Sociedade

Dizem que vender é uma arte. Não é, é uma técnica

Tantos são os tipos de vendedores quase quantas são as mercadorias postas à venda. Vende-se este axioma a quem der melhor preço.

Dizem que vender é uma arte. Não é, é uma técnica. Arte é a que exerce o consumidor para esquivar-se da lábia dos vendedores. Dos que vão à nossa casa, por exemplo, ou ao nosso escritório para vender livros. "O senhor me dá licença de tomar um pouco do seu tempo." Nos pede a licença mas não dá o tempo de recusá-la, e nos toma realmente o tempo, que não é pouco. "O senhor, culto como é, deve interessar-se por isso".

E desdobra à nossa frente uma folha litográfica em que as lombadas de coleções encadernadas nos aparecem coloridamente, como reclames de pudins ou de buquês de flores.

"Não, não quero a enciclopédia javanesa, nem o dicionário etiológico das moléstias tropicais, nem a pré-história de Creta em trinta e sete volumes", você responde, mas não adianta. O vendedor lhe empurra sempre uma coleção infantil para seus filhos, um livro de cozinha para sua esposa, um manual de ciência eletrônica para TV. Para livrar-se do vendedor, para não enfrentar a cara feia do patrão que vem averiguar por que você está perdendo tempo, você compra a prestações e fica dois anos pagando por livros que provavelmente jamais tirará da estante.

Há também o que o procura, geralmente nas horas em que você está mais ocupado, pra lhe vender outro tipo de ilusão comercial: a segurança para o futuro. Geralmente começam com uma mentira, ou com uma meia-verdade. "Vim procurá-lo recomendado por Fulano de Tal, que é muito seu amigo e que fez um ótimo negócio comigo". E passa a demonstrar-lhe - sem que  você tenha tempo de demonstrar que o Fulano de Tal não é seu amigo e fez o pior negócio da vida - as vantagens das apólices de seguro de vida, seguro contra roubo, seguro contra batidas no paralama esquerdo do automóvel ou contra a invasão de sua casa pela janela dos fundos. Você espera um instante em que o vendedor tenha que tomar fôlego para poder interrompê-lo e recusar a oferta, mas parece que todos os vendedores têm uma característica em comum: não precisam tomar fôlego, como qualquer mortal. No fim, quando você já se proclama derrotado, não pela logicidade dos argumentos, mas pela monotonia monocórdica da monumental argumentação, o vendedor de apólice de seguros coloca-lhe um problema que não nem de palavras cruzadas nem de álgebra, mas pior que ambos:"Se o senhor entrar no plano A/3, XTP-7, quando for sorteada a apólice 62/CDB, em seguida à RQL-98, o senhor pode multiplicar o resultado pela sua idade e deduzir o capital empatado. Se der igual ao valor da prestação mensal, multiplicado pelo número da sua casa menos o número de calorias que o senhor consome por dia, então o senhor"- e o vendedor conclui triunfante -"poderá passar para o plano B/4-8-PTX".

Geralmente você desiste, não porque tenha esperança de chegar intacto ao fim da vida, mas porque não tem esperanças de, até lá, entender o mistério daqueles números e daquelas letras. E, logo depois, entra no escritório outro vendedor; que lhe vem provar que será um alto negócio adquirir, sem entrada e mais nada, em duzentas e quarenta e cinco prestações, a juros, um terreno que será eventualmente loteado quando for inaugurada a comissão que irá desbravar o sertão da Amazônia.

Só há - já percebi - uma maneira de livrar-se dos vendedores: é transformar-se num vendedor.

(publicado no "Suplemento Feminino" de O Estado de S.Paulo em 12.01.1962)

Perseu Abramo, jornalista falecido em 1996