Cultura

Sebastião Salgado é o olhar que capta a alma dos deserdados da terra. E nos entrega, a partir desse olhar, a grandeza das pessoas na desgraça; a altivez diante do sofrimento.

Henfil disse que queria ser a "mão do povo que desenha". Sebastião Salgado é o olhar que capta a alma dos deserdados da terra. E nos entrega, a partir desse olhar, a grandeza das pessoas na desgraça; a altivez diante do sofrimento.

Conheci Salgado em 1996, quando o acompanhei em seu trabalho por acampamentos e assentamentos dos sem-terra. Faltando 30 minutos para aparecer o primeiro sinal de luz, Salgado já estava à sua espera, e só guardava o equipamento quando anoitecia.

Eric Nepomuceno o chamou "Caçador de luz". Está sempre em busca de algo que, em um mundo de desintegração, represente vida e esperança.

Em suas fotos estão presentes o limite, o conflito, o mundo da humilhação, da opressão, mas também da esperança, da solidariedade e da capacidade humana de resistir. Seu foco intervém para provocar o debate e construir a solidariedade aos trabalhadores, porque encontrou na resistência destes uma forma de quebrar a lógica do mercado e de resistir ao que Salgado chama de "extinção da espécie". (RS)

Seu trabalho no Brasil é muito ligado ao Movimento dos Sem-Terra. Como você vê esse movimento?
O Brasil nunca teve política agrária nem agrícola. Sempre foi se fazendo na maior anarquia. A fronteira agrícola foi adentrando o país, abatendo florestas, destruindo e deixando atrás terra queimada e propriedades de tamanho imenso sem nenhum valor produtivo. Hoje o Brasil tem uma enorme concentração de renda. É um país de 160 milhões de habitantes com apenas uns quantos milhões de consumidores. Um país sem sentido!

Eu vejo a luta dos sem-terra como um elemento de modernização do país, de busca de equilíbrio social e econômico. Eu conheço o Movimento dos Sem-Terra há dezesseis anos. Para mim, o MST é um movimento de ocupação desse espaço vazio, para dar vida e sentido a essa terra. Eu o vejo como um elemento necessário tanto para a ecologia como para o lado social, da redistribuição de renda.

Há também o problema de conter a migração e não aumentar essa imensa população da cidade que não tem condição nenhuma de ser assimilada pelo setor urbano, nem industrial, nem terciário. Sua luta para que os trabalhadores permaneçam no campo, sobrevivam e produzam um excedente para o mercado vai permitir o funcionamento de outros setores da economia. Se um produtor industrial, um líder comercial ou banqueiro pensasse bem, ele seria o primeiro militante do MST.

Às vezes, eu conto na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, o que é a luta do MST e as pessoas dizem: não é possível que essa gente esteja lutando por isso! Isso é o mínimo de justiça que elas deveriam ter! Isso é o mínimo de racionalismo econômico que se deveria ter num país!

O MST é o movimento antiabsurdo. Viajei por esse interior, andei com os sem-terra em lugares diferentes e vi que existe honestidade, sinceridade e uma crença profunda de que eles vão obter justiça. Para mim, as reservas morais do Brasil vivem nas beiras de estradas, nesses acampamentos, esperando para ser assentados.

Por que você busca esta população para realizar o seu trabalho?
No Brasil, eu procurei os sem-terra, mas trabalhei também com o movimento rural em outros países latino-americanos e com movimentos sindicais, com imigrantes e com populações em movimento em vários países do mundo.

Por que você buscou a fotografia como forma de expressão?
A fotografia é uma linguagem universal de um simbolismo enorme. Por meio dela eu tentei me aproximar das pessoas que estavam lutando por alguma coisa e dar oportunidade a elas de se exprimirem. No fundo, me considero mais um vetor do que um fotógrafo "artista" ou um criador. Meu trabalho mostra um lado da problemática e dá oportunidade às pessoas que não têm acesso a ela de enxergar. Busco trazer o problema para a casa dela e provocar um debate.

A humanidade andou buscando, durante muito tempo, uma linguagem universal. Falou-se do latim, no início; depois, do inglês; houve um momento em que se tentou criar uma língua – o esperanto –, mas a linguagem universal foi criada. É a linguagem da imagem. E a fotografia é seu vetor principal. Quando se escreve nesta linguagem sobre os sem-terra, aqui no Brasil, ela pode ser lida sem tradução no Japão, na França, nos EUA. Todo mundo compreende.

O que você espera da sua imagem?
Quando vou com minha câmera para fotografar, levo o meu passado, minha história de Aimorés, lugar onde nasci, em Minas. Vou com meu pai, com minha mãe, com meus amigos. E carrego também a influência das imagens que vi ontem, anteontem, na televisão, nos jornais, nas revistas, nos outdoors. Eu vejo milhares de imagens por dia. E eu tenho consciência de que a linguagem vai passar e de que as pessoas talvez se exprimam mil vezes melhor por intermédio da imagem de uma câmera.

Na realidade não sou eu que faço a imagem. Eu a recebo da pessoa que está em frente a mim. E essa pessoa tem consciência do poder da imagem que ela está me dando. Há uma interação muito grande entre o fotógrafo e a pessoa que está sendo fotografada. Eu dou oportunidade a ela de falar por meio da minha câmera e ela fala para o mundo inteiro. O poder da imagem neste fim de século é fenomenal. E não existia com essa força, no Brasil, há 30 ou 40 anos, quando a maioria da população era rural e não tinha acesso às imagens, porque não existia televisão. A sua linguagem ainda era falada, uma linguagem de rádio. Depois é que esta população teve acesso à imagem por meio da televisão ou dos jornais. A partir daí, a população como um todo teve consciência do seu poder.

No caso do MST, nós publicamos o livro Terra em oito ou nove países diferentes. Editamos 3 mil exposições que foram difundidas no mundo inteiro. E quando eu converso com uma pessoa na Inglaterra, nos EUA, no Japão, em Bangladesh ou no México e a vejo fazer referência ao MST, por intermédio das imagens do livro ou das exposições, percebo como é fabulosa a capacidade da imagem ser compreendida.

Que papel pode desempenhar a imagem?
Se não houver um debate amplo, nós somos uma espécie que corre um risco muito grande de desaparecer. Se a gente se isolar, se acantonar, a possibilidade de sobrevivência da espécie é muito pequena. Antes da nossa, houve espécies tão maiores e mais potentes, como os dinossauros, que viveram talvez 90 ou 100 milhões de anos e que desapareceram aproximadamente há 70 ou 80 milhões de anos. Nós também corremos um risco imenso de desaparecer. A nossa história é muito curta. A história escrita da espécie humana tem 6 mil anos. O ser humano tem algumas centenas de milhões de anos, mas a história do ser humano começou a existir no momento em que ele começou a viver em comunidade. Então, a nossa história é a história da comunidade.

Hoje, estamos transformados em comunidade urbana e, o que é incrível, quanto mais nos urbanizamos, mais isolados ficamos. Você mora em um edifício e dificilmente conhece o vizinho, mas quando morava no interior, ou na aldeia, você conhecia a comunidade inteira. Tinha uma idéia de comunidade. Eu vi casos terríveis de comunidades que se isolaram tanto que começaram a agredir umas às outras. Rachas terríveis, religiosos ou étnicos.

Acho que é discutindo e compreendendo que vamos poder sobreviver e evoluir como espécie. E a possibilidade de sobrevivência vem da possibilidade de compartir, de participar com os outros, de evoluir junto.

Quando procuro o MST, na realidade estou procurando a maioria das populações do mundo. Porque viver como estou vivendo nesta casa, apenas 2% ou 3% da população desse país vive. Talvez 10% ou 15% viva de maneira razoável. Mas a grande maioria do país e do planeta não vive dessa forma. Então quando vou fazer essas imagens, a mínima contribuição que posso dar é ajudar a provocar este debate.

Seu foco busca sempre os atores excluídos da sociedade ou setores em processo de extinção. Você acredita que a imagem como memória ajuda a resistir à exclusão?
É um pouco isso. Mas eu não estou procurando fazer uma memória. Não fotografei um trabalhador de um setor que está em vias de modernização porque aquele trabalhador vai desaparecer. Não é porque eu fotografei o sem-terra que o trabalhador rural vai desaparecer.

Mas vamos abrir a discussão dos sem-terra, dos zapatistas no México, do sul da Índia. É a mesma discussão. Hoje estamos vivendo numa aldeia planetária: São Paulo, Cidade do México, Bombaim, Jacarta e Cairo são ilhas do mesmo planeta. São cidades que se comportam da mesma forma. A luta dos sem-terra, dos zapatistas, dos camponeses na Guatemala são lutas do mesmo tipo. É a última resistência, quase heróica, para ficar na terra, porque a regra é a expulsão total do homem da terra.

Você se considera de esquerda?
Sou de esquerda, mas não pertenço a nenhum partido. O PT é o partido pelo qual ainda tenho o maior respeito no Brasil. Mas ser de esquerda não necessariamente tem de passar pelo PT. O comportamento de esquerda é um comportamento de vida. Uma preocupação com os outros, com a sociedade, com a ecologia. É romper o ciclo do individualismo. Nesse mundo da globalização, do liberalismo econômico, estamos indo em direção a um individualismo profundo.

No meu caso, como fotógrafo conhecido, às vezes me pagam fortunas por um dia de trabalho. Eu tenho consciência de que não valho aquilo. Mas todos querem pagar porque sou famoso. Querem a minha fotografia porque o individualismo é tão grande que a tendência é concentrar em determinadas pessoas, em determinados artistas, em determinados esportistas e em determinados homens políticos. Mas, viver em sociedade é participação! É isso que tem de ser! Existia um ditado, quando era menino, profundamente reacionário, que dizia: "O preço da liberdade é a eterna vigilância." Eu acho que o preço da sobrevivência é a eterna vigilância. Seria necessário fazer uma sociedade de participação que vigiasse tudo que se passa nela. Uma sociedade militante que cobrasse do seu representante político.

Quando você procura uma imagem, você espera que ela mude alguma coisa na vida das pessoas?
Eu dificilmente utilizo uma fotografia na qual não sinta que o fotografado, ao vê-la, não se sentiria profundamente digno. Eu trabalho da manhã à noite, tento me integrar com as pessoas, tento levá-las a uma certa tranqüilidade, para que elas me permitam fotografá-las. Na realidade, me dar aquelas fotografias que fui buscar, tentando compreender sua vida e por intermédio das fotografias ajudar no debate.

Há várias pessoas que me criticam dizendo que faço a estética da miséria, que exploro as pessoas. Quando foi lançado o livro Terra em São Paulo, uma jornalista da Folha criticou dizendo que eu explorava os trabalhadores. Quem sabe? Talvez ela até tenha razão... Estamos sujeitos a todo tipo de olhar, a todo tipo de crítica. Mas juro que é feito com a maior sinceridade, com o maior respeito ao momento histórico.

Ao fotografar, você tem uma concepção do trabalho na cabeça?
Claro que tenho. Eu sei o que estou fazendo. Estou fazendo uma história que espero sirva para denunciar determinadas situações. É a necessidade que tenho de provocar o debate; é a necessidade que tenho com a minha consciência, com a minha história, com a minha forma de vida, com a minha mulher, com meus filhos. Mas também é minha forma de vida. Eu não sei fazer outra coisa. Sou jornalista, tenho que utilizar esses vetores que estão à minha disposição, que são os jornais, as revistas, para colocar neles o que acho honesto. É o conjunto dessas coisas.

Mas você acredita que a fotografia é uma forma de intervenção também?
Ela é uma forma de intervenção direta. Fotografia não é objetiva, é profundamente subjetiva. Quando fotografo, eu o faço com meu subconsciente, com a minha ideologia, entendida como o conjunto das minhas idéias, e é claro que a fotografia é inteiramente conduzida. Disso eu tenho consciência absoluta.

E quando você vê uma imagem sua num jornal, fazendo parte de um corpo editorial, você percebe que ela também está sendo dirigida por outro foco e outra visão?
Ah, percebo. A imprensa, com poucas exceções, é a imprensa de uma certa classe, feita para atingir uma certa classe, dominada por uma certa classe. Às vezes, como minhas imagens também são utilizadas na França ou nos EUA, por exemplo, eu aproveito para discutir o problema do Brasil lá fora e com isso repercutir aqui. Não que a imprensa de lá seja muito mais pura, ela também tem os seus defeitos. Mas quando se fala a respeito do Brasil, discutindo os sem-terra, eu a acho mais descomprometida com a classe dominante daqui, mais crítica. Então, aproveito esse suporte para ajudar a provocar o debate aqui.

Eu assisti a uma conversa na Folha de S. Paulo, em que você discutia o papel do fotógrafo. Você dizia que ele, na maioria dos casos, acaba incorporando os valores do dono do jornal como se fossem seus e se autocensurando. Você acha que há espaço para ser diferente?
É muito difícil, mas há. Eu lembro uma manifestação de sem-terras em que encontrei um fotógrafo de O Estado de S. Paulo simpático ao MST. Ele fez uma foto do Gilmar Mauro, dirigente nacional do MST, falando ao celular e O Estadão deu uma imagem crítica de um sem-terra falando no celular. Ele fez essa fotografia, provavelmente, como qualquer outra. E aquela imagem foi pescada na linha editorial do jornal como uma crítica. No fundo, o fotógrafo, com sua imagem, foi utilizado num discurso inteiramente diferente. Isso existe e demais. É muito difícil, porque o fotógrafo tem de subsistir, é o seu local de trabalho e ele é obrigado a fazer certas coisas em função de uma linha editorial às vezes profundamente contraditória à sua maneira de pensar. No meu caso é diferente. Sei que sou hiperprivilegiado. Eu trabalho para onze, doze jornais diferentes e nenhum deles me domina, eu não sou empregado de nenhum. É a condição ideal, mas um fotógrafo que não tem outra maneira de viver é obrigado, de certa forma, a compor. Mas ele não deve se conformar com isso. Ele pode ajudar a mudar um pouco essa linha editorial, se politizar, se conscientizar, construir sua personalidade com dignidade.

Além do debate, o que você pretendeu com o projeto Terra?
O editor Luís Schwarcz me procurou e disse: "Vamos fazer um livro em comemoração aos dez anos da Companhia das Letras, mas quero fazer um livro sobre o Brasil". Na hora eu pensei: eu tenho a história! Eu tenho um pedaço da história da luta pela terra, há 16 anos eu fotografo isso. A história tem início, meio e fim, uma chegada, uma esperança, uma luta. Aí juntei as imagens todas e a Lélia [Wanick Salgado] deu forma. Quando ela acabou de montar, gostei.

O livro foi um gesto de solidariedade e uma homenagem que eu quis fazer aos trabalhadores, tentando difundir internacionalmente sua luta e a injustiça que se passa com essa grande parte da população brasileira. Quis também de certa forma contribuir com o MST, no sentido de lhe fornecer uma base materializada de discussão por meio dessas imagens. Eu trouxe o Saramago e o Chico Buarque, porque eram personagens respeitados por uma boa parte da população brasileira e que aumentariam a força e o poder do documento por meio das exposições que a Lélia criou e que foram difundidas no Brasil e no mundo inteiro. Foi uma tentativa de dar também uma pequena contribuição financeira, cedendo ao MST os direitos autorais sobre o livro, coisa que o Chico Buarque também fez, cedendo os direitos sobre o disco.

Outro dia, fui a São Paulo e me mostraram a casa onde funciona a sede nacional do MST, na Barra Funda. Contaram-me que ela foi comprada com o dinheiro dos direitos autorais do livro. Serviu para alguma coisa! Disseram-me também que com o dinheiro das exposições vão construir uma escola para o Movimento. Eu fiquei muito feliz!

Mas não realizei o livro e as exposições só para dar uma contribuição. Eu realizei também porque é minha forma de vida. Esse não é o primeiro livro que faço com movimentos. Para criar o projeto Médico sem Fronteira, na Espanha, a Lélia desenhou um livro e uma série de exposições. Eu tenho com Christian Aid, na Inglaterra, uma série de exposições. Há também um livro sobre a Índia. Fiz muitas coisas com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Tenho quatro ou cinco exposições rodando o mundo inteiro.

Assim, paralelamente, eu estava fazendo história sobre a fome na África e sobre o movimento de camponeses na América Latina. Tenho um livro chamado Outras Américas, sobre a terra na América Latina, com algumas imagens do Brasil. Chama-se assim porque na Europa e nos EUA, América é a América do Norte. Não tem legenda, só tem o país e o ano. Conta a história não só dos camponeses mas a minha história também, uma pessoa que não podia voltar ao Brasil porque haviam cassado o meu passaporte. Então eu viajava pelo interior da América Latina, vinha até a fronteira do Brasil recarregar minhas baterias em terras parecidas com as nossas.

Você diz que a imagem é o fotografado quem lhe dá. Você apenas clica. Mas além de provocar o debate, você ajudou a levar essa imagem para outras partes do mundo...
Levei, não resta dúvida. Mas essa imagem existia. Ela estava na beira da estrada. Ela estava na luta. Ela estava na invasão da terra. Ela era a vida dessa imagem. Eu não provoquei a luta com essas imagens. Eu simplesmente cliquei algumas e coloquei em forma de livro, em forma de pôster. Aliás, nem fui eu quem colocou, foi a Lélia. Eu captei essas imagens. Eu não as criei. Eu simplesmente parei aquele momento.

Mas para as pessoas que viram a foto, aquela imagem só existe porque você a captou...
Não quero é que minha imagem passe na frente e tire o mérito da luta. O conhecimento que se tem sobre o MST no exterior se deve fundamentalmente ao movimento. Eu posso ajudar para uma melhor compreensão do movimento; posso ajudar na pressão sobre o governo brasileiro. Mas as imagens não são a dinâmica do processo. A dinâmica é a luta. É muito perigoso a gente reverter o curso da história e me transformar, eu Sebastião Salgado, fotógrafo, no indivíduo herói que levou a imagem dos sem-terra pelo mundo.

Mas a sua imagem pode criar...
Ela pode criar mas não é primária, é secundária. Ela pode criar, mas não ao ponto de me fazer o centro da história. Pode ser uma complementaridade de outras ações.

Quando você faz uma imagem, você pensa no que ela pode provocar?
Não sou eu que vou definir isso, é a história que vai definir. Se uma imagem tiver força e poder para resistir e contar a história de um movimento, acho que ela cumpriu sua função. Mas fotografar é muito interessante. Você circula, fotografa, mas quando chegam determinados momentos, sabe que eles são muito fortes. Todas as variáveis se cruzam. Você sabe que tem uma imagem que conta história. Você faz uma ou duas imagens e sabe que já não precisa mais procurar. Você sabe que as pessoas que vão vê-la não precisam de nenhuma legenda para compreendê-la. Então ela se transformou num símbolo para todo mundo.

A sua imagem é uma tese?
Não só a minha. Toda imagem. Exceto a imagem montada de publicidade, que não tem história. Mas quando você se anexa a um movimento como esse, quando se integra e sua vida passa a ser a vida do movimento, então essas imagens passam a ser imagens do movimento que existiu.

O traço mais forte da sua imagem é a comunidade, a união, mas ela não esvazia a individualidade. Você destaca o traço de cada um. Você resgata a comunidade mas destaca toda a dignidade de cada indivíduo como se ele fosse uma peça-chave que compõe o coletivo...
Mas você tem de ter uma consciência muito grande do que está recebendo, de que está tendo a oportunidade de presenciar algo que possivelmente quase ninguém no planeta teve. E tem também de passar muito tempo para conhecer a comunidade, para ela conhecê-lo e ter confiança. Então no momento da foto você já faz parte da comunidade e eles não estão mais preocupados com você, com sua câmera, eles estão preocupados com o ato que estão realizando.

Você está fazendo obra de arte?
Não, estou simplesmente sendo um vetor, um fotógrafo, um repórter, mas se daqui a cem anos essa imagem ficar como uma referência para contar a história da luta da terra no Brasil, aí vira obra de arte. Porque a arte são determinadas imagens, determinados escritos, determinadas peças musicais que contam a história da espécie humana. Se for forte o suficiente para contar essa história, aí vira obra de arte. O quadro Guernica, de Picasso, por exemplo, conta a história da Guerra Civil na Espanha de maneira fantástica. Mas obra de arte só pode ser obra de arte a posteriori. A priori é simplesmente um modo de vida. Eu vejo muito pintor dizendo "sou artista". Não! Ele apresentou sua criatividade, mas para dizer que é uma obra de arte, tem que ficar.

Quando você vê uma imagem sua depois, ela lhe diz mais coisas, que você não tinha percebido na hora do clique?
Às vezes as pessoas vêem minhas fotografias e descobrem coisas que eu não descobri. Quando eu fotografo, já estou fazendo uma intervenção. Mas, dentro de minha subjetividade, deixo uma margem para cada um fazer a sua. Por isso eu tento não qualificar minhas legendas, porque qualificando você não permite que a imagem faça toda a sua trajetória. A imagem tem de contar a sua história para cada um que vê, com a sua percepção, a sua realidade, a sua ideologia. É a sua imagem. Se eu colocar um título, eu mato a imagem. Minhas legendas são abertas, eu conto a história que permite à pessoa ter livre trânsito.

O seu trabalho é intuitivo?
Eu presto muita atenção no meu instinto. O fotógrafo é um animal instintivo. Se você entrar com determinadas interpretações intelectuais, muito anteparo psicológico, você mata seu instinto de caçador, porque no fundo o fotógrafo é um caçador. Quando você domina completamente a técnica, não lembra mais do que está utilizando, nem do instrumento. A técnica passa a ser você mesmo. Eu sou capaz de saber a luz, a abertura, a velocidade, sem olhar o que estou fazendo. Automaticamente vai vindo...

O que está por trás de uma fotografia?
A fotografia é a ponta do iceberg. Primeiro, as emoções que tive quando fotografei, as pessoas que conheci, o cheiro que senti, o que aconteceu antes, o depois... Quando vejo uma fotografia já relaciono com tudo isso e ela passa a ter um significado muito grande. Quando uma pessoa me pede para mostrar minha melhor foto, é impossível, porque tenho uma carga emocional grande com todas elas, conheço a história de todas elas. Então não existe para mim uma fotografia muito melhor do que as outras. Nunca fiz uma exposição das minhas melhores fotos. Sempre apresentei uma série que contava uma história, na qual cada uma tem um valor muito grande. Além disso, há todas as pessoas que trabalharam para que a fotografia estivesse ali e que ninguém conhece.

Por que nas suas imagens não aparecem os líderes do movimento?
É difícil fazer uma foto boa de um líder. Ele está sempre numa posição de líder, mais burocrática, menos integrada na realidade. Quando ele contata as pessoas, esse contato não é natural, é um pouco de cima para baixo. Ele já vem com uma mensagem. Além disso, eu acho mais importante fazer a mensagem passar naturalmente, pela base. Normalmente eu não tenho grandes fotografias de líderes de movimento nenhum, de presidente nenhum.

Você se considera um militante da causa da terra?
Como minhas fotos são muito mais de espaço, onde a terra toma uma proporção muito grande, as minhas melhores fotografias não são urbanas, são do interior dos países. Mas nem por isso me considero especialmente um militante da terra, apesar de ter nascido no campo. Eu não sou mais militante da causa da terra do que da causa do sindicalismo urbano, da causa dos imigrantes, da causa dos refugiados. Se eu tiver que me definir, eu sou um militante da espécie humana.

Rogério Sottili é historiador e assessor da Secretaria Agrária Nacional do PT