Internacional

A prisão do general Pinochet na Inglaterra, a pedido de um juiz espanhol, gerou ondas de euforia, indignação e apreensão em todo o mundo. Ao decidir que a imunidade diplomática não poderia ser um obstáculo para a punição de um autor de crimes contra a humanidade, a corte britânica agiu em conformidade a uma ética de princípios

Para vítimas e militantes de direitos humanos, a possibilidade de responsabilização criminal de um ditador atroz, como Augusto Pinochet, significa um basta a uma situação de quase absoluta impunidade que marcou a transição dos regimes autoritários para as democracias nas últimas décadas. Simboliza, ainda, que não há mais abrigos seguros para ex-ditadores, escudados por imunidade diplomática reconhecida a chefes de Estado. Do lado oposto, não foram poucos a demonstrar indignação, seja por solidariedade, medo, em decorrência do que também praticaram ou defenderam no passado, como a antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, ou mesmo pelo conservadorismo intrínseco, como o papa João Paulo II, na medida que ambos têm realizado ingerências a favor do ex-ditador. Há, porém, um grupo de pessoas que se encontra tremendamente apreensivo, não por se apiedar do algoz, mas por entender que o seu julgamento extraterritorial, além de pôr em risco o frágil processo de transição e consolidação da democracia chilena, é mais uma demonstração de subordinação dos Estados periféricos em relação às economias centrais. Muitos dos que têm este sentimento protestaram, alegando uma suposta invasão na esfera da soberania do Estado chileno em nome dos direitos humanos. Além disso, denunciam que estes princípios estão sendo utilizados como justificativa para mais uma vez impor o poder do Norte em relação às nações dependentes do hemisfério Sul.

As duas faces da soberania

A idéia de soberania confunde-se com o próprio aparecimento do Estado moderno. Este é marcado pela luta entre príncipes e senhores feudais pela monopolização dos meios de coerção, assim como pela centralização da tributação e do Poder Legislativo. Se tomarmos o modelo hobbesiano como paradigma, antes do Estado vivíamos numa situação de natureza, na qual prevalecia a lei do mais forte e cada um deveria sobreviver por intermédio de seus próprios meios de coerção. Com a sobreposição de um mais forte sobre os demais, na tradição do realismo iniciada por Maquiavel, ou com o pacto social, na tradição jusnaturalista, os meios de coerção, assim como os acessórios a ele indispensáveis, passam para as mãos do príncipe, que tem por finalidade assegurar a paz e a segurança dentro de um determinado território1. Neste sentido, todos os meios serão justificados quando a ação do príncipe, soberano, for bem-sucedida na realização dos fins do Estado, que nada mais são do que a sua própria sobrevivência. Esta a razão do Estado, por muitos confundida com a ação do príncipe, pessoa, para realização de seus interesses. Esta diferenciação é importante para que se possa compreender a primeira decisão do tribunal inglês.

O Estado soberano surge em 1648, com a Paz de Vestfália, que marca uma série de acordos entre protestantes e católicos, pondo fim ao império da religião como orientador da diplomacia medieval. Estabelece-se, a partir daí, um conceito de Estado baseado na igualdade soberana e na independência entre seus pares. Com os Tratados de Vestfália, o Estado laico emerge como a última instância das decisões políticas internas e externas, libertando-se do cativeiro religioso e ganhando liberdade para perseguir seus interesses, selar acordos de paz e anunciar declarações de guerra, estabelecer rotas comerciais e conquistar novas colônias. A tal fenômeno político atribuiu-se o nome de soberania, então o privilégio da última palavra, do poder insubordinável e incontrastável. Para a escola realista das relações internacionais, as relações entre Estados se assemelham às do Estado de natureza pré-hobbesiana, em que os conceitos de justiça e de direito sequer foram estabelecidos. A força, e nada mais, é o que constitui a medida de todas as coisas.

Uma idéia clássica de soberania atribui aos Estados a subsistência em uma situação de natureza, em que há inimigos, sobre os quais, na iminência de qualquer ameaça, interna ou externa, deve se fazer pesar a força da coerção. Este conceito de soberania nas relações internacionais vem, na grande maioria das vezes, sustentando a política externa das Nações. A tradição hobbesiano-maquiavélica tem dado o pano de fundo sobre o qual se realiza a política internacional, culminando por vezes em guerra. Logo, é possível afirmar que a beligerância é a última instância das relações internacionais na medida em que estas encontram seus fundamentos na concepção absoluta da soberania dos Estados. Na colocação de Clausewitz, a guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios2. Uma compreensão absoluta da soberania como maneira de organização e prática do poder nas relações internacionais tendeu sempre para o conflito, o recurso à força. Esta perspectiva realista se colocará em franca tensão com aqueles que defendem a existência de um direito internacional vigente e eficaz.

Na esfera doméstica, no entanto, a soberania vem ganhando nos últimos séculos um contorno mais limitado. Já a partir do absolutismo hobbesiano é possível detectar que o poder soberano encontra sempre um limite, que é a sua própria razão de ser. Para os jusnaturalistas, os indivíduos só deixam a situação de natureza e concebem o Estado, como ente soberano, se este for capaz de prover uma situação mais confortável que a anterior. Para Hobbes, este conforto limita-se à garantia da paz social, especificamente da vida. Caso o Estado não seja capaz disto, pode ser destituído. Em Locke e nos demais fundadores do constitucionalismo moderno, a presença do poder soberano jamais é negada. A soberania, no entanto, diferentemente do maquiavelismo, só será justificada se for capaz de assegurar os direitos e liberdades fundamentais3.

Será Rousseau, no entanto, que mais profundamente irá revolucionar o conceito de soberania. Com o autor de O Contrato Social, a soberania passa a residir no povo e se confunde com a vontade geral. Diferentemente do pacto hobbesiano, no qual os indivíduos se reúnem para transferir seus poderes para um terceiro ente, o Estado, no contrato rousseauniano os indivíduos pactuam consigo mesmos, transformando-se em cidadãos, soberanos e súditos de si mesmos. Da perspectiva de Rousseau não há como pensar num soberano contrário aos interesses do povo porque, se assim for, este não será um autêntico soberano, pois, por definição, a soberania é a representação mais pura da vontade geral, da vontade ética dos cidadãos.

O que isto tem a ver com o caso Pinochet? Tudo. Pois ao se defender que Pinochet não deveria ser julgado fora de seu país, sob o argumento de que se estaria violando a soberania do Chile, não fica claro qual o conceito de soberania que se está defendendo: se o conceito maquiavélico, o de Vestfália, o de Hobbes, o dos constitucionalistas ou o mais radical de Rousseau. Da mesma forma, compreender as dimensões da soberania é fundamental para que se possa entender a distinção entre chefe de Estado, a personalização da soberania, e aquele que pratica crimes enquanto ocupa a chefia de Estado, como se fez no primeiro julgado da Câmara dos Lordes.

Soberania e ideologia

Antes, porém, de tentar compreender o impacto do caso Pinochet é interessante notar o modo pelo qual esquerda e direita têm se relacionado com a idéia de soberania. Tanto a relação de liberais como de socialistas com a idéia de soberania é ambígua. O Estado e seu poder soberano, tão odiados e malditos pelos que defendem o liberalismo de mercado, sempre foi a instituição mais importante para que o mercado pudesse se realizar num ambiente de estabilidade e segurança. Da mesma forma, a idéia de Estado como ambiente no qual uma nação ligada por uma cultura ou uma etnia comum se constitui sempre foi algo caro para conservadores e nacionalistas, a partir do século XIX, tendo sua máxima expressão no movimento nacional-socialista nas primeiras décadas do século XX. Também os liberais mais radicais deste século, como Hayek ou Friedman, mas especialmente os mentores menos ilustres do que se tornou o processo de globalização, não dispensam o Estado e sua soberania como instrumento de garantia da propriedade e de manutenção da ordem, sem com isso reservar-lhe qualquer papel na defesa de interesses nacionais. Daí por que todos que hoje articulam os interesses políticos ou econômicos de uma Nação, por intermédio do conceito de soberania, são vistos como retrógrados e incapazes de compreender as mudanças pelas quais o mundo vem passando. Por outro lado, os socialistas desde o início repudiaram o conceito de Estado, por vê-lo como instrumento a serviço da burguesia, pregando uma revolução universal que extinguiria todos os Estados. Porém, a partir da segunda metade deste século, especialmente nos países periféricos, os socialistas se aproximaram dos nacionalistas, tomando a bandeira da soberania nacional. Hoje, muito da crítica à globalização reside na conjunção de ideais socialistas e nacionalistas. Daí a esquizofrenia de nos depararmos com socialistas alinhados a ditadores nacionalistas que lutavam contra o colonialismo ou os interesses internacionais4.

Desta forma, aqueles que defendem o mercado, especialmente o mercado globalizado contra o Estado soberano, e que vêem o conceito de soberania como algo obsoleto e contraproducente do ponto de vista econômico, atentam para a sua importância na manutenção da impunidade de um terrorista de Estado como o ex-ditador chileno. Já os que defendem o Estado soberano como mecanismo de proteção contra as investidas do mercado vêem-se no dilema de continuar a defender a "Nação" contra os interesses estrangeiros, ou deixar-se entusiasmar pela possibilidade de ver punido aquele que mais atentou contra a soberania popular. Evidente que há liberais de mercado que não compactuam com a tortura e uma grande parte da esquerda que não mais se vê presa ao velho e absoluto conceito de soberania. Mas de qualquer forma estes fantasmas fazem parte do processo judicial (e por que não dizer também de exorcismo) submetido aos lordes magistrados ingleses.

Soberania e direitos humanos

Ao confirmar sua jurisdição para julgar os crimes de tortura, genocídio e terrorismo praticados sob o comando do general Pinochet, a justiça espanhola busca pôr em prática os princípios e valores éticos estabelecidos no segundo pós-guerra, a partir de uma intricada rede de declarações, tratados e organismos internacionais de direitos humanos, que culminam com a adoção de uma jurisdição internacional para julgar os que violam diversos dos princípios contidos nestes instrumentos. A corte espanhola, no entanto, se antecipou à entrada em vigor do novo Tribunal Internacional Criminal Permanente, no sentido de exercer, a partir de uma ótica doméstica, uma jurisdição universal sobre os direitos humanos. Nestes termos, a decisão da Audiência Nacional da Espanha, de 5/11/98, confirma sua pretensão à jurisdição universal para julgar o ex-ditador.

A idéia de que há crimes internacionais e que seus perpetradores possam ser julgados por Estados estranhos é uma novidade para aqueles que tomaram os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos apenas como um conjunto de princípios programáticos que deveriam servir muito mais como paradigma moral do que como direito. O susto foi maior ainda por ser o réu um ex-chefe de Estado, protegido pela imunidade decorrente da tradicional idéia de soberania, que não dissocia as exigências de autonomia de um Estado face aos demais da pessoa que exerce as funções de chefia de Estado. Mas, mesmo para aqueles que vinham atuando junto ao sistema internacional, não deixou de ser surpreendente o pedido de extradição formulado pelo governo espanhol, a partir da proposição feita por um juiz, assim como a primeira decisão dos magistrados da Câmara dos Lordes.

Isto, no entanto, só foi possível graças ao fortalecimento do sistema internacional de direitos humanos como um contraponto ao conceito de soberania como poder incontrastável nas esferas doméstica e sobretudo internacional.

O holocausto e as outras barbáries do período, como os campos soviéticos de trabalho forçado e mesmo a bomba atômica, causaram um profundo choque. Foi como reação a esta demonstração de irracionalidade e da capacidade do homem de se autodestruir, e principalmente da potencialidade destrutiva dos Estados em relação aos seus próprios nacionais, que surgiu a idéia contemporânea de direitos humanos. Trata-se de uma resposta ao vazio ético deixado pelo desencantamento5 que favoreceu o nazismo e todas as atrocidades por ele realizadas.

Assim é que surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer um novo horizonte ético, a partir do qual a relação dos Estados com seus cidadãos pudesse ser julgada por um paradigma externo ao próprio direito de Estado. A Declaração não surgiu com a pretensão de transformar-se em direito internacional, mesmo porque, coincidindo com o início da Guerra Fria, dificilmente seria possível alcançar um consenso mais sólido entre os dois blocos. Ela não é um tratado internacional, mas uma simples declaração decorrente de uma resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas. Não sendo um tratado, não pôde ser ratificada e, portanto, não tinha originalmente pretensão de obrigar os Estados juridicamente, mas, sim, de servir como paradigma moral.

De qualquer maneira, a Declaração passou a ocupar um papel importante no imaginário da comunidade internacional após a II Guerra, servindo de respaldo ideológico no processo de descolonização e na luta de resistência contra os regimes autoritários; deixando de ser um instrumento retórico e passando a ser incorporada pelos Estados enquanto direitos fundamentais em suas constituições6. Países da América Latina que se reconstitucionalizaram nesse período, quase todos incorporaram suas estrutura e lógica dentro de suas constituições. Talvez a Constituição brasileira de 1988 seja um ponto exemplar, não só de reprodução de sua lógica e dos demais instrumentos internacionais de proteção da pessoa humana, mas de uma ampliação e atualização de seus ideais. Além de sua pormenorizada carta de direitos, por força do parágrafo 2º do artigo 5º abre suas portas para que uma série de direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte passem a ingressar em nosso ordenamento numa posição privilegiada7.

Após a Declaração, surgiram instrumentos, como as Convenções Internacionais de Direitos Civis e Políticos; Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Contra a Tortura; Contra a Discriminação Racial; Contra Discriminação da Mulher, que reivindicam o status de direito internacional costumeiro8 e de tratados que vinculam a conduta dos Estados.

É possível afirmar que houve, nos últimos anos, bastante progresso, especialmente a partir da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, em 1993. Entre estes, a criação de um Alto Comissariado para Direitos Humanos, que tem por função articular as ações da ONU nesta esfera, além do Tribunal Internacional Criminal, a partir das experiências dos Tribunais de Ruanda e da ex-Iugoslávia. Desta forma, o sistema global, que até 1998 não contava senão com parâmetros normativos e agências fiscalizadoras (comitês e comissões), passou a contar com uma instância jurisdicional, ainda que em moldes bastante distintos daqueles existentes nos sistemas regionais de direitos humanos9. Ao menos para o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade e os de guerra, o sistema das Nações Unidas se fortaleceu neste último ano.

Os direitos humanos constituem o melhor exemplo do processo de constitucionalização da ordem internacional10. Isto não significa que as relações internacionais deixaram de ser regidas prevalentemente pela realpolitik e hoje se submetam aos parâmetros da lei dos direitos humanos. Mas cada vez mais este leque de normas e princípios tem desempenhado um papel significativo na relação entre as Nações e, sobretudo, no controle internacional da ação dos Estados em relação aos seus nacionais. Neste sentido, o conceito de soberania absoluta formulado em Vestfália vê-se limitado por regras ético-jurídicas, da mesma forma que este vem sendo domesticado pelo constitucionalismo na esfera interna dos Estados.

A grande dificuldade apresentada na esfera dos direitos humanos, no entanto, tem sido superar o discurso construído pelos parâmetros normativos e realizá-los na prática, ou seja, estabelecer uma autêntica judicialidade dos direitos humanos na esfera internacional. Daí a importância do caso Pinochet. Nele se busca pôr em prática o que, nestes últimos cinqüenta anos, se não ficou apenas no papel, deu grandes mostras de fragilidade, especialmente quando se buscou a punição de importantes agentes do Estado. A justiça espanhola, ao admitir sua competência para o julgamento de Pinochet, nada mais fez do que executar as possibilidades que lhe foram colocadas à disposição quando de seu reconhecimento, e conseqüente incorporação, das normas internacionais de proteção aos direitos humanos.

As decisões da House of Lords

O processo criminal instaurado na Espanha contra Pinochet traz para o direito internacional dos direitos humanos dois marcos jurídicos de extrema importância. O primeiro é a própria ratio legis das leis invocadas, quais sejam, os instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos. A competência da justiça espanhola fundamenta-se na chamada jurisdição universal para a realização de julgamentos contra violações de direitos humanos. Tal jurisdição reafirma a universalidade como a principal característica dos direitos humanos, colocando um desafio para as cortes de todo o mundo.Esta universalidade é estendida também às diversas jurisdições domésticas, tornando-as competentes para o julgamento de atos que violem os tratados internacionais de direitos humanos em outras bases territoriais que não as suas.

Um segundo marco refere-se ao fato de que a permanência de Pinochet em território inglês permitiu a elaboração pela justiça espanhola de um pedido de extradição do general. Tratando-se o general de um chefe de Estado reformado, foi posto o debate acerca do alcance da imunidade diplomática em contraposição à prática de violações sistemáticas dos direitos humanos.

Conforme ficou demonstrado pelo voto da maioria dos magistrados ingleses, a questão sobre a imunidade proteger ou não o ex-ditador não era tão simples como poderia sugerir uma rápida leitura do texto legal. O silogismo: a lei garante imunidade aos ex-chefes de Estado; Pinochet é um ex-chefe de Estado; logo, deverá ter sua imunidade garantida, foi colocado à prova, no que se refere à sua premissa.

Para os votos vencedores, antes de se declarar a imunidade do ex-ditador, era necessário verificar se os atos de violação dos direitos humanos de responsabilidade do general eram compatíveis com a função de chefe de Estado ou não. Anteciparam-se a eventuais críticas, questionando-se se seria uma atribuição de um tribunal estrangeiro determinar se o comportamento de um governante era ou não digno de um chefe de Estado. Concluíram que isto estaria fora de sua alçada legal e portanto seria uma interferência na soberania do Estado estrangeiro. Mais que isto, seria muito arriscado para qualquer tribunal se arvorar em guardião último do que devem ou não fazer os chefes de Estado.

Antes porém de dar o caso por encerrado, lembraram que, se não há um estabelecimento preciso do que constitui a função de chefe de Estado, há, pelo menos, restrições estabelecidas pelo direito internacional sobre o que não é admitido ao Estado, no que se refere à sua relação com os seus nacionais. Se um Estado não pode torturar ou liquidar arbitrariamente os seus inimigos, e se isto constitui um crime internacional, ao cometer atos que constituíram graves violações de direitos humanos, o general Pinochet estava violando frontalmente o direito internacional. Neste sentido, os crimes contrários à lei internacional não podem ser considerados atos do Estado chileno, mas sim das pessoas que se encontravam no exercício do poder. Desta forma, a imunidade que deveria salvaguardar as pessoas, para não colocar em risco a soberania nacional, perde totalmente o seu sentido. Não pode o direito internacional ser utilizado como escusa para sua própria implementação. Colocado em outros termos, não podemos invocar os tratados diplomáticos sobre imunidade para não aplicar os tratados internacionais de direitos humanos.

De acordo com o tribunal, ao praticarem atos de violação sistemática de direitos humanos, como os praticados pelo ex-ditador e seus asseclas, estes se despiram da condição de agentes de Estado e agiram na condição de delinqüentes comuns, pois para o direito internacional a prática de violação de direitos humanos não é compatível com a posição de agente de Estado, quanto mais de chefe de Estado. Desta forma, a imunidade prevista na lei inglesa não deveria beneficiar o ex-ditador.

Foi este o conteúdo da primeira decisão da Câmara dos Lordes, abrindo caminho para a decisão político-administrativa do ministro do Interior britânico acerca da permissão para o início dos procedimentos de extradição.

No entanto, dada a alegação de que um dos lordes participantes da primeira decisão possuía vínculos com uma organização não-governamental engajada na luta pela extradição e condenação do general, a decisão de 25/10/98 foi posta de lado. Convocou-se, então, para 15/01/99, o início de nova audiência de apelação na Câmara dos Lordes.

A nova audiência, finalizada somente em 24 de março, consagrou a derrota do principal argumento de defesa do general: seu suposto direito à imunidade de jurisdição. Os lordes reafirmaram a inexistência da imunidade de jurisdição para antigos chefes de Estado, no que diz respeito às acusações de violação dos direitos humanos, reiterando os pronunciamentos da primeira decisão. No entanto, um argumento que já havia sido discutido de maneira superficial na primeira audiência ganhou força e acabou limitando a competência material da justiça espanhola quanto aos crimes atribuídos a Pinochet.

Ocorre que a lei de extradição britânica, de 1989, somente permite que uma pessoa seja presa no Reino Unido, para fins de extradição, no caso do pedido extradicional fundar-se em ato ilícito classificável como crime de extradição. Na mesma lei, encontram-se os requisitos para a caracterização deste crime; para que os lordes pudessem decidir acerca da extradição do general, foi necessária uma avaliação das condutas criminosas a ele atribuídas a fim de se verificar se estas poderiam ser compreendidas como crime de extradição.

Para o crime ser considerado desta forma sua conduta deve ser considerada criminosa conforme a lei do país que requer a extradição do suposto autor, bem como conforme a lei do país onde se localiza o extraditando. Trata-se da chamada regra de dupla criminalização. Uma dúvida surge quanto ao momento em que tais previsões devem estar em vigor nos respectivos países. A conduta criminal que fundamenta o pedido de extradição deve ser assim considerada pelas legislações dos países envolvidos no momento em que se deu o fato criminoso, ou no momento em que se formulou o pedido de extradição? Há então dois entendimentos que permeiam todo o debate na segunda audiência.

Por um lado, há a compreensão de que a exigência do Extradition Act demanda o reconhecimento do fato fundamentador da extradição como crime, pelas duas ordens jurídicas envolvidas, no momento em que a conduta foi posta em prática. Conforme o entendimento adotado pela corte, a tortura deveria ser considerada crime pela ordem jurídica espanhola, bem como pela inglesa, no momento em que esta se deu. Este entendimento culminou na limitação da competência jurisdicional espanhola. A Convenção Contra a Tortura"6, tratado internacional que criminaliza tal conduta, somente entrou em vigor na Inglaterra em 29/09/88, conforme a seção 134 do Criminal Justice Act. Logo, se a double criminality rule deve existir no momento da prática criminosa, somente pode compreender como crime a tortura praticada após a entrada em vigor do Criminal Justice Act. Desta forma, somente os atos praticados após 29/09/88 são passíveis de extradição, ou mesmo julgamento na Inglaterra.

Em sentido contrário encontra-se a posição vencida na audiência dos lordes, segundo a qual o momento da double criminality rule, isto é, da previsão legal da conduta criminosa nas legislações dos países envolvidos, é o instante em que se realiza o pedido de extradição. Se esta houvesse sido a opinião dominante, a extradição de Pinochet para a Espanha não implicaria nenhuma limitação maior ao juízo criminal espanhol.

É legítimo, então, afirmar que as duas audiências realizadas na Câmara dos Lordes prestaram uma inestimável contribuição à consolidação do direito internacional dos direitos humanos, garantindo-lhes plena eficácia. Apesar da validade legal somente da segunda audiência, os debates terminados em 25/10/98, bem como os encerrados em 24/03/99, serviram para esgotar o argumento da imunidade, permitindo a consagração jurídica da idéia de que os direitos humanos são um forte obstáculo ao terrorismo de Estado.

Conclusão

As decisões lapidadas pela Câmara dos Lordes levaram às últimas conseqüências a lógica que vem sendo construída pelo sistema internacional de direitos humanos nos últimos cinqüenta anos. Caso o braço político do governo britânico realmente permita a extradição do ex-ditador, seremos testemunhas de um importante precedente na relativização do conceito absoluto de soberania que tem governado as relações entre Estados pelo menos a partir de Vestfália.

Ao decidir que a imunidade diplomática não poderia ser um obstáculo para a punição de um autor de crimes contra a humanidade, como a tortura, o seqüestro, o estupro e a eliminação de pessoas, a corte agiu em conformidade a uma ética de princípios, esclarecendo que não seria papel do Judiciário indagar sobre as conseqüências políticas de sua decisão. Ainda em conformidade com os magistrados, é papel do Executivo fazer o juízo político, ou agir em conformidade com uma ética de resultados, e decidir sobre a conveniência de se extraditar ou não o réu.

Esta distinção entre a ética empregada pelos magistrados e aquela que governa o mundo da política, especialmente da política internacional, está intimamente ligada à discussão sobre as diversas formas de se encarar o problema da soberania. A decisão dos lordes afastou a soberania dos Estados da tradição hobbesiano-maquiavélica, assumindo a direção da tradição grocio-kantiana, refletida na política externa fundada no direito internacional, constituindo-se o poder como reflexo da busca por interesses coletivos, ou melhor, interesses da comunidade internacional, da humanidade, e não interesses egoístas ligados ao bem-estar dos governantes.

Seria, no entanto, ingênuo supor que a lógica desta decisão seja capaz de impor um novo padrão de comportamento ético na esfera das relações internacionais. Os recentes bombardeios do Iraque e da Iugoslávia demonstram apenas que a questão humanitária assumiu um grau significativo de importância na agenda da política internacional, pois se transformou numa das principais justificativas capazes de legitimar ações militares, como as que estamos presenciando. No entanto, em outras situações de violação sistemática de direitos, ou de limitação à autodeterminação, como no Congo, na China, no Timor Leste, em relação aos curdos na Turquia etc., os direitos humanos têm sido incapazes de mobilizar os principais atores do cenário internacional. Passamos de uma situação de profundo desprezo pelos direitos humanos para uma situação em que eles importam, ainda que exclusivamente como fonte de legitimação.

Isto não deve ser utilizado como um argumento contrário à perspectiva de punição do ex-ditador chileno por tribunais estrangeiros. Ao contrário. A decisão dos lordes é, antes de tudo, um passo na direção da constitucionalização das relações internacionais, portanto, um passo a ser respaldado por todos aqueles que entendem que a soberania é uma construção humana concebida com o objetivo de assegurar a paz social, nos termos daqueles direitos fundamentais à preservação da dignidade humana, sem o que esta idéia se esvai. Seria melhor que o Tribunal Internacional Criminal Permanente já se encontrasse em plena atividade e que a punição do general fosse resultado de uma ação de toda a comunidade internacional. Porém, a punição por um tribunal de um Estado estrangeiro, exercendo sua jurisdição universal, fundada nos instrumentos internacionais de direitos humanos, como a Convenção Contra a Tortura, já é um marco importantíssimo. Se aplicado de forma sistemática, muitos ex-ditadores, e muitos daqueles que os auxiliaram, dentro e fora de casa, terão que rever seus planos de viagem. E para os que hoje ocupam o poder, é uma sinalização de que a soberania não mais servirá como um escudo de impunidade por atos praticados contra a verdadeira soberania, que é a popular.

Oscar Vilhena Vieira é professor de Direitos Humanos da PUC-SP e secretário-executivo do Ilanud.

José Francisco Sieber Luz Filho é professor de Direito Internacional na Escola de Soc. e Política de SP.