Sociedade

É crescente o número de pensadores de esquerda preocupados com os descaminhos da intelectualidade. Surge assim, num setor dela própria, o sentimento de que suas concepções precisam ser debatidas para o Brasil redefinir seus rumos

Aos diferentes estratos da intelectualidade tem historicamente cabido a missão de esclarecer (ou obscurecer) os aspectos teóricos dos projetos em disputa em nossa sociedade. E a presente hegemonia neoliberal das megacorporações se deve em grande parte ao engajamento de uma importante parcela da antiga intelectualidade de esquerda a seu favor. Os estratos intelectuais em oposição a esse projeto, por outro lado, não foram capazes de formular uma proposta ideológica e política unificadora para derrotá-lo e, ao mesmo tempo, abrir uma perspectiva de reconstrução frente à globalização capitalista.

Por isso, um debate sobre a intelectualidade, em especial seus estratos de esquerda, não é algo à parte da discussão sobre os destinos brasileiros. Incide diretamente sobre o cotidiano do enfrentamento ideológico e político e sobre os projetos colocados. Pode fazer a diferença entre afundar na barbárie, como estamos assistindo, ou ao contrário, navegar com soberania para escapar dela.

Os rumos e as clivagens teóricas da moderna intelectualidade brasileira não foram ainda motivos de estudo e debate amplos. Talvez isso se deva a que ela sempre pareceu mais ligada a teorias externas do que a raízes que houvessem medrado em nosso solo e ganho força e características próprias.

O Brasil não poderia escapar à influência das concepções correntes no mundo. Ele nasceu sob os ditames da ordem mundial mercantilista e desenvolveu-se sob o influxo das transformações das subseqüentes ordens mundiais. O problema não é, pois, a imunização a pensamentos teóricos externos, mas a capacidade ou não de utilizá-los para descobrir as condições de uma vida própria e extrair daí as conseqüências teóricas.

No período colonial, Gabriel Soares dos Santos, Antonil, os poetas e publicistas da Inconfidência, os padres da Confederação do Equador e os teóricos da Independência pactuada utilizaram-se de matrizes européias, mas foram tocados pelas contradições da vida colonial escravista e procuraram trazê-las à luz. Mas eram elementos esparsos numa população que a rigor sequer se tornara povo e menos ainda sociedade.

A expansão da cultura cafeeira, após a Independência, criou um baronato poderoso, deu sobrevida ao escravismo colonial e desenvolveu uma intelectualidade com estratos diferenciados. Entretanto, tendo por base um pseudopovo fragmentado em pequenas camadas livres e vastas camadas semilivres e escravas, sem a presença de uma classe oprimida com força suficiente para questionar com suas ações a sociedade existente, a maior parte dessa intelectualidade embebia-se nas correntes ideológicas estrangeiras sem considerar o Brasil, nem os problemas de seu povo, descaracterizado pelo escravismo.

Pode-se alegar que não foi bem assim. Afinal, nos trabalhos da época aflora com força a problemática brasileira. Mas aflora como aberração que não se encaixava nas idéias da civilização. O debate intelectual centra-se, então, na inviabilidade do Brasil com o povo que tinha. Talvez por isso, suas idéias parecessem fora de lugar quando eram progressistas, e fossem reacionárias quando tratavam dos problemas reais.

Também não é de estranhar que os intelectuais engajados na luta popular fossem relegados ao ostracismo ou tivessem suas obras enterradas no baú, como ocorreu com Manoel Bonfim e Lima Barreto. Ou que um intelectual da estatura de Machado de Assis, que se debruçou sobre as contradições da vida de seu tempo, fazendo uma denúncia vigorosa das incoerências sociais brasileiras, tivesse que adotar o equilíbrio convencional como estilo, no dizer de Antonio Candido, para se incorporar ao processo de "oficialização" literária.

Foi esse caldo de cultura de uma sociedade sem uma classe oprimida socialmente forte, que permitiu ao positivismo arraigar-se em vários estratos intelectuais, como o militar, a partir do final do século passado. Para ele, como para os demais pensamentos predominantes, era o povo bruto e inculto que deveria ser enquadrado na civilização, e não a civilização que deveria adaptar-se ao povo para dar-lhe as condições de elevar-se material e culturalmente.

A implantação mais rápida do capitalismo no Brasil, a partir da Primeira Guerra, se introduziu perturbações nessa ordem em progresso, não modificou o modo de pensar dominante. Canudos e o Contestado haviam desvendado algo do mundo latifundiário, e as greves operárias de 1917 a 20 evidenciado os trabalhadores fabris como novo ser social. Mas a capacidade dos de baixo agirem em defesa de interesses próprios e de uma sociedade diferente continuou desconsiderada. O progressismo dos movimentos das classes médias e de setores oligárquicos, influenciados por intelectuais positivistas, opunha-se às oligarquias dominantes, mas nutria o mesmo preconceito em relação às camadas populares que alimentara o pensamento dominante no Império.

De qualquer modo, as contradições afloradas nas duas primeiras décadas do século XX, assim como os ecos da revolução "maximalista" russa de 1917, influenciaram os movimentos ideológicos que marcaram a década seguinte e coincidiram com uma conflituosa rearticulação do pacto de dominação vigorante. Essa associação da classe dos latifundiários, que dominava o Estado pela oligarquia "café com leite", com a burguesia estrangeira, era contestada pela burguesia americana, que queria desalojar a inglesa, e pela burguesia industrial nativa e as oligarquias latifundiárias prejudicadas com o monopólio do café, que pretendiam seu lugar no pacto.

Assim, embora a presença trabalhista não pudesse ser ignorada, mais não fosse pelo pânico que o exemplo russo produzia, foram os elementos teóricos subjacentes à disputa do pacto de dominação que mantiveram a hegemonia no debate ideológico. Mesmo porque a fraqueza social e teórica das classes trabalhadoras somente conseguiu produzir uma crítica enviesada do capitalismo, realizada por intelectuais que lhe deram a forma de deboche do latifúndio, da burguesia e das classes médias.

Em tais condições, coube à intelectualidade oligárquica, opositora do domínio dos latifundiários do café e com certa consciência das contradições em curso, formular um projeto político com propostas industrialistas e de proteção social. Embora genérico, esse projeto "revolucionário" atraiu setores da intelectualidade militar, mobilizou o apoio de setores populares, levou adiante a revolução liberal de 30 e colocou os "advogados" e os "tenentes" no poder.

Esses estratos intelectuais foram os principais formuladores das políticas populistas burguesas, assim como da ideologia parafascista. Havendo assumido a gestão do novo pacto de dominação, transformaram-se em novas oligarquias regionais e nacionais, fizeram surgir uma intelectualidade tecnocrática ligada ao Estado e desenvolveram a capacidade de combinar a ação ideológica com a repressão e a cooptação.

Dos estratos intelectuais que sobreviveram ao regime, destacaram-se os democratas liberais e os marxistas. Embora os primeiros também disputassem a esquerda, esta foi progressivamente hegemonizada pelos marxistas, cuja importância ideológica e política cresceu com a resistência antifascista e a vitória mundial contra o nazismo.

A intelectualidade marxista

A intelectualidade marxista conquistou influência na resistência contra a ditadura e na mobilização popular contra o nazismo e em defesa da cultura nacional, atraindo intelectuais de renome para os partidos comunista, socialista e trotskista. O papel da União Soviética na guerra também contribuiu para ampliar o prestígio do marxismo, apesar do pacto de não-agressão celebrado com Hitler, em 1939.

Quando a ditadura foi derrubada, em 1945, o PC, em especial, havia criado raízes entre os trabalhadores e a intelectualidade socialista e democrática. Paradoxalmente, não forjara uma intelectualidade marxista teoricamente preparada para as transformações do Brasil e do mundo. Ao contrário, acomodou-se às correntes internacionais predominantes no movimento socialista - stalinismo, trotskismo e social-democracia - que tinham Marx como o menos popular dos autores marxistas desse período.

Tomando o marxismo como um sistema cientificista fechado, ao qual deveria adaptar-se a realidade brasileira, essa intelectualidade matou o mais importante do marxismo: seu método de análise da realidade e a busca das soluções que ela própria já colocara como necessidade em seu desenvolvimento. Tornou-se incapaz de estudar a realidade brasileira e encontrar nela mesma as condições para a superação de seus problemas históricos. Ou, como diz Leandro Konder, levou a dialética à derrota.

Mas a explicação que responsabiliza unicamente a III Internacional pela derrota do marxismo no Brasil é fácil e cômoda. Isenta a intelectualidade marxista do próprio fracasso e busca em outras paragens, as razões de seus descompassos. Por que outras intelectualidades, apesar da III Internacional, seguiram seu caminho com independência? Por que nossos marxistas sequer souberam estudar, criticar e desenvolver os estudos originais de autores como Manoel Bonfim, Gilberto Freyre, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e outros, ideologicamente díspares, que apontavam para peculiaridades da formação histórica brasileira que abriam vasto campo de investigação para uma teoria transformadora apropriada à nossa realidade?

Na verdade, se não fosse o stalinismo, os marxistas teríamos inventado algum outro ismo para justificar-nos e manter-nos fiéis à tradição copiadora da intelectualidade Imperial ou da visão salvacionista e paternalista das intelectualidades oligárquica e tenentista. Tanto há algo de mais sério nesses defeitos que a intelectualidade marxista acadêmica, durante o regime militar, mesmo afastada da política ativa e seguindo um caminho teórico relativamente autônomo, investigou com certa acuidade as mudanças introduzidas no pacto de dominação, mas mostrou-se incapaz de uma crítica consistente do capitalismo brasileiro, das contradições específicas que ele gerava e das possibilidades que seu desenvolvimento abria para a luta dos trabalhadores.

Ou seja, embora em menor escala, cometeu os mesmos enganos da intelectualidade de esquerda engajada na luta direta contra a ditadura, que inicialmente considerou a dominação imperialista incompatível com o desenvolvimento capitalista interno e depois, diante do desenvolvimento factual, não soube explicá-lo, nem tirar dele as conclusões para a estratégia dos trabalhadores. Até mesmo a que adotou formas radicais de luta armada manteve-se presa ao taticismo do combate ao regime.

Talvez por isso, a maioria dos partidos e intelectuais marxistas tenha ignorado, nesse período, o crescimento da força social dos trabalhadores e seus movimentos de resistência. Assim, quando o ascenso do movimento operário fez os marxistas voltarem-se novamente para a classe trabalhadora, isto só demonstrou o quanto eles estavam desconectados da realidade e das tendências que operavam na infra-estrutura da sociedade brasileira.

A essa altura da história, era de tal modo confusa a situação interna do que se chamava intelectualidade marxista, que somente um debate prolongado e aberto poderia esclarecer suas convergências e divergências teóricas e criar um novo e amplo movimento ideológico e cultural capaz de contribuir para seu processo de unificação em torno de um novo partido de trabalhadores. Mas as condições em que ocorria a desagregação do regime militar não contribuíam para isso.

Caminhos incongruentes

Aparentemente, o esgotamento do modelo militar de desenvolvimento colocara o Brasil outra vez diante da disputa entre projetos conservadores e democráticos. Poucos se deram conta de que também estava em pauta uma nova rearticulação do pacto de dominação burguesa. A enorme expansão das corporações empresariais abrira condições para as burguesias centrais completarem a exportação do modo capitalista de produção para todo o globo. Elas não precisavam mais da associação com capitais estatais e privados nativos para alcançar o novo patamar global do seu modo de produzir. Estavam em condições de apropriar-se desses capitais já instalados e, por meio da monopolização corporativa das economias nacionais, integrá-las num processo único.

Teorizados, esses interesses do capital corporativo transformaram-se nas ideologias e políticas neoliberais de desregulamentação, privatização, globalização, consenso de Washington e assemelhadas, para permitir a monopolização das economias nacionais periféricas. Mas isto não poderia ocorrer num mundo bipolarizado com o socialismo. Deveria incluir a derrota das sociedades socialistas, colocar os movimentos socialistas na defensiva e enterrar qualquer resistência aos planos capitalistas globais. Isto paradoxalmente se tornara uma possibilidade desde a vitória vietnamita contra a agressão americana.

Desde então os movimentos socialistas, democrático-populares e social-democratas haviam entrado em descenso. Os países de socialismo de comando do Leste europeu, assim como os governos social-democratas, debatiam-se em crises econômicas, que transformavam-se em crises sociais e políticas. Por outro lado, a pujança dos países capitalistas centrais lhes permitia realizar a corrida armamentista, garantir a vitória dos conservadores nos países governados pela social-democracia, atrair com empréstimos os países socialistas em dificuldades, arvorar-se como defensores da democracia e dos direitos humanos e financiar movimentos anti-socialistas.

Se esse era o quadro internacional durante a decadência da monopolização tripartite (Estado, capitais privados nativos e capitais estrangeiros) do regime militar brasileiro, internamente a burguesia encontrava-se desarvorada e sem projeto próprio, abrindo campo para um projeto democrático e popular. A classe trabalhadora retornara à história como um setor social radicalmente anticapitalista e antiditatorial (portanto socialista e democrática, nos sinais positivos), com um partido novo e aguerrido - o PT -, enquanto a burguesia nativa e as classes médias dividiam-se ante o caminho a seguir.

A ofensiva ideológica e política neoliberal da burguesia internacional foi essencial para superar a indecisão. Deslumbrou a burguesia nativa e grande parte das classes médias com a possibilidade delas se associarem ao capital transnacional e participar não só da riqueza social gerada no Brasil, mas também em todo o mundo. E, à medida que dirigia seu ataque principal contra o socialismo do Leste europeu, estimulou o pânico daquelas classes ante a possibilidade de viver sob um governo socialista. Além disso, não menos importante foi a ação exercida sobre consideráveis setores populares, conquistando-os para a idéia da modernidade capitalista.

Dessa forma, estava em pauta não apenas a superação da ditadura militar como forma política de domínio. Estavam em jogo os interesses estruturais das burguesias nativa e internacional, envolvendo a visão de mundo e as estratégias de sua transformação. Entretanto, quando as concepções sobre a ruptura com a ditadura levaram uma parte da intelectualidade a associar-se à burguesia para uma transição pactuada, essa clivagem não levou os intelectuais que propugnavam por uma transição radicalmente democrática a esclarecer os antagonismos existentes.

Para aquela, isto foi particularmente conveniente enquanto os trabalhadores e as camadas populares mantiveram o impulso político e se apresentaram como alternativa de governo. Afinal, como a vida demonstrou, para alguns um posto em qualquer governo vale bem mais que um princípio. O que parece incompreensível é que, após a vitória de Collor, e a propensão indisfarçável daquela parte da intelectualidade pelas propostas e pela modernidade neoliberal, ela tenha podido continuar travestindo-se de esquerda.

Uma explicação para essa complacência pode residir na perplexidade que tomou conta da esquerda, ou de sua esmagadora maioria, diante do desmoronamento dos regimes socialistas do Leste europeu. Para ela, tornou-se aceitável jogar para a pré-história as idéias socialistas e marxistas e encarar com naturalidade a suposição de que o neoliberalismo era moderno e inevitável. Poucos se preocuparam em analisar suas contradições e travar o bom combate ideológico.

Ao assumir o ideário neoliberal e manter-se sob uma capa esquerdista, com a aquiescência dos intelectuais marxistas, humanistas, nacionalistas e outros, aquela parcela da antiga intelectualidade antiditatorial e esquerdista credenciou-se para ser cooptada e catapultada para o poder político. Ninguém melhor do que ela, cujo histórico supostamente credenciava-a a representar os interesses gerais da sociedade e da Nação, para aplicar as políticas neoliberais e rearticular o pacto de dominação entre as burguesias nativa e estrangeira.

Esses intelectuais ocuparam os principais cargos, em especial a presidência da República, e transformaram-se nos formuladores e executores das políticas e reformas neoliberais impostas ao país. Metamorfosearam-se em ideólogos hayekianos e estão convencidos da força magnética do mercado capitalista para rearrumar a casa e abrir vasto campo de oportunidades para todos.

Apesar disso, e mesmo após sua política causar estragos aos trabalhadores e ao país, eram raros os intelectuais que ousavam desmascarar a trupe neoliberal e seu príncipe. Os que não haviam capitulado pareciam perplexos e tomados de torpor, tendo embotado sua compreensão sobre as raízes dessa virada ideológica e do papel que essa intelectualidade dominante desempenha na transição do capitalismo dependente e associado brasileiro para um capitalismo monopolizado e subordinado.

Nessas condições, compreender a fundo as tendências do capitalismo no Brasil e as oportunidades que ele oferece, com suas contradições, para o país seguir um caminho oposto, tendo como objetivo a superação da pobreza e da miséria e a construção de uma sociedade material e culturalmente elevada e independente, passa necessariamente pelo entendimento sobre as razões que levaram parte significativa da intelectualidade brasileira a se transformar em agente privilegiada do novo pacto de dominação. E, também, pelo entendimento sobre as dificuldades para formar uma intelectualidade revolucionária ou radicalmente reformista.

Mesmo porque não existe nenhuma história, moderna ou contemporânea, de reformas ou transformações profundas, que tivesse podido descartar a participação ativa de uma intelectualidade desse tipo. Um exemplo clássico é o próprio Brasil: na ausência dela, sucederam-se as modernizações conservadores das conciliações oligárquicas, sempre mudando para não mudar.

Wladimir Pomar é jornalista e membro do Conselho de Redação de TD.