical que assuma a tarefa de deslindar o enigma do vazio estatal na periferia que, como sempre, constitui apenas a exacerbação por antecipação da crise no próprio centro capitalista. Não há nenhuma dúvida de que as respostas da sociologia e da ciência política convencionais são claramente insuficientes, ou talvez definitivamente superadas. O século que acaba foi pródigo em inventar atrocidades e genocídios para os quais a ciência social não tinha os conceitos suficientes, apesar da herança hobbesiana; mas o nazismo, o Holocausto e o stalinismo estavam muito além de Hobbes... Noutro registro, para não ficar apenas nas catástrofes, a América Latina – ou seremos uma catástrofe? –, com os cepalinos, interpretou-se a si mesma, na herança de um Caio Prado Jr. e um José Carlos Mariátegui, suprindo a falta de um conceito, para além do colonialismo e mesmo do imperialismo de Lenin. Agora, trata-se de dar conta do que pode ser, apenas para recuperar o gosto pelo paradoxo, a catástrofe tranqüila: um Estado-não-Estado, uma violência não-violenta, uma exceção permanente. O catálogo dos sintomas é enorme, como este ensaio tentou fazer, mas tampouco é suficiente. Talvez o problema maior consista em que uma nova totalidade não pode ser conceituada senão quando completamente formada: em outras palavras, ficam faltando as forças que se opõem ao Estado Shangri-lá para que o trabalho teórico do seu deslindamento possa ser formulado. É sempre a mesma questão: enquanto o conflito não produz a própria fala dos conflitantes, ele não pode sequer ser enunciado. Em outros termos, será preciso que as forças que se opõem a esses sintomas o nomeiem de alguma forma para que sua decifração possa ser feita. Chamá-lo simplesmente de neoliberalismo não é suficiente.

Francisco de Oliveira é diretor do Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania (Nedic) -USP.