Sociedade

Se o termo Brasil for tomado como a simples porção físico-geográfica, este território é habitado há dezenas de milhares de anos. Tampouco foi o "descobrimento" o alvorecer de uma Nação, mas apenas o início da colonização portuguesa. Um enfoque crítico sobre as comemorações dos chamados “500 anos” haverá de concluir que a finalidade desta campanha é difundir os valores da ordem e a versão dominante sobre a formação do Brasil

O Estado - por meio da Presidência da República - e, "solidariamente", as instituições privadas de hegemonia encontram-se empenhados em promover una campanha intitulada "500 Anos do Brasil". O mote selecionado foi a data inaugural da efeméride histórica oficial: a chegada, no litoral sul do atual estado da Bahia, da frota portuguesa comandada pelo capitão-mor Pedro Álvares Cabral, cuja missão reunia, a um só tempo - como era de praxe na empresa colonial-mercantil no início de sua fase expansionista -, objetivos comerciais, diplomáticos e militares. Assim, o dia 22 de abril de 2000 acabou tornando-se o marco temporal para o que vem sendo apresentado como grande festejo da nacionalidade. Adicionalmente, há o interesse de associar os eventos articulados em torno do suposto aniversário do nascimento do Brasil à "mística" da passagem do milênio, que estranhamente adquiriu o poder de conceder uma aura de respeitabilidade e autoridade a todas e quaisquer propostas incapazes de se afirmarem pelos seus próprios conteúdos e méritos.

O que mais chama a atenção no discurso dessa cruzada ufanista é o seu caráter genérico e vazio. Na verdade, limita-se a repetir à exaustão a idéia monocórdica - já contida por inteiro no lema escolhido - de que o Brasil teria "500 anos" e a convidar o povo, como espectador, naturalmente, para participar na superlativa comemoração do "natalício" pátrio. As únicas concretudes do marketing se localizam no acento festivo e na exaltação dos aspectos pitorescos das realizações populares e da cultura nacional. Todavia, essa leviandade nada tem de ingênua. Pelo contrário, possui uma finalidade bem clara. Um enfoque crítico, um olhar que descarte a ilusão na suposta neutralidade dos proprietários e controladores da grande mídia, haverá de concluir que a finalidade da campanha é difundir os valores da ordem e a versão dominante sobre a formação do Brasil, especialmente sobre o denominado "descobrimento" e a questão da nacionalidade. Seus propósitos são, pois, conformistas, sobretudo no momento em que seus autores são responsáveis pelo maior ataque aos interesses nacionais jamais perpetrado no país.

O apelo indireto à resignação, devidamente oculto pela capa de efusão hedonista, transparece de vários modos. Inicialmente, pela evocação de uma história evolucionista e linear, sem rupturas e alteridades políticas e sociais, desde a chegada de Cabral até a "globalização". Curiosamente, esse tour de force empirista, que só pode construir-se às custas de relatos pueris e calendários enfadonhos, reunindo pois a dúplice condição de prisioneiro e mestre do senso comum - especialmente quando a primazia do irracionalismo no pensamento burguês contemporâneo decretou o império da contingência e da singularidade -, consegue ser mais fantasioso do que as filosofias idealistas da História, que pelo menos ousaram inserir um tipo qualquer de razão em que apenas pontificaria o fato reificado. Na versão oficial, os conflitos e consensos são até reconhecidos. Aqueles, narrados e não raro bajulados, mas invariavelmente portadores de origens misteriosas. Esses, alvos de uma exaltação interessada e transformados em emblema de um povo cuja cordialidade foi astuciosamente interpretada como submissão. Assim, a luta de classes, com seus corolários coercitivos e hegemônicos, encontra-se devidamente submersa no júbilo cívico. Em seu lugar, entram em cena os heróis demiurgos e messiânicos, fabricados sob medida para serem os principais e tantas vezes únicos protagonistas do processo civilizatório. A lógica organizadora dos eventos oficiais em torno dos "500 anos" aponta para a instrumentalização do sentimento patriótico espontâneo, bem como das realizações das várias etnias e segmentos sociais componentes da civilização brasileira, visando a reproduzir e a intensificar a inconsciência de si e a servidão espiritual no interior das classes e setores explorados e oprimidos.

Muito mais de 500 anos

Até onde tais objetivos são intencionais ou derivam espontaneamente do ângulo epistemológico dominante, trata-se de assunto mais longo. Todavia, sua exaustão analítica é desnecessária para que as responsabilidades sejam desveladas: nos políticos e intelectuais da ordem há, certamente, uma combinação da teleologia com a ideologia. O título escolhido já as traz embutidas. Se o termo "Brasil" for tomado como a simples porção físico-geográfica hoje abarcada pelo Estado nacional de mesmo nome, trata-se de um monstruoso equívoco. Como sustentam renomados pesquisadores, apoiados em evidências indiretas de povoamentos e sociabilidades rudimentares, este território é habitado há dezenas de milhares de anos por seres humanos originários da Ásia e, possivelmente, em muito menor escala e até agora sem comprovação, da Polinésia. Lothop, em 1961, trabalhou com a suposição de povoamento dos continentes americanos pelo Homo Sapiens a partir de 50 a 35 mil anos A. C., tese hoje corroborada por especialistas brasileiros. É crível que a primeira corrente protomongolóide tenha utilizado a primeira brecha do intervalo interestadial - um período menos frio da glaciação - ocorrida mais ou menos entre 40 e 30 mil anos atrás, para entrar pelo norte.

Hipóteses à parte, há o esqueleto fóssil de uma mulher no município de Lagoa Santa, em Minas Gerais, com idade datada entre 11 e 12 mil anos, cujas características físicas sugerem ter havido pelo menos uma antiga leva imigratória composta por contingentes com alguma influência negróide, talvez originários do sudeste asiático, concomitante ou anterior à chegada dos agrupamentos ancestrais que tiveram influência dominante na composição genética dos atuais ameríndios. Diante desses estudos de antropologia física e cultural, a afirmativa de que o "Brasil" teria sido descoberto por um europeu não passa de uma piada de muito mau gosto ou senão de uma tese tragicamente séria, tão anticientífica e preconceituosa como as várias tentativas de "provar" a suposta superioridade racial de certos setores humanos sobre outros, como a criminologia de Lombroso, a antropologia do III Reich e as tão vergonhosas quanto pacóvias fábulas, que habitam os poros da "democracia racial brasileira", sobre as inatas "inferioridade" da colonização lusitana, "indolência" dos indígenas e "incapacidade" dos negros.

Ora, descobrir é um ato exclusivo do sujeito humano. Quando a frota de Cabral ancorou em Porto Seguro, encontrou uma população dispersa que alguns estudiosos estimam em 5 milhões de indivíduos, espalhados em aproximadamente mil etnias, enorme diversidade cultural e várias famílias lingüísticas, uma população maior do que a de Portugal à época. Dizer que esta terra foi descoberta há apenas "500 anos" representa, de imediato, uma ignorância sobre informações antropológicas elementares e de domínio público. Todavia, mais do que uma tolice sem maiores conseqüências - além do vexame a que se sujeitam os seus formuladores e divulgadores -, sugere também a concepção científica e moralmente insustentável de considerar que os primeiros habitantes do atual território brasileiro desde tempos imemoriais não estariam incluídos entre os humanos, isto é, seriam meros animais irracionais. Assim, a imersão sociocultural das comunidades primitivas na natureza, típica de um processo de humanização em que o trabalho e a reprodução da vida social ainda não havia se complexificado - especialmente na ausência da propriedade, da produção de excedentes, das classes sociais e do Estado - foi transformada abusivamente numa diluição absoluta da humanidade no meio natural, negando-a radicalmente.

O princípio epistemológico ativo desse equívoco é o preconceito eurocêntrico, aquele mesmo valor que fundamentou ideologicamente a expansão colonial patrocinada pelo capital mercantil e que ainda hoje, no Brasil, reproduz o racismo e a opressão contra os indivíduos e segmentos sociais de origem não-européia, notadamente negra e indígena, potencializado pelo culto, totalmente desprovido de senso crítico, aos padrões comportamentais vigentes na sociabilidade do capitalismo avançado localizada num mítico "primeiro mundo". Por exemplo, um artigo de Roberto Campos na Folha de S. Paulo, procurando fundamentar a tese de que o "subdesenvolvimento" seria produto de "nossos componentes culturais", investiu contra o que chamou de "a cultura ibérica do privilégio, a cultura indígena da indolência e a cultura negra da magia..." e enalteceu os Estados Unidos, tidos como “talvez a sociedade mais inovadora e criativa da era moderna”, e os "anglo-saxões, que prezam a racionalidade e a competição". É compreensível que seus heróis tenham pele clara, cabelos aloirados e língua de matriz nórdica, da mesma forma pela qual os historiadores da ordem só destacam os indivíduos negros e índios quando devidamente associados a eventos resgatados pelos interesses dominantes.

Mesmo assim, a ocupação colonial de 1500 não pode ser caracterizada como uma "invasão". Nas civilizações inca e asteca - sem falar de sociedades anteriores ao início da colonização espanhola, como as maia, tolteca, tiahuanaco, chimu e outras -, houve Estado com território permanente mais ou menos demarcado e, portanto, formas rudimentares de soberania, ou seja, um poder ou autoridade, com dimensão socioespacial, que não devia sua validade a nenhuma ordem superior a si própria. Ao contrário, nos locais onde a empresa colonial portuguesa aportou, só existiam tribos cujos terrenos eram fugazes e determinados pelo princípio heteronômico das condições naturais, que dispunham sobre a possibilidade do exercício da coleta e o recurso ao nomadismo. Com maior motivo, seria equivocado considerar como sendo nações as comunidades autóctones do atual Brasil, já que, além de autoridade estatal careciam de mercado, sociedade política e uma identidade ou liame supratribal no plano das instituições. Contudo, essa lacuna não pode ser preenchida a partir da imaginação conservadora estimulada pelo revival dos valores colonialistas e racistas.

Muito menos de 500 anos

Se não aconteceu propriamente um ato invasor, tampouco foi o chamado "descobrimento" o alvorecer de uma Nação. O evento de "500 anos" atrás representou, não o surgimento do país, mas o início da colonização portuguesa na porção centro-leste do continente sul-americano delineada pelo Tratado de Tordesilhas - pactuado entre a duas potências ibéricas de então -e, por via de conseqüência, o ponto de partida para o genocídio e a escravidão que marcam indelevelmente a expansão da modernidade e o surto de progresso patrocinados pelo capital mercantil "antediluviano" e articulados à novidade representada pelo modo de produção capitalista em ascenso na Europa. É importante frisar que o Brasil, como nação, é um fato histórico muito posterior. Foi resultado de um longo e complexo processo iniciado no ventre da jovem sociedade colonial e só configurado na sua maturidade. Implicou a constituição de uma simbiose étnico-racial, uma nova síntese cultural, um mercado interno, uma sociedade diferenciada da metrópole européia, um povo, uma classe dominante local e a emergência de vontades políticas a partir de centenas de movimentos sociais e nacional-emancipatórios mais ou menos definidos e conseqüentes. Passou por disputas, dissensos e, na separação efetivada pelos sucessos ocorridos a partir de 1822 - que teve corno epicentro não a vontade individual do Príncipe, mas a Guerra da Independência, cuja vitória ficou gravada no episódio baiano do dia 2 de julho de 1823 -, pela constituição do Estado nacional autônomo que, até hoje, sob o capitalismo monopolista-dependente, reproduz-se em condições de soberania precária.

Dizer que o Brasil tem "500 anos" é simplesmente uma tentativa arrogante de apagar tal processo. De acordo com essa farsa, o país teria nascido de um ato fundante exclusivamente europeu e colonial, e não, como de fato ocorreu, por meio de uma germinação sincrética por evidência multiétnica, anticolonial por antítese política e conflituosa por necessidade histórica. Se a Nação tivesse nascido no exato dia 22 de abril de 1500, teriam sido, os indígenas, meros espectadores, e as etnias de origem africana, ilustres ausentes. Considerando as condições específicas da realidade brasileira, trata-se de uma visão insustentável e altamente excludente: qualquer semelhança com o princípio econômico escravocrata de que os negros eram simples instrumentos de produção, ou seja, "coisas", não é coincidência. Como admitir uma identidade nacional sem um Estado nacional sequer, sem tabas e quilombos, sem as palavras de origem africana e indígena que enriqueceram o idioma português, sem os vários tons que colorem nossa gente, enfim, sem feijoadas, pingas, batuques e síncopes?

É compreensível que as burguesias portuguesa e espanhola queiram hoje glorificar as "façanhas" de seus antepassados de classe para assim, como igualmente queriam os salazaristas ao incentivarem o glamour das conquistas portuguesas, prestigiarem-se internacionalmente, tentar iludir os povos de seus países e desse modo se legitimarem como dirigentes incontestados. Afinal, a legitimidade, que pressupõe a hegemonia, é o potencial de manter a dominação sem o recurso coercitivo. Tal foi o seu móvel nos festejos sobre a expansão comercial-mercantil. O que conduz os magnatas e neoliberais brasileiros a macaqueá-los? A história profana do país pode fornecer algumas pistas. Ocorre que, aqui, a burguesia, para organizar-se em classe dominante, não se viu na contingência de antagonizar e destruir revolucionariamente a velha ordem. Assim, não precisou constituir, para realizar tal tarefa, uma aliança com o proletariado nascente, o campesinato e a pequena burguesia urbana. Ao contrário de produzir uma ideologia ao seu tempo revolucionária, como em outros lugares fizeram suas irmãs de classe, incorporou o conservadorismo cultural dos antepassados imediatos, os senhores de escravos e a oligarquia rural da Primeira República, partícipes da aliança social que sustentou o nascimento e a consolidação do Estado nacional. A continuidade do monopólio da terra, jamais contestado seriamente, foi o penhor do pacto burguês-latifundiário que acompanhou toda a história da dependência ao imperialismo - de onde assimilou os princípios da reação contemporânea - e até hoje se mantém como pilar da ordem.

A via da primazia burguesa no Brasil não pode ser compreendida à luz de modelos importados. Na Inglaterra, com todos os arreglos, um rei foi enforcado. Na França, rolaram cabeças nobres. Nos EUA, a ruptura colonial gerou uma República. Mas, aqui, o capital se afirmou pelo topo, de maneira "passiva". Gramsci, nos Quaderni del Cárcere, retomando uma expressão de Cuoco, refere-se a essa variante sem jacobinismo e sem ilustração: sem "terror", como "revolução sem revolução". Assim, a burguesia, salvo algumas frações subalternas, nunca teve um comportamento democrático-radical, jamais patrocinou um projeto nacional verdadeiramente autônomo e sempre manifestou uma enorme desconfiança em relação à sua própria forma democrática clássica do Estado, vista como porta aberta à anarquia, licenciosidade e agitação social. Com a entrada do proletariado em cena, passou a identificar as liberdades políticas e sindicais, especialmente após a Revolução de Outubro, como caldo de cultura para o "perigo vermelho". Desenvolveu formas de dominação clientelistas, tutelares e altamente repressivas. Adotando à risca o lema positivista, que gravou na bandeira do país, sempre condicionou o progresso à ordem. Adaptou seus objetivos "nacionais" ao cosmopolitismo imperialista, hoje denominado "globalização". Cultivou o obscurantismo e colheu o atraso cultural, agora elevado à enésima potência pela ode pós-moderna ao irracionalismo. Zelou pelo conservadorismo moral e reproduziu preconceitos. Colocou a reação política no centro da res publica.

Brasil: outros 500

Das quarteladas à presença das Forças Armadas na cúpula da jovem República, passando pelo regime militar, os capitalistas brasileiros conceberam um Estado submisso aos interesses externos e tido como fator de "segurança interna". Mostraram-se incapazes de consolidar instituições civis estáveis e duradouras, como é hoje comprovado pela crise da Federação. Na ótica da cultura dominante, que a transição à "nova" sociedade capitalista mundializada ora aprofundou, ora reciclou, ora simplesmente manteve, não são bem vistos o fortalecimento da sociedade civil, a configuração de campos ideológicos partidarizados e certos direitos formais adotados pelas democracias imperialistas do hemisfério norte. Aqui, todo partidário da reação aberta se diz "de centro", todo liberal-conservador se diz "moderado", todo democrata se diz "de esquerda", todo reformista, embora não se diga, é considerado perigosamente "radical".

Em suma, o capital alcançou a primazia econômica e política sem romper radicalmente com a herança genocida do período colonial, sem abandonar os antigos valores aristocráticos, sem "esclarecimento", preferindo mudanças acordadas "por cima" a aventurar-se no terreno arriscado de uma revolução democrática com participação popular.

Assim, por mais que agora seus representantes se proclamem "modernos" e "renovadores", mantiveram os traços arcaicos e idiossincráticos de seu passado escravista-colonial, que foram o ponto de partida de sua modernidade e são um dos pilares valorativos do jugo atual num quadro de dependência, de existência associada aos centros oligopolistas-financeiros internacionais, de manutenção do monopólio da terra, de alternância entre a inclusão exploradora e a simples "exclusão" no interior do próprio sistema, de um regime político que oscila do autoritarismo absoluto à democracia limitada e de formas de dominação que combinam o uso da coerção com a inoculação da passividade.
A saga da sociedade brasileira tem sido, basicamente, o esforço permanente dos "de cima" para manter os seus privilégios - em certo momento, voltando-se até mesmo contra o caduco sistema colonial - e, por fim, da burguesia para impor a sua primazia, bem como o combate dos setores populares, incluindo os setores e etnias oprimidos, por seus interesses e anseios. Essa práxis permanente, a luta de classes entre explorados e exploradores, entre oprimidos e opressores, em todas as suas manifestações multilaterais - econômicas, políticas, ideológicas, religiosas e culturais -, é a essência humana da história dos "500 anos" que transcorreram desde o início da colonização até a presente mundialização neoliberal.

Todavia, o esforço de síntese não autoriza simplificações. Como notou Marx, nos Grundrisse, "o real e o concreto" só podem ser compreendidos como "uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações." Trata-se, portanto, de um processo complexo e multifacetado, mais próximo de um feixe social de alteridades, contradições e nuanças do que de um vetor físico.

É preciso, por exemplo, notar que a luta das classes e segmentos populares não se limitou à resistência, mesmo que a dimensão defensiva tenha sido permanente e de importância fundamental. Assim, o elemento bastardo - porque exógeno às núpcias contraídas no topo -, com suas inúmeras revoluções ofensivas, conquistas efetivas e traços culturais, impregnou e concedeu singularidade à formação econômico-social e à cultura nacionais. Ademais, a dominação de classe nem sempre necessitou esmagar o povo pela força bruta. Não raro, os conflitos, modos mais ativos de contraposição e inconformidade, foram neutralizados e até submersos pela hegemonia passiva traduzida no clientelismo, no compadrismo, na servidão psicossocial, no messianismo, na esperteza dos políticos conservadores, na despartidarização, na conciliação, nas demagogias governamentais e no controle midiático. A melancolia dos deserdados e o niilismo político, cujo legítimo ancestral é o banzo do escravo, apenas se opõe à situação dominante como mimetismo amargurado e apático. Representa, no máximo, a "crítica das armas" ensarilhadas. Porém, o conflito nunca foi completamente banido. A própria eficácia da hegemonia passiva sempre foi garantida pela repressão política pressuposta como reserva estratégica, ostentada como ameaça iminente e, nos momentos de crise, ativada como solução "democrática". E assim o foi porque as lutas das classes populares sempre desempenharam um papel central.

Portanto, a tarefa de desvelar nossa história real, livrando-a do conto da carochinha alquímico que tem no "descobrimento" a pedra filosofal, significa, além de um protesto de amor ao gênero humano e à verdade, o resgate ao combate centenar, dos povos e etnias que constituíram a nação brasileira, pela liberdade, justiça, soberania e demais direitos individuais, políticos e sociais - esse, de fato, existente há "500 anos". Sob tal ângulo, vale a pena contrapor à campanha elitista-conservadora dos "de cima" uma atividade contra-hegemônica ampla e profunda, visando a desconstruir a lógica do seu discurso, a neutralizar os seus desdobramentos políticos estratégicos ou conjunturais e a contribuir para o esforço mais geral de potencializar as consciências, capacidades e iniciativas de todas as classes e setores explorados e oprimidos que compõem o bloco histórico capaz de sustentar e operar a luta emancipatória na sociedade brasileira contemporânea.

Ronald Rocha é sociólogo, membro da editoria da revista Práxis e do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo