Cultura

Ele criou uma das imagens mais emblemáticas da história do cinema

"Se algo pode ser escrito, ou pensado, pode ser filmado."
Stanley Kubrick

Não são muitos os cineastas como Stanley Kubrick, que têm em seu currículo o fato de ter criado uma das imagens mais emblemáticas da história do cinema e, e por extensão, do século XX. Quem viu 2001, Uma Odisséia no Espaço lembra-se: na "aurora do homem", como anuncia o letreiro no início do filme, o primata descobre que pode usar um osso como arma e comemora seu triunfo atirando o osso/arma para cima, a câmera acompanha o objeto em sua trajetória ascendente no céu azul e em sua transformação em nave espacial. O filme é de 1968, mesmo ano das revoltas estudantis em várias partes do mundo, e oferece uma visão nada triunfante do futuro tecnológico que se insinuava à época.

Kubrick, o construtor exato e perfeccionista de imagens, morreu em 7 de março deste ano. Em seus 48 anos de carreira, o diretor criou experiências cinematográficas memoráveis, mais do que apenas grandes filmes. Ele era ao mesmo tempo um diretor clássico, que exercitou-se em todos os gêneros, do thriller ao drama histórico, e um inovador técnico e estético com uma liberdade de ação como poucas vezes a camisa-de-força da indústria cinematográfica norte-americana permitiu. Espécie de estranho no ninho em Hollywood, que abandonou definitivamente pela Inglaterra no final dos anos 60, Kubrick também não guardava muita proximidade com as experimentações do cinema europeu seu contemporâneo. Em vez do formalismo da nouvelle vague, Kubrick sempre preferiu a minúcia e o perfeccionismo capazes de garantir o grande espetáculo. Embora a diversidade de estilos possa sugerir o contrário, Kubrick foi fiel a um grande tema, a investigação do homem em confronto com suas criações morais, tecnológicas, sociais, espirituais ou históricas.

Kubrick nasceu em 26 de julho de 1928 em Nova York. A paixão pelas imagens começou cedo: seu primeiro emprego foi como fotógrafo, aos 17 anos, na revista Look. Estudante mediano e jogador de xadrez, Kubrick não chegou a freqüentar a universidade, embora fosse assíduo espectador das sessões de cinema do Museu de Arte Moderna de Nova York.

Antes de filmar seus dois primeiros longas-metragem Fear and Desire (1953) e A Morte Passou por Perto (Killer's Kiss, 1955), ambos financiados pela família e por amigos, realizou três documentários em curta-metragem: Day of Fight (1951), Flying Padre (1952) e Seafarers (1953).

Depois dessas experiências algo amadoras, Kubrick associou-se a um produtor e foi para Hollywood. O Grande Golpe (The Killing, 1956), um thriller noir atrelado às convenções do gênero, já contém, ainda de forma embrionária, o apuro visual que iria perseguir em toda sua filmografia posterior. O début hollywoodiano também serviu para a indústria reconhecê-lo como um talento emergente e fez o então astro Kirk Douglas participar de seu próximo projeto, Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957).

Glória Feita de Sangue, a rigor o primeiro filme "autoral" de Kubrick, mostra a sua capacidade de transformar qualquer história em um épico grandioso. A brutalidade da guerra aparece sem disfarces na história da missão suicida de um pelotão francês na Primeira Guerra Mundial. Profundamente antimilitarista, Glória Feita de Sangue está entre os melhores filmes de guerra jamais feitos.

Spartacus (1960) foi primeira e última experiência de Kubrick na linha de produção hollywoodiana. Ele foi convidado a dirigir o filme por Kirk Douglas, produtor do mesmo, depois que o outro diretor, Anthony Mann, foi demitido. Baseado no romance homônimo de Howard Fast, conta de forma romanceada uma rebelião de escravos ocorrida na Roma Imperial, liderada pelo gladiador Spartacus (Kirk Douglas). É um Kubrick atípico, sobretudo do meio para o fim, quando o filme assume tons excessivamente sentimentais, mas ainda assim funciona como libelo contra a opressão e traz cenas de enorme impacto visual, como a da batalha final. O elenco estelar

- Douglas, Laurence Olivier, Charles Laughton, Peter Ustinov, Jean Simmons e Tony Curtis - e a grandiosidade da produção

- Kubrick usou 10 mil figurantes - garantiram a atenção do público, transformando Spartacus em seu primeiro sucesso de bilheteria, e da Academia, que deu um Oscar de ator coadjuvante para Ustinov.

"Como é que fizeram um filme a partir de Lolita?" A pergunta, que constava do cartaz do filme, nada tinha de ociosa. Não bastasse o tema potencialmente escandaloso, a obsessão sexual de um homem de meia-idade por uma menina, Lolita, pela complexidade de sua construção literária, é daquelas obras aparentemente inadaptáveis. Pois Kubrick encarou o desafio, com o próprio Nabokov como roteirista. O resultado é um filme talvez um pouco longo e confuso, mas não menos intrigante. Para amenizar um pouco o choque e driblar o moralismo norte-americano, Kubrick aumentou ligeiramente a idade de Lolita, dos apenas 12 do romance para 15, e filmou na Inglaterra, com James Mason (Humbert) e Peter Sellers (Clare Quilty).

Entre o final dos anos 60 e início dos 70, Kubrick entraria em plena maturidade como diretor e produziria, em apenas sete anos, nada menos do que três grandes filmes, certamente candidatos a obras-primas. Doutor Fantástico, 2001 e Laranja Mecânica, apesar de situados em algum lugar de um futuro nada otimista e, portanto, usualmente classificados como de ficcão científica, estão entre os mais agudos testemunhos sobre o mundo pós-Segunda Guerra Mundial.

Em 1964, Doutor Fantástico (Dr. Strangelove: Or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964), cometeria a ousadia de fazer uma comédia de humor negro sobre a Guerra Fria. A idéia de um acidente que detonasse a Terceira Guerra Mundial era certamente um perigo real à época e Kubrick tratou de transformar essa perpectiva apavorante em uma crítica ácida ao modo como as duas potênciais mundiais, Estados Unidos e União Soviética, jogavam com a possibilidade de acabar com a vida humana no planeta Terra. Novamente Peter Sellers trabalharia com Kubrick, desta vez desdobrando-se em três papéis diferentes, inclusive como o cientista nazista Dr. Strangelove.

2001, Uma Odisséia no Espaço (2001, A Space Odissey, 1968) talvez seja o filme mais enigmático e ambicioso jamais feito. Grosso modo, pode-se dizer que é um filme sobre a desumanização trazida pela tecnologia, mas também esboça uma explicação sobre a origem e os limites da espécie humana, algo a ver com um monolito negro que representaria alguma forma de inteligência extraterrena. Parece confuso e é. O roteiro, baseado em um conto do escritor Arthur C. Clarke, é quase que um mero pretexto para algumas das cenas visualmente mais exuberantes e intrigantes da história do cinema. Para se ter uma idéia, de 160 minutos de filme, apenas um quarto contém diálogos. Em 2001, Kubrick experimentou operar quase que no nível não racional, fazendo uma espécie de poema cinematográfico vago e deliberadamente incompreensível, embora de composição rigorosa e impecável.

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) completa a visão kubrickiana pessimista do futuro. Desta vez, não há guerra nem espaçonaves, mas uma Londres pós-psicodélica onde atuam gangues juvenis violentas. Antecipando, de alguma forma, a atmosfera amoral produzida pela sociedade de consumo ultratecnológica e em crise ideológica (os massacres nas escolas secundárias norte-americanas estão aí para não deixar Kubrick mentir), Laranja Mecânica talvez seja o seu filme tematicamente mais ousado. Como 2001, Laranja Mecânica tornou-se um cult, seja pela direção de arte memorável, que cita a pop arte e as artes gráficas dos anos 60/70, ou pelo desempenho de Malcolm McDowell como protagonista. Para os brasileiros, Laranja Mecânica também desfruta o irônico privilégio de ter sido objeto de uma das "invenções" mais bizarras da Censura Federal: as famosíssimas bolas pretas que "acompanhavam" os pênis artificiais na cena do estupro.

Depois dessa trilogia futurística, Kubrick mudou de direção e realizou uma das reconstituições de época mais perfeitas já feitas no cinema ao adaptar Barry Lyndon, de William M. Thackeray. Filmado inteiramente sem luz artificial (as cenas de interiores foram iluminadas a velas e lamparinas a óleo), a história de Barry Lyndon, soldado aventureiro, desertor e arrivista na Irlanda do século 18, transforma-se, nas mãos de Kubrick, numa espécie de pintura em movimento.

O Iluminado (The Shining, 1980) saiu de uma história banal do escritor best-seller Stephen King. Sim, é um filme de terror, mas aqui o terror não é mera forma de diversão pervertida de adolescentes bem-alimentados. O terror de Kubrick tem relação com as armadilhas que a psique humana arma para si mesma, nada a ver com monstrengos viscosos. A expressão assassina de Jack Nicholson, no papel do escritor que enlouquece no isolamento de um hotel nas montanhas e tenta dizimar sua família, é outra das imagens poderosas criadas pelo diretor (e que virou uma espécie de marca registrada de Nicholson desde então).

Em Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987), Kubrick volta à guerra, desta vez para contar o desastre norte-americano no Vietnã. Como Barry Lyndon, foi um tanto subestimado à época de seu lançamento, mas a versão de Kubrick sobre o Vietnã, ou seja, sobre a guerra moderna, novamente é surpreendente. Para Kubrick, a guerra, na verdade, começa na transformação de homens em máquinas de matar. O filme é dividido em duas partes distintas. Na primeira, revela o processo de "desumanização" sofrido por um grupo de marines, entre os quais Matthew Modine, como recruta inteligente, e Vincent D'Onofrio, o desajeitado, treinado por um sargento linha dura e, na segunda, mostra esse pelotão na ofensiva do Tet, que marcou o início da derrota norte-americana. Em vez de grandiosidade épica, as cenas de batalha assemelham-se a uma tensa caçada humana, na qual as eficientes mas alienadas máquinas de guerra norte-americanas sucumbem diante da gana de sobrevivência dos vietnamitas. Não pegou muito bem nos EUA, por certo.

Até o fechamento desta revista, o último filme de Kubrick, Eyes Wide Shut (ainda sem título em português) permanecia inédito. Envolto em especulações - Kubrick era extremamente avesso à publicidade, pouco falava com a imprensa e cercava todos os seus projetos de sigilo -, tudo o que se sabe é que Tom Cruise e Nicole Kidman fazem um casal de psiquiatras e que se passa em uma Nova York reproduzida em estúdio.

Filmografia - Longas:

1953 Fear and Desire
1955 A morte passou por perto
1956 O grande golpe
1957 Glória feita de sangue*
1960 Spartacus*
1962 Lolita
1964 Doutor Fantástico*
1968 2001 - Uma odisséia no espaço*
1971 Laranja mecânica*
1975 Barry Lyndon
1980 O iluminado*
1987 Nascido para matar*
1999 Eyes wide shut (ainda inédito)
* disponível em vídeo

Bia Abramo é jornalista.