Política

Enfrentar as contradições globais, interpretar os movimentos sociais emergentes e conceber de novo Estado e Nação são desafios para o pensamento político, para os partidos que ainda existirem no século XXI, ou para as organizações políticas que os substituirão

As inovações tecnológicas e demais transformações nas formas de produção da terceira revolução industrial aceleraram nas últimas décadas a internacionalização da economia, desequilibrando as lutas sociais e alterando o cenário político mundial. A relação entre capital e trabalho, da disputa salário versus lucro ou das frentes comuns em defesa de interesses nacionais, se desloca para a problemática da globalização e da exclusão econômica e social. Os impasses decorrentes na vida sindical e na política nacional, juntamente com o desmanche da economia estatal centralizada do socialismo europeu, explicitam uma crise de paradigmas para a luta democrática em geral e para as organizações de esquerda em particular. É preciso interpretar as novas contradições, compreender a evolução do movimento social, conceituar Estado e Nação nas novas circunstâncias e, em conseqüência, pôr em discussão o ideário dos partidos.

Velhos instrumentos

O século XX termina em meio a um retrocesso político global, que enfraquece organizações sindicais, ameaça afirmações nacionais, cancela direitos sociais e desqualifica idéias socialistas. A fase atual da modernização e internacionalização da produção inviabiliza a economia de muitas nações, desequilibrando relações de trabalho e tornando obsoletos instrumentos de organização política. Informatização, automação e engenharia genética convivem com desemprego, desagregação urbana e guerras sectárias, como se compusessem realidades desconexas. Na nova configuração mundial, desvencilhadas dos embates entre sistemas políticos ou entre modelos econômicos, as economias centrais comandam um processo de globalização concentradora.

Estados Unidos e Mercado Comum Europeu combinam liberalização econômica interna com intervenção na ordem econômica e política mundial, garantida pela hegemonia militar norte-americana, só distantemente contestada pela Rússia, onde os saqueadores do antigo regime estão sentados sobre uma ameaça planetária, um arsenal nuclear em deterioração. Tropeços econômicos asiáticos revelaram uma crise com centro no Japão, mas a grande esfinge da região é a China, ao liberar a economia enquanto endurece a política. As poucas pretensões de autonomia da América Latina foram canceladas pela desnacionalização e pelo endividamento acelerado. Neutralizado por querelas regionais, o Oriente Médio desistiu da liga panarábica. O continente africano, abandonado à própria sorte, é uma vitrine mundial de miséria e atrocidades. A esse fragmentado mosaico global parece só restar a lógica do mercado.

As lideranças populares que escreveram a história desse século não deixaram herdeiros. A Iugoslávia de Tito, o Egito de Nasser, a Argélia de Ben Bella, a Indonésia de Sukarno, a Argentina de Perón, a Guiné-Bissau de Amílcar Cabral desapareceram enquanto projetos de Nação, no mesmo período em que as principais bandeiras da luta democrática e popular, as do sindicalismo, do nacionalismo e do socialismo, foram neutralizadas pelo mesmo processo, que desequilibrou o embate entre capital e trabalho e as trocas no mercado global, que substituiu o trabalho repetitivo no campo, na indústria e nos serviços pela mecanização, pela automação e pela informatização.

A derrota do socialismo real não foi militar. Enfraquecido politicamente, por sua condução burocrática e pela falta de participação democrática, o socialismo europeu foi derrotado pela inércia da economia estatal centralizada, que o deixou à margem da terceira revolução industrial. A Alemanha Oriental entregou-se à Ocidental, a Rússia entregou-se à desordem política e econômica. O socialismo chinês tornou-se híbrido, liberalizando a produção em um capitalismo de Estado.

O sindicalismo reivindicatório está sendo derrotado mundialmente, não pela repressão ou por revezes políticos, mas também por fatores econômicos. Quando o desemprego tecnológico convive com a internacionalização dos mercados, preservar empregos é mais essencial que preservar direitos, e quando o consumidor e o produtor globais não estão no mesmo espaço físico e social, empresas podem crescer mesmo onde emprego e salário diminuem.

O nacionalismo empresarial, igualmente tragado pela globalização econômica, aceitou a desnacionalização sem resistências. Os atrasos tecnológicos nacionais são responsabilizados pelo não suprimento da demanda interna e pela perda de competitividade global, de forma que a proteção de mercado é vista como fator de inflação. Os sindicatos, que nunca preferiam a empresa nacional, hoje já se mobilizam para atrair multinacionais ou para manter produtivas suas linhas de produção. A maioria das empresas nacionais, aliás, em vários sentidos e há muito tempo, já não é mais nacional.

Enfim, a economia socialista centralizada, o sindicalismo reivindicatório e o nacionalismo empresarial foram enfraquecidos ou deslocados pelo aprofundamento da internacionalização das mercadorias, por uma nova dinâmica produtiva fundada em contínua geração de conhecimentos. Vista de uma perspectiva humanista, em que a economia deve estar a serviço da realização humana, uma produção mais eficaz deixaria mais tempo e recursos para cultura, arte, ciência, vida natural e convívio social. Como esse é o bom sentido de existência da espécie, ao qual o sistema econômico deveria servir, esse progresso em conhecimentos deveria estar aprimorando nossa vida, mas ainda não está. O sistema de produção e troca de bens e serviços continua promovendo uma inversão de meios e fins, que resulta em perdas nas dimensões da vida humana.

As lutas trabalhistas, sociais e nacionais têm sido, historicamente, instrumentos centrais do ideário humanista, combatendo a alienação da condição humana, propondo a transformação do sistema produtivo, do poder político das relações entre as nações. Os partidos de esquerda, aliás, foram fundados em função dessas lutas, expressando a necessidade de se conduzi-las para o plano político. Capital e trabalho nem sempre foram diretamente antagônicos nesse plano, tendo integrado juntos frentes nacionais, na defesa do mercado interno ou da proteção de reservas naturais, contra sua exploração internacional. Conjunturalmente, essas frentes fizeram sentido, mesmo constituindo um recuo, relativamente à vocação internacional das propostas socialistas.

Novas contradições

Agora que o capital confirmou seu caráter global, ao mesmo tempo que o drama da exclusão social e econômica deslocou para segundo plano o embate entre capital e trabalho, os partidos de esquerda, pelo menos aqueles ainda fiéis a seus pressupostos, vêem-se diante de um múltiplo impasse conceitual: o nacionalismo a ser defendido não é mais o mesmo; é duvidosa a eficácia das economias estatais centralizadas; as bases sociais organizadas, como as sindicais, estão se dispersando num recuo sem comando e os excluídos e marginalizados são dificilmente organizáveis. Sem uma melhor compreensão dos problemas e contradições da sociedade de economia globalizada, não será fácil superar esses impasses, para que se possa recuperar a força simbólica das lutas sociais e sua perspectiva transformadora.

A atual capacidade de produção mundial é tão grande, que fome não é carência de alimentos, mas falta de poder de compra dos incontáveis famintos. É uma perversa lógica da exclusão que, diante de inédita riqueza, aprofunda muitas formas de miséria. Em áreas rurais de economia mais primitiva como grandes regiões do continente africano, a miséria dizima populações inteiras, pela fome, endemias e epidemias. Nos centros urbanos em processo de desindustrialização, como nas metrópoles latino-americanas ou mesmo em países desenvolvidos, a miséria se manifesta no desemprego crônico, no colapso dos serviços, na desagregação cultural e moral.

Essa marginalização, tão internacional como a mercadoria, é resultado da redução do mundo a um grande mercado que, de acordo com interesses do capital, tanto pode envolver como descartar setores sociais ou nações inteiras, destruindo culturas e valores humanos estabelecidos ao longo de séculos. As guerras sectárias e étnicas, bárbaras recaídas de hostilidades históricas, são desesperadas afirmações de identidade cultural ou política. A brutalidade desses conflitos, entre tribos africanas ou grupos étnicos europeus, não é um fenômeno independente da violência globalmente exercida sobre estes povos.

Entre os legados mais difíceis da sociedade industrial estão a cultura do desperdício, a degradação natural, com desertificação de grandes áreas, redução na diversidade das espécies, envenenamento dos rios, dilapidação de recursos energéticos e de materiais não renováveis. A sociedade pós-industrial tem condições técnicas para minimizar o impacto sobre o meio ambiente, com métodos de produção menos intensos na demanda de energia, com crescente capacidade de reutilização de materiais, com novas formas de controle e conhecimento ambiental. No entanto, tanto quanto o alimento para a fome, esse conhecimento não chega às partes mais degradadas do planeta, que não podem comprá-lo.

Especialmente depois do fim da guerra fria, entre Leste e Oeste, ficou mais perceptível a tensão entre Norte e Sul ou, de forma mais geral, entre centro e periferia do sistema econômico global. Em torno dessa tensão podem se sintetizar as várias contradições em uma única contradição central: os centros do sistema refletem a degradação sócio-ambiental promovida nas suas periferias pelos fluxos desiguais, e vice-versa, aprofundando continuamente o desequilíbrio essencial do modelo de globalização e exclusão. Os fluxos de produtos, substâncias, pessoas ou informações que fazem funcionar o sistema não são separáveis dos fluxos que agravam suas contradições, seja o tráfico de drogas ou o de medicamentos, a migração ilegal ou as redes informáticas, a poluição ou as commodities, as telecomunicações ou o comércio de armas, os investimentos e a especulação financeira.

Setores participantes e marginalizados da vida econômica e cultural podem estar em países distantes ou ser vizinhos numa mesma cidade, o que não faz diferença para a contradição central. A demanda de cocaína e de seus derivados, por exemplo, está associada à crise de valores nos centros consumidores, assim como seu fornecimento é propiciado pela falta de alternativa competitiva da agricultura em países periféricos. O fluxo migratório ilegal, com a prostituição internacional e com outras formas de exploração do trabalho informal, decorre da tensão gerada pela disparidade de oportunidades e está associado à dissolução de valores humanos em ambos os lados das fronteiras. A violência urbana é uma questão insolúvel, mantido o abismo entre opulência e miséria.

A globalização, na sua configuração atual, aprofunda as disparidades e a exclusão, agravando as contradições atuais. Não se identificam hoje instrumentos para enfrentar e superar essas contradições e é preciso desenvolvê-los. Não se cogita resolver de uma vez todos os problemas, mas sim estabelecer um programa em que políticas nacionais e políticas por uma nova ordem mundial se complementem, de tal forma que vislumbrar e construir um futuro seja uma possibilidade para todos os povos. Esse é o desafio de nossos tempos.

Novos instrumentos e bandeiras

Tendo compreendido como as lutas sociais foram atingidas pela mudança na relação entre o trabalho e o capital que, mais do que a exploração, promove hoje exclusão social e econômica, e tendo identificado como contradição central da sociedade atual o sentido destrutivo dos fluxos materiais e humanos desiguais entre centro e periferia, é preciso rever os instrumentos e as bandeiras da luta social humanista. Os sindicatos e outras organizações não-governamentais, os partidos, as demais organizações políticas e a própria proposta de Estado, com suas organizações governamentais, precisam ser revistos, juntamente com as bandeiras sociais.

O sindicato está se modificando, sobretudo porque alguns dos fundamentos da luta sindical foram comprometidos pelas novas relações de produção. As lutas puramente corporativas, de cada categoria em detrimento das demais, já estão dando lugar a negociações sociais mais amplas, envolvendo metas produtivas, formação profissional, além de condições de trabalho e remuneração. As centrais sindicais articulam ações políticas para promover o direito ao trabalho e o sentido social da produção. As fronteiras internacionais, mais permissivas para mercadorias do que para o trabalho, já exigem uma articulação mundial entre as centrais mais efetiva que a atual, o que pode demandar a parceria dos Estados nacionais, até mesmo de blocos nacionais, quando se tratar de mercados regionais. Por outro lado, os sindicatos poderão, já num futuro próximo, instruir seus filiados para ações de controle e fiscalização de interesse social geral, como o monitoramento ambiental e sanitário dos métodos de produção de cada empresa. O novo sindicato, nessa medida, já está lidando diretamente com as contradições globais, dos fluxos de trabalho, de mercadorias e de efluentes nocivos, contudo, mas ainda sem condições para enfrentar a adversidade maior, o desemprego crescente.

Os sindicatos encontrarão o rumo para sua nova vocação, da mesma forma com que outros movimentos sociais estão se reestruturando, na luta pelo direito ao trabalho e pelo respeito ao sentido social da propriedade. De caráter político e econômico, ético e cultural, o novo movimento social demanda condições de vida e de trabalho, assim como denuncia a violação de valores humanos. Nosso movimento dos sem terra é talvez o mais importante do mundo, em seu gênero. A força desse movimento e seu valor simbólico maior é, reafirmando o sentido social da propriedade, recuperar a cidadania dos socialmente excluídos, revertendo a migração rural, resgatar vítimas da marginalização urbana. Nessa medida, lidam diretamente com a contradição fundamental da miséria promovida pela riqueza.

Nas grandes cidades, a marginalização crônica e a concentração promíscua, sem condições de vida comunitária, tornam mais difícil a organização política. A necessidade de participação, de valores humanos e de identificação grupal tem sido habilmente explorada por seitas religiosas, que hoje concentram grande poder econômico e político. As cidades têm feudos de proteção dos economicamente incluídos, como centros de compras e condomínios fechados, edifícios funcionais controlados e espaços de lazer vigiados, assim, como têm feudos miseráveis, como favelas, onde o poder local é também exercido por traficantes e pelo crime organizado em geral, lideranças efêmeras, sem o apelo da esperança. Faltam instrumentos para ações políticas mais justificativas no sentido de recuperar a cidadania e as condições sócio-ambientais dos espaços urbanos. Algumas organizações não-governamentais têm procurado desenvolver alternativas de ação social, mas precisariam crescer muito em capacidade de intervenção para enfrentar a gravidade dos problemas das cidades, onde se concentram nas mais dolorosas condições humanas, como a dependência de drogas, sustentada pelo crime e pela prostituição juvenil de viciados.

O Estado-Nação e seus instrumentos têm sido ineficazes e omissos diante dessa desordem da sociedade, especialmente entre nações de economia dependente, como o Brasil, Estados que têm sido cônsules da ordem econômica internacional, abdicando da organização nacional e afastando-se da promoção do interesse social. Muitos Estados nacionais, à procura de uma nova identidade, produzem situações singulares, como a da China, já mencionada, ou a de Estados islâmicos militarizados, longe de constituírem paradigmas para os demais. As economias nacionais já não podem proteger seus mercados, mantendo sua produção de bens a custos não competitivos. Mais que isso, têm sido também abandonadas dimensões culturais e históricas que fundam a nação, deixando-as à mercê do mercado global, sacrificando os valores humanos de sua cultura. Mais do que o fim do Estado, isso está decretando o fim das nações.

Tanto quanto enfrentar as contradições globais, interpretar os movimentos sociais emergentes e conceber de novo Estado e Nação são desafios para o pensamento político, para os partidos políticos que ainda existirem no século XXI, ou para as organizações políticas que os substituirão. Os partidos de esquerda, cujo ideário foi elaborado no século XIX com o movimento social da sociedade industrial, precisam compreender as novas contradições e preparar-se para enfrentar os novos problemas. Mesmo organizações recentes, como o Partido dos Trabalhadores, hoje um dos mais significativos do mundo contemporâneo, ao lado de partidos históricos, como os da esquerda européia, precisam atualizar seu ideário e seu programa para fazer face às novas tarefas.

Há questões imediatas, que podem ser encaminhadas desde já. Pelo menos até que se estabeleçam novas condições e se concebam novos modelos, esses partidos precisam desenvolver competências que, não por acaso, foram deixadas de lado no século XX: como sua base natural eram sobretudo os assalariados urbanos, os partidos de esquerda se distanciaram dos marginalizados, dos não-organizados, clientela usual do populismo; como seu propósito original era superar o modo de produção capitalista, esses partidos não se prepararam para governar sob um regime que nega seus pressupostos. A despeito de boas experiências de gestão local, falta-lhes ainda projeto claro para gerir o Estado, numa economia de mercado, a serviço dos interesses populares. Da mesma forma, faltam-lhes experiência e instrumentos para mobilizar os excluídos. Estas deficiências talvez possam ser superadas a curto prazo, sem descuidar da perspectiva transformadora, razão de ser desses partidos.

Os desafios maiores, contudo, estão nas questões de fundo do partido: sua relação com os movimentos sociais; sua concepção do Estado-Nação; sua visão de utopia social. Em tempos normais, o movimento social acha seu próprio rumo e o partido faz sua articulação política; a visão de utopia já está no programa partidário e a concepção de Estado se expressa nos programas de governo. O momento, contudo, é excepcional, com sindicatos à deriva, movimentos sociais com perfil de partido, levantes espontâneos de hordas urbanas. Mais do que um programa de governo, é hora de conceber um modelo de Estado e um projeto de Nação, lastreados na história e na cultura do povo e em valores humanos universais. Quanto às contradições do binômio globalização-exclusão, a alternativa não pode ser o isolamento, mas uma ação solidária com metas e utopias partilhadas entre organizações fraternas de todo o mundo, algo como o que a Internacional Socialista pretendeu ser num passado já distante. É só uma hipótese, contudo, que os partidos de esquerda tenham em comum, mais do que qualquer consenso sobre o papel do mercado ou do caráter do Estado, a compreensão de que há uma crise de paradigmas e da necessidade de rever seu ideário.

O PT tem um congresso ainda este ano. Haverá espaço em seu temário para tratar dessas questões?

Luís Carlos de Menezes é professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo