Política

Nos primeiros meses de gestão, o governo do Rio Grande do Sul enfrentou um cerrado bombardeio e mesmo assim realiza uma boa administração. Tomou decisões de repercussão nacional, como a de renegociar os contratos com a Ford e a GM e questionar na Justiça o contrato da dívida estadual com a União. Além disso, aumentou por exemplo em 100% o gasto com educação e 90% com saúde.

Olívio Dutra, governador do estado do Rio Grande do Sul, não é, como se disse, um marxista-cristão. Isso inverte a ordem das coisas. É "um cristão-marxista", que ele próprio define como uma pessoa de "formação humanista e religiosa, que tem a solidariedade como um valor consistente, que acredita que a história é feita pelos homens, pelas pessoas, se assumindo, cidadãs". E que acha que "o marxismo é o método insuperável para se avaliar a história". Foi o único governador da oposição na "Marcha dos 100 Mil". E foi a Brasília porque, como diz, "faz parte desse movimento", o movimento pela mudança desse nosso país secularmente injusto.

Olívio é de Bossoroca, na região dos Sete Povos das Missões, noroeste gaúcho. Nessa área, e em territórios vizinhos do Uruguai, Paraguai e Argentina, entre 1600 e 1750 desenvolveu-se a extraordinária experiência da República Comunista Cristã dos Guarani, aldeamentos que chegaram a abrigar 150 mil índios, em comunidades de trabalho planejadas e dirigidas por jesuítas. Das Missões é também a Coluna Prestes, que saiu de Santo Ângelo, considerada a capital missioneira em 1924. Um monumento em forma de seta apontando para os céus, de Oscar Niemeyer, marca a saída da cidade para São Borja. São Borja, por sua vez, é o primeiro dos núcleos dos 7 povos, cidade de Getúlio Vargas, chefe da Revolução de 1930.

Olívio já tem muitos fios de cabelos brancos na cabeleira e no bigodão que à distância parecem tingidos, de tão pretos, retintos. O cabelo, a pele escura, revelam o crioulo, descendente de negros, índios e portugueses, cuja família foi agregada num fundo de campo de um grande proprietário de terras. Em São Luís Gonzaga, outro núcleo das Missões, Olívio viveu até 1970, casou-se com Judite, conviveu com os padres progressistas que lhe ensinaram o inglês fluente que ele tem hoje e de alguma forma despertaram nele o gosto pela justiça social, que o levou a ser militante do movimento dos bancários – sua profissão desde 1961 – e um dos fundadores do PT e que se pode ver até no nome de um de seus dois filhos, Espártaco, o escravo rebelde do império romano.

Não é gratuitamente, portanto, que a numerosa e aguerrida militância do movimento democrático-popular do Rio Grande do Sul, até hoje, quando o vê chegar às manifestações públicas, repete o grito de guerra da campanha que deu a vitória ao campo de forças formado pelo PT, PDT, PSB e PCdoB na que talvez tenha sido a maior batalha eleitoral do país do ano passado: "Oliviô/ cadê você/ eu vim aqui só-pra-te-veeer".

Ao contrário de alguns de seus conterrâneos famosos como Getúlio Vargas, por exemplo, Olívio não é um caudilho que ouve, rumina e decide. Olívio ouve, pondera, argumenta para tomar as decisões que o sistema político atual atribui exclusivamente ao governador. Tem um conselho político formado por dirigentes do PT que também são parte da administração1, de alguma forma representam as correntes do partido e se reúnem no seu gabinete todas as manhãs das segundas-feiras, para analisar o quadro político e as principais deliberações do governo. O governo tem também um conselho mais amplo, que inclui os secretários de estado e representantes dos partidos que compõem a administração e que vêm se reunindo uma vez por mês, no Galpão Criolo, uma construção rústica mais recente nos fundos do Piratini, palácio projetado por franceses no início desse século, que fica no alto de um dos morros à beira do Guaíba e é a sede do governo.

Pode-se dizer que o governo gaúcho teve quatro decisões de repercussão nacional nesses seus primeiros oito meses de governo: 1) a de renegociar os contratos com as duas grandes montadoras de automóveis, Ford e General Motors; 2) a de entrar na Justiça Federal contra o contrato da dívida com a União feito pelo ex-governador Antônio Britto e pagar em juízo as suas parcelas; 3) a de comparecer ao encontro dos governadores com o presidente da República, em fevereiro na Granja do Torto, reunião forçada pela decretação de moratória do governador de Minas Gerais, Itamar Franco; 4) e a de Olívio comparecer à "Marcha dos 100 Mil" em Brasília. Elas ajudam a responder à seguinte pergunta: esse governo, comandado por militantes históricos do movimento democrático e popular brasileiro – como Olívio, Miguel Rossetto, vice-governador, líder da CUT, Flávio Koutzii, chefe da Casa Civil, ex-guerrilheiro, para citar apenas os três que são uma espécie de núcleo central da administração –, poderá servir "de modelo a toda Terra", como diz o estribilho do hino do estado, da época da Revolução Farroupilha, precursora da República no país?

As quatro decisões mostram um governo: preocupado, às vezes até demais, com a opinião pública e com a atual correlação de forças; mas disposto a avançar, com cautela, "sem pataquadas" como eles dizem, na construção de um novo modelo de desenvolvimento para o Rio Grande e o país. A decisão de maior repercussão foi a de renegociar os subsídios extraordinários que haviam sido prometidos às montadoras – algo na casa de 6 bilhões de reais, por cálculos conservadores, se contado todo o prazo de vigência dos contratos.

Em primeiro lugar, é necessário precisar os seus termos. Os contratos eram considerados conquistas históricas pela grande burguesia gaúcha. O senador Pedro Simon, um moderado nesse campo, no dia da assinatura do compromisso com a GM comparou o acontecimento à Revolução de 30. Mesmo no campo democrático-popular havia interesse pelas montadoras. O governo anterior ao de Britto, de Alceu Collares, do PDT, também tinha se empenhado, se bem que em outros termos, para atrair essas fábricas para o estado – com apoio parcial até do PT. As duas empresas receberam promessas de dois tipos de incentivos, basicamente: 1) empréstimo para capital de giro – com desembolso imediato, retorno a perder de vista, juros de pai para filho e sem correção monetária – e apoio na forma de dezenas de obras e serviços, a serem feitos gratuitamente; 2) isenções fiscais e empréstimos de impostos a serem gerados durante a operação – também para serem pagos em condições escandalosas. Em resumo, o estado gastaria um bilhão em desembolsos para a ajuda imediata e 5 bilhões em isenções e empréstimos a serem gerados futuramente.

Quando Olívio assumiu, a GM tinha a fábrica praticamente pronta. Recebera quase todos os incentivos imediatos, inclusive o famoso cheque para capital de giro de 253 milhões de reais entregue secretamente à companhia a 20 de março de 1997, três dias após o acordo, e cuja revelação teve um papel importante na eleição de Olívio2. O governo devia, digamos assim, à GM, da ajuda imediata, apenas algumas obras de infra-estrutura. Todos os incentivos prometidos para o futuro eram também devidos, obviamente. No caso da Ford, a situação era completamente outra. A Ford quis tanto quanto a GM em capital de giro. Mas a denúncia do cheque da GM tinha criado um escândalo nacional. Assim, Britto impôs à Ford algumas condições: daria menos – quase a mesma quantidade de dinheiro, apenas 226,6 milhões de reais; mas, proporcionalmente, bem menos, porque a fábrica prevista era maior. E não à vista, mas em parcelas. Como a situação financeira do governo Britto, ao seu final, já não era tão boa, além de ter adiantado apenas 42 milhões para a montadora, ele também atrasou as obras que deveria fazer. Realizara basicamente a terraplanagem e uma cerca no terreno. E a montadora apenas começara o escritório para supervisionar a construção da fábrica.

Deve-se lembrar ainda que o governo Olívio não agiu contra as montadoras apenas por princípios, mas por necessidade. As condições financeiras do estado que assumiu eram precárias. O déficit previsto para 1999 era de 1,4 bilhão de reais, para uma arrecadação líquida de perto de 5 bilhões de reais. Britto desmembrou a companhia de eletricidade em três partes e vendeu duas; vendeu a companhia telefônica, a Caixa Econômica Estadual, o Porto do Rio Grande; privatizou as melhores estradas. Conseguiu com isso uns 2 bilhões de reais à vista. Praticamente não fez nenhuma grande obra. Mesmo assim, em função da política de juros extraordinariamente altos do governo central, a dívida do estado disparou de 4 bilhões de reais, em 1994, para 13 bilhões de reais ao final de 1998. Britto deixou como herança também um acordo da dívida do estado com o governo federal que comprometia de 12 a 13% da receita líquida – 17% se o governo estadual não privatizasse o Banrisul. E com cláusulas dos tempos coloniais, lembrou no Congresso a deputada Maria da Conceição Tavares: a União teria, ao contrário da norma jurídica vigente, o direito de se auto-pagar. O contrato autoriza os bancos que arrecadam os impostos a atuarem como agentes arrecadadores do Tesouro, para avançarem sobre as receitas próprias dos estados, como o ICMS, e as transferirem para o governo federal, no caso de inadimplência.

Em conseqüência, nos primeiros oito meses de governo, as retenções de ICMS estadual feitas pela União eqüivaleram a quase meio bilhão de reais, 100% mais que o governo Britto pagava pela dívida. Olívio, portanto, só poderia conceder os incentivos diretos iniciais que a GM e, especialmente, a Ford queriam, se cortasse violentamente despesas em outras áreas. E isso com um orçamento no qual a imensa maioria das despesas eram incomprimíveis para quem não quer cortar salários – 83% da arrecadação líquida vai para a folha de pagamentos. Um exemplo da dificuldade de cortar gastos com salários: os professores, dirigidos pelo Cpers, a maior e uma das mais combativas associações do gênero na América Latina, tinham como bandeira da campanha salarial deste ano um aumento dos dois pisos da categoria, dos atuais 120-130 reais para 350-370 reais. A administração sabia, aliás, mais que ninguém, que essas, reivindicações eram históricas (a secretária de Educação do governo Olívio é Lúcia Camini, que até o ano passado era presidente da entidade).

As discussões com as montadoras se deram, portanto, sob intensa pressão dos militantes da frente ligados aos movimentos de funcionários, cujos salários estão comprimidos há anos. Mesmo que isso seja uma grande simplificação, eles acham que o aumento de seus salários poderia vir de um corte nos imensos incentivos dados aos grandes grupos capitalistas no estado. Os benefícios das duas montadoras eram os maiores. Mas os menores, que beneficiam cerca de 1100 empresas, somam 5 bilhões de dólares e muitos não são pequenos. Um exemplo: duas produtoras de cigarros – a Souza Cruz e a Philip Morris – receberam, em 1998, 43,5 milhões de reais e 19,3 milhões de reais, respectivamente. O grupo Gerdau, dirigido por Jorge Gerdau Johannpeter, o grande empresário do Sul do país, levou no ano passado12,5 milhões de reais. (Para comparação: um aumento de 100 reais para cada um dos 83 mil professores e funcionários do magistério do Rio Grande do Sul significa menos de 100 milhões de reais no ano).

Na campanha, a frente que elegeu Olívio tinha evitado afirmar que reveria ou denunciaria os contratos com as montadoras. Olívio dizia simplesmente que se eleito cumpriria todos os contratos que fossem legais e justos, abrindo, para um bom entendedor, a possibilidade de denunciá-los por um dos dois motivos. E agiu também de modo conservador quando resolveu abrir fogo contra eles. Em nenhum momento, por exemplo, ameaçou negar os incentivos baseados em impostos a serem gerados nos projetos – que representam o maior volume de perda de arrecadação prevista. Foi como se tivesse dito assim: vamos rediscutir todos os incentivos imediatos prometidos e que ainda não foram concedidos – cerca de 600 milhões de reais. Não porque eu não queira as duas fábricas por algum motivo ideológico. Mas porque não tenho dinheiro. E prometo manter todos os benefícios futuros, cerca de 5 bilhões de reais.

A imprensa conservadora denunciou como um escândalo mesmo essa modesta proposta de revisão dos acordos. Em meados de abril, o jornalista e cineasta Jorge Furtado resumiu assim a campanha: "Há uma guerra na Europa, duas CPIs no Senado, banqueiros e juízes apanhados saqueando cofres públicos e a Zero Hora, nos primeiros quinze dias de abril deu dez manchetes de capa sobre o assunto, todas com o mesmo sentido: enfraquecer o governo do Rio Grande do Sul na queda de braço com a Ford pela instalação da fábrica no estado". No dia 16 de abril a manchete do principal jornal gaúcho era: "69,3% apóiam cumprimento de contratos com a GM e a Ford". Poucos dias depois, a revista Veja, na sua entrevista de abertura da edição, perguntava a Olívio: "70% dos gaúchos querem que o governo cumpra os contratos com as montadoras. O senhor não acha que deve ouvir o que a sociedade está dizendo?" A pesquisa era uma evidente manipulação. Os entrevistados eram principalmente das cidades da região metropolitana de Porto Alegre onde se instalariam as duas fábricas. Nenhuma pergunta foi feita para esclarecer o que o governo teria de cortar de seu orçamento para beneficiar as duas gigantes automobilísticas. A entrevista de Veja era também vergonhosa. Terminava com uma pergunta enviesada sobre o comportamento de Olívio no seminário de padres onde estudou, que Furtado resumiu como refletindo o "Padrão-Ratinho de Ética" no jornalismo assumido pela revista.

Os subsídios eram justificados pela necessidade de gerar empregos e implantar uma indústria avançada, que dispararia novos empreendimentos. Material de propaganda da Fiergs, veiculado amplamente pelos jornais e rádios, dizia que o projeto da GM geraria, entre empregos diretos e indiretos, mais 100 mil ocupações. O argumento não resiste à menor análise objetiva. Quando Flávio Koutzii conseguiu, via mandado judicial, a revelação do teor do contrato com a GM, já se tinha visto que a empresa só se comprometia a gerar 1.300 empregos diretos. O Dieese tinha mostrado que a indústria automobilística está nos últimos lugares da lista de setores criadores de emprego. Desde o começo dos anos 90, quando se ampliaram as facilidades para a indústria automobilística no Brasil, para cá se despejaram uma dezena de montadoras novas e a produção e a capacidade instalada para fabricação de carros no país duplicou. Mas não houve crescimento econômico: ao contrário, o PIB despencou de cerca de 5% em 1994 para 1,5% no ano passado e para a recessão prevista deste ano. E nem se gerou emprego – ao contrário, a taxa de desemprego disparou de 3,4% em 1994, para 7,25% no ano passado e possivelmente 7,84% este ano, segundo as previsões ainda otimistas.

Foi a gigantesca manipulação da opinião pública, combinada com dúvidas que ainda persistem no governo quanto ao rumo que se pode imprimir ao desenvolvimento industrial do Rio Grande do Sul e do país, que levou o governo Olívio a procurar, no limite de suas possibilidades, um acordo com as montadoras. Com a GM o entendimento acabou saindo, depois de quatro meses de discussões. A montadora resolveu adiantar o que o governo precisava para fazer as obras de infra-estrutura. Antecipou pagamentos dos 253 milhões que tinha recebido e que, pelo contrato inicial, só precisaria pagar a partir de 2002 – o que, para o governo, é uma economia de 103 milhões de reais. No dia 7 de maio foi assinado um novo contrato e a empresa entregou ao governo um primeiro cheque de 13,05 milhões de reais.

No caso da Ford, a situação era muito diferente como já se viu. Somados o empréstimo para capital de giro e as obras e serviços a serem feitos imediatamente, o estado teria de desembolsar ainda perto de meio bilhão de reais. O governo fez as contas do máximo que poderia conceder e chegou a 140 milhões de reais, menos de um terço, mas que, nas condições das finanças do estado, eram uma concessão extraordinária. Olívio, Rossetto e Koutzii procuraram diretamente grandes empresários, propondo-lhes que intermediassem um acordo. Olívio ligou para o presidente da Ford que não o atendeu. E o acordo acabou sendo rompido pela companhia, em função de intervenção do governo federal e de uma decisão do Congresso reabrindo incentivos especiais para que ela fosse para a Bahia.

A conclusão básica que orienta o governo Olívio é essa: a conjuntura política atual é ainda muito difícil para as classes e camadas populares que o governo representa. "O modelo neoliberal globalizante está em crise nos países de origem mas aqui, como as coisas chegam com certo atraso, a maré neoliberal ainda está em montante", disse Olívio em entrevista à revista Reportagem3. "Não se muda essa situação a curto prazo, com pataquadas. É preciso articular governadores e prefeitos com os partidos. Por sua vez, os partidos têm de ter grande ligação com os movimentos sociais. Os movimentos sociais, que têm demandas represadas, também têm de levar em conta projetos como o nosso. A administração, os partidos de oposição e os movimentos sociais, que não podem ser confundidos, devem se entrelaçar e reforçar suas lutas específicas. Só dessa forma é possível, nas condições atuais, tanto administrar quando travar o embate contra o projeto que está em vigor no país, com sua ampla articulação internacional", disse ele.

A partir dessa avaliação, as metas perseguidas pelo governo são bem modestas, nesta fase: visam o que Rossetto e Koutzii chamam de um "republicanismo radicalizado": "É como se nós disséssemos aos capitalistas. Muito bem: vocês venceram. Mas sejam capitalistas combativos que nós vamos assumir a missão republicana", diz Rossetto. A prudência é uma regra: 1) O Rio Grande do Sul não decretou a moratória da dívida com a União, embora também a considere impagável, como o governador de Minas, Itamar Franco, que suspendeu os pagamentos. Adotou uma via de contestação institucional, que poderia ter mais apoio das camadas intermediárias da opinião pública: questionou o acordo na Justiça e passou a pagar as prestações em juízo; de início com dinheiro e, depois, em títulos de dívidas da União para com o Rio Grande. 2) Olívio compareceu à reunião dos governadores com o presidente na Granja do Torto, quando Fernando Henrique Cardoso estava em manobra evidente para isolar Itamar Franco, em função da decretação da moratória, e quando a própria direção do PT recomendava que os governadores não fossem ao encontro. A reunião do Conselho Político do governo que decidiu pelo comparecimento, disse um dos presentes, tinha consciência de que o encontro era uma armadilha, mas resolveu explorar ao máximo os limites da negociação, para não transmitir para a opinião pública a impressão de intransigência.

O problema dessa tática de evitar riscos é que, com isso, certas oportunidades são desperdiçadas. No caso da reunião do Torto, a prudência pode ter poupado o governo gaúcho de dificuldades institucionais mas é certo que Fernando Henrique Cardoso ganhou pontos ao isolar Itamar e romper o eixo que estava se formando entre Minas e São Paulo. Com isso, as forças conservadoras, que haviam começado o ano em crise profunda, pelo fato de terem sido forçadas pelo capital internacional a desvalorizar descontroladamente o real, ganharam alguns meses de fôlego e recompuseram suas fileiras provisoriamente.

Olívio foi a Brasília para a "Marcha dos 100 mil", no entanto, já num contexto novo. A intensa oposição que enfrentou em função do cancelamento do projeto da Ford tinha amainado, mesmo entre grandes empresários. Governadores como Mário Covas, de São Paulo, protestaram contra os incentivos dados para que a Ford fosse para a Bahia. Cresceu a insatisfação com o governo junto a opinião pública e, dentro do PT, cresceu a corrente favorável ao afastamento do presidente da República por meio da mobilização popular e de um processo de impeachment com base nos atos inconstitucionais que ele praticou no processo de privatização da Telebrás. No comando do governo gaúcho houve quem defendesse que Olívio não fosse à Marcha. Nos jornais, na véspera, a informação oficiosa era de que ele não iria por "problemas na agenda", a mesma desculpa dada pelo governador do Rio, Anthony Garotinho. Mas desta vez Olívio correu o risco e foi. Nem Itamar Franco, nem os outros governadores oposicionistas compareceram.O PT gaúcho tem crescido espetacularmente como um partido capaz de governar, a partir da sua vitoriosa experiência na administração de Porto Alegre. Desde que foram restabelecidas as eleições para as prefeituras das capitais, o PT só perdeu a primeira em Porto Alegre. Em 1988, Olívio venceu, com 38% dos votos. Em 1992, ganhou Tarso Genro, com 49%. Na última eleição, em 1996, ganhou Raul Pont, com 54% dos votos. Paralelamente, o PT foi se expandindo pelo interior do estado. O Orçamento Participativo criado na experiência da capital está sendo ampliado agora. Cento e noventa mil pessoas participaram das 622 assembléias, realizadas em todos os 467 municípios. Nos primeiros oito meses à frente do governo, a Frente encabeçada pelo PT superou o cerrado bombardeio da oposição com o caso Ford e ainda realizou uma administração boa nas circunstâncias. Fez aprovar na Assembléia Legislativa uma lei de seguro agrícola – reivindicação muito antiga do setor rural. Elevou em quase vinte por cento as matrículas no ensino secundário, com a contratação de cerca de 3.500 professores e funcionários. Abriu um programa de emergência pelo primeiro emprego, visando atenuar o programa da desocupação entre os jovens. Estabeleceu uma ampla discussão pela mudança da tradicional política de segurança pública, voltada para a criminalização dos pobres e marginalização dos movimentos sociais, entre várias outras iniciativas.

Não há dúvida, no entanto, que Porto Alegre não é o Rio Grande do Sul e que governar o estado não vai ser uma expansão natural da experiência na prefeitura. Quando Olívio assumiu em 1989, a prefeitura gastava 98% da sua receita com pessoal, apenas 3% com investimentos e tinha um déficit grande. No ano passado, o orçamento de Porto Alegre foi superavitário, o gasto com pessoal já estava em apenas 65% da receita e sobraram 15% para investimentos. No estado, no entanto, a situação é dramática. Um déficit permanente de cerca de 30% do orçamento vinha sendo coberto por Britto com as privatizações. O governo Olívio conseguiria manter o mesmo esquema por algum tempo se vendesse o patrimônio público que restou ao estado: o Banrisul, o 14º maior banco do país; o que resta da Companhia Estadual de Energia Elétrica; a Corsan, companhia de saneamento; a Procergs, empresa de informática estatal. Ou se aceitasse a ajuda que o governo e as instituições de crédito internacionais oferecem para demitir funcionários. Só que vai noutra direção, é claro: não privatiza, nem demite.

A situação se complica porque a economia está em recessão. Em conseqüência, nos primeiros meses de governo, o estado teve de praticar uma economia de guerra: foi forçado a fazer o que Arno Augustin, o secretário da Fazenda, considera o pior tipo de economia possível, cortou os investimentos pela raiz (92%). E cortou fundo também nas despesas de custeio (27%). É preciso destacar, no entanto, que os cortes se referem a uma comparação dos gastos de 1999, o primeiro de Olívio, com os de 1998, ano eleitoral, o último do governo Britto em campanha para se reeleger. Quando comparados com o primeiro ano de Britto, os gastos dos primeiros cinco meses de Olívio, apesar de magros, são positivos. Além disso, há uma melhoria na qualidade do gasto. Olívio gastou 100% mais com educação, 90% mais com saúde, 25% mais com agricultura e 50% mais com transporte.

Na parte da receita, o novo governo também deu alguns passos, eliminando situações absurdas. Um exemplo: as TVs a cabo só pagavam 5% de ICMS, quando os produtos da cesta básica pagam 7% e uma conta de luz inclui 25% de imposto. Por decreto, o governo passou a alíquota para 12%. Apenas por fiscalizar os contratos de incentivos fiscais, o governo conseguiu também que empresas como a Brahma e a Philip Morris pagassem mais de 10 milhões de reais extra de impostos.

Para levar a economia do Rio Grande numa direção oposta à que Britto propunha, um empenho particular do governo é no sentido de ajudar os pequenos e médios produtores do campo onde uns poucos milhões de reais – migalhas perto dos bilhões de incentivos ao grande capital – fazem enorme diferença. Com 3 milhões de reais, o governo está financiando um projeto piloto para mil famílias de produtores de leite da Cotrimaio, que poderá ser estendido a todo o estado. A cooperativa congrega 6500 agricultores de municípios próximos de Três de Maio. As terras dos sócios na maioria são mínimas, até 20 hectares estão 76% das propriedades, até 10 hectares, quase a metade – 43%. A cooperativa é a terceira ou quarta do estado, tem 376 funcionários, fatura 80 milhões de reais por ano. O presidente da cooperativa, Antônio Wunch, foi um dos que acompanhou o secretário da Agricultura José Hermeto Hoffmann na sua viagem à Europa, nas negociações para ver se obtêm um preço maior para fornecer apenas soja não transgênica aos europeus (A tese de "transformar o Rio Grande do Sul num território livre de transgênicos", formulada desse modo amplo, que permite supor até que se é contra a insulina transgênica, é um desvio ideológico do governo missioneiro gaúcho).

O plano da Cotrimaio apoiado por Olívio empresta até 700 reais a cada pequeno produtor de leite. Financia um modestíssimo investimento em infra-estrutura das pequenas propriedades para elevar a produção. O produtor, cuja renda familiar média fica na casa dos 500 reais, compra da cooperativa arames para fazer piquetes eletrificados e realizar o rodízio das vacas no pasto. Compra adubos, calcáreo e grama de qualidade, para substituir a grama comum, de baixo teor nutritivo. Mesmo que tenha apenas quatro ou cinco vacas sem pedigree um produtor consegue aumentar sua produção de 15-20 litros de leite por dia para 24-30 litros, um ganho de 40-50 reais no mês e que ele realiza mensalmente, o que melhora muito suas finanças.

Com as montadoras à frente, Britto imaginava realizar uma mudança estrutural no Rio Grande do Sul, cuja economia tem uma história peculiar – ela se formou mais integrada ao mercado nacional, de início, e com mais vínculos entre suas partes, no período da industrialização. Essa economia, em boa parte ligada aos agronegócios, entrou em crise nos anos 80, e particularmente nos anos 90, em boa parte pela perda de suas fontes de financiamento. Os créditos para custeio das safras estão em torno dos mesmos 5 bilhões de dólares do início dos anos 70, depois de já terem sido de 20 bilhões de dólares no final daquele período. Os créditos para investimento estão abaixo do 1 bilhão de dólares do início dos anos 70 e são cinco vezes menores que os valores do final daquela década. Os créditos para comercialização das safras são hoje um terço do que eram em 1969 e dez vezes menores do que eram entre 1975 e 1980. A venda de tratores e colhetadeiras no mercado interno brasileiro caiu de uma média em torno de 40 mil unidades por ano na década de 70, para 30 mil nos anos 80 e 20 mil máquinas nos anos 90, aproximadamente.

Olhando o governo Britto numa perspectiva mais ampla, ele não definia um rumo novo para a economia gaúcha, mas um rumo velho, o mesmo que o Brasil passou a adotar desde que o ciclo Vargas se encerrou, e os militares impuseram novo padrão de desenvolvimento ao país, baseado nos capitais e na tecnologia externos. Desde então, o país elegeu como carro-chefe de seu desenvolvimento a indústria de bens de consumo duráveis e, dentro dela, a indústria automobilística estrangeira. Entre 1968 e 1973, a produção de automóveis no Brasil se elevou de menos de 200 mil carros por ano para 1 milhão de unidades. Por 20 anos, a seguir, essa produção ficou estagnada. O "milagre econômico" do governo Fernando Henrique foi ter elevado a produção de automóveis de 1 milhão para 2 milhões de carros por ano, sem ter feito o mesmo que os militares em termos de estradas, viadutos e pontes para que eles trafegassem.

No fundo, a idéia de promover o desenvolvimento de um país ou de uma região pobre apoiando-se na produção de carros imagina copiar um modelo muito mais antigo ainda, o do desenvolvimento da economia americana. Ocorre no entanto que a indústria de automóveis americana formou-se antes da consolidação dos monopólios. Havia mais de 200 fábricas de automóveis espalhadas pelos EUA em meados do século passado, quando a industrialização se acelerou. O desenvolvimento do país ocorreu então de modo mais ou menos amplo e espraiado, articulando-se o desenvolvimento da indústria nova de automóveis com o desenvolvimento da agricultura, e em particular com a indústria de bens de capital para o setor agrícola e para o de bens de consumo. Quando a indústria automobilística estrangeira se instalou no Brasil, no entanto, ela já era um oligopólio, um punhado de empresas com enorme poder econômico e político que passou a promover um desenvolvimento deformado, concentrador de população, de recursos, de renda e a um custo excepcional. O primeiro grande ciclo da indústria automobilística estrangeira no Brasil, promovido pelos militares, foi um dos grandes responsáveis por um endividamento externo que passou da casa dos 100 bilhões de dólares e levou o país à falência em 1982. No entanto, gerou muito emprego, salários e promoveu um crescimento médio do PIB de 7% entre 1964 e 1984, quando o general Figueiredo saiu e começou a Nova República. O segundo ciclo, de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, produziu também uma expansão da produção de carros mas não gerou nem emprego e nem crescimento econômico. A razão é que os investimentos foram, no fundo, extraídos das receitas estatais. Com isso, o Estado perdeu sua capacidade de investimento, a infra-estrutura do país não se desenvolveu, o salário médio urbano não cresceu e a renda dos pequenos produtores rurais que dependem do mercado interno despencou.Essa é a grande dificuldade que o governo Olívio encontra: o Estado está enfraquecido para promover uma intervenção que reanime o crescimento econômico. Não é verdade que a ação dos estados tenha diminuído de importância. Uma tabela com o gasto governamental e a receita como parte do PIB de 10 países – Austrália, Grã-Bretanha, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Espanha, Suécia e Estados Unidos – mostra que ambos cresceram, tanto de 1960 para 1980, como nos anos 90, proclamados como a época do "Estado mínimo". Dados da Economist, a principal revista semanal de informações do grande capital internacional, mostram que os subsídios agrícolas em 1998, após uma década de denúncia dos subsídios nos países pobres pelos países ricos, foi de 142,2 bilhões de dólares na União Européia, de 97,3 bilhões de dólares nos Estados Unidos, de 56,8 bilhões de dólares no Japão. Não é verdade também que esteja havendo um enorme incremento de produtividade na indústria dos países capitalistas desenvolvidos em função das revolução tecnológica em andamento. A mais badalada das economias capitalistas, a americana, teve a produtividade média do seu setor de manufaturas reduzida de uma taxa anual de crescimento de 2,63% nos anos de 1952 a 1972, para 1,13% de 1972 a 1995. De 1995 a 1998 houve uma aparente melhoria: a produtividade passou a crescer quase como crescia há 25 anos atrás, à taxa de 2,15% anuais. Mas uma análise dos números desses três últimos anos revela um dado absolutamente extraordinário, diz a Economist do último 24 de julho. O crescimento é apenas em um setor, das dezenas que compõem a economia americana: o setor da manufatura de computadores, que cresceu a uma taxa assombrosa de 41,7% ao ano e, embora pese apenas 1,2% no produto americano, fez a média subir. Excluindo esse setor, a produtividade média da indústria americana nos últimos três anos caiu ainda mais do que a média de queda do último quarto de século.

Ou seja: algo parece indicar que continua valendo o que os socialistas descobriram quando iniciaram suas grandes lutas políticas em meados do século XIX contra as desgraças promovidas pelo extraordinário desenvolvimento do capitalismo da época. Que o mundo não vai para a frente apenas pela tecnologia e pelo mercado. Que a economia é uma ciência política. Que a força produtiva principal vem dos trabalhadores organizados. E é por isso, talvez, que, a despeito de tudo, o governo dos pequenos de Olívio tem sua chance.

Raimundo Rodrigues Pereira é jornalista.