Economia

A política tributária brasileira é perversa e ineficiente. 0 governo federal vem aumentando sua arrecadação e beneficiando o sistema financeiro. A bancada do PT propõe uma reforma tributária baseada na distribuição de renda e na desoneração da produção e do emprego

Há três pilares fundamentais que deveriam sustentar urna política tributária justa e eficiente para o nosso país:

• o seu poder de alterar ou no mínimo amenizar a má distribuição de rendas, que é urna das maiores chagas sociais do Brasil.

• o seu efeito corno instrumento de um projeto de desenvolvimento econômico nacional sustentável.

• a sua influência na construção de um pacto federativo sadio e que valorize as características regionais e o poder local, instância em que se materializam as vontades e necessidades dos cidadãos.

Nossa atual política tributária, nestes três aspectos fundamentais, ou em qualquer outro que se queira, é escandalosamente inadequada, perversa e ineficiente. Ela não somente deixa de amenizar a má distribuição de rendas como faz por agravá-la, na medida que seu conteúdo fundamental é regressivo, com enorme ênfase nos impostos indiretos. Além disso, é um real obstáculo a qualquer projeto de desenvolvimento nacional, pois tem se tornado um grande empecilho à produção nacional. Ela onera diretamente o emprego no que diz respeito ao financiamento da previdência, preferindo taxar a folha de pagamento ao lucro. E ela é, enfim, um instrumento de desrespeito ao pacto federativo, na medida que consolida na prática a idéia de país fortemente centralizado.

Para entender a extensão da injustiça tributária brasileira basta dizer que nosso país tributa em média 19% o trabalho, enquanto o capital é tributado em média 8%. No grupo dos países mais ricos (G-7), tributa-se o capital em média em 38%. Os impostos indiretos, cuja significância para os mais pobres é evidentemente maior que para os mais ricos, são responsáveis por 70 a 75% da arrecadação. Pode-se destacar ainda que não menos que 70% do Imposto de Renda da Pessoa Física decorre do trabalho assalariado. Ou podemos recorrer aos dados da Receita Federal, que em 1998 arrecadou do Imposto de Renda na Fonte do trabalho R$ 14,7 bilhões, enquanto o Imposto de Renda na Fonte do capital significou uma arrecadação de RS 12,3 bilhões.

A política tributária de FHC

É um engano pensar que o atual governo não se interessou em alterar a política tributária. Ao mesmo tempo que bloqueava o debate e a votação da reforma na Câmara, desde 1995, quando enviou seu primeiro projeto, o governo federal mandou uma a uma todas as mudanças substantivas que precisava para os objetivos de sua reforma: ajustar a arrecadação e a política fiscal ao ajuste econômico advindo do Plano Real.

Foram inúmeras as emendas constitucionais que o governo FHC fez aprovar no Congresso Nacional: o Fundo de Estabilização Fiscal, a Lei Kandir, o IPMF, transformando depois em CPMF, o aumento da Cofins, a introdução da contribuição dos inativos - recusada quatro vezes na Câmara dos Deputados -, entre outras. Todas essas emendas vieram ao longo das crises que se abatiam sobre o real, decorrentes das crises do México, da Ásia, da Rússia e depois do próprio real. Todas elas tinham o mesmo objetivo: ajustar as contas e os compromissos do governo federal com sua política de juros estratosférica. No último pacote, as emendas aprovadas inclusive a prorrogação da CPMF por mais três anos e com alíquota aumentada em 90% - respondiam ao acordo contrato firmado com o Fundo Monetário Internacional, que passou a determinar diretamente as políticas econômica e fiscal do Brasil.

Mas se por um lado o governo federal conseguiu empurrar seus problemas de caixa cone tantas emendas constitucionais, na medida que sua arrecadação cresceu mais de 100% nos últimos quatro anos, por outro conseguiu transformar nossa política tributária, que já era inadequada, num monstrengo que sobrevive destruindo seu hospedeiro. Com efeito, a política tributária, após as emendas do governo FHC, ao onerar acintosamente a produção do país, inviabilizou as finanças de estados e municípios e transformou-se num obstáculo total a qualquer projeto de desenvolvimento nacional e, ao mesmo tempo, numa agressão à mão armada para os cidadãos, na medida que agora atinge também os inativos. Afinal, a política tributária só não mudou para o capital financeiro, que continua vivendo num paraíso fiscal sem paralelos no inundo civilizado. Mais que isso, enquanto apertou cidadãos e empresas nacionais, o governo criou novas isenções para o capital especulativo, principalmente o de origem estrangeira, na medida que as crises ameaçavam a estabilidade da moeda e o país se tornava mais vulnerável e mais dependente dos capitais voláteis. Não se pode, por outro lado, reclamar incoerência do governo que, no mesmo período, transferiu R$ 21 bilhões para os bancos falidos por intermédio do Proer e salvou bancos absolutamente inexpressivos como o Marka e o FonteCindan com o inacreditável argumento de risco para o sistema financeiro.

Mas o pior dos efeitos do monstrengo tributário construído pelo atual governo é que os níveis de evasão fiscal vão se tornando insustentáveis. Pelos dados do próprio secretário da Receita Federal, o país tomou conhecimento de que não menos de R$ 820 bilhões, de um total de 2,4 trilhões que circulam nas contas correntes do país em 98, não pagaram qualquer imposto, com exceção da CPMF. É mais que uma megassonegação, é a falência em praça pública da política tributária. Outro dado da receita mostra que 42% dos maiores bancos pagaram zero (isso mesmo... zero!) de Imposto de Renda em 98. Ao mesmo tempo o setor que mais cresce em se falando de tributos é o do planejamento fiscal para grandes empresas, que soma à sonegação a elisão fiscal que, ainda no caso dos bancos, utilizando-se das brechas de unia lei de 1991 que permite alterar cálculos de lucratividade, deixaram de pagar à receita, apenas em 98, nada menos que 12 bilhões de reais.

Poderia se argumentar que o atual governo não tem meios de combater a evasão fiscal. Mas não é o caso. Tanto as autoridades da Receita Federal conhecem todos os mecanismos de sonegação e elisão como o governo e o Congresso. No Senado, repousa esquecido na biblioteca um relatório composto por três livros que tem todo o diagnóstico da evasão fiscal. É o resultado de uma CPI que trabalhou durante três anos no Senado e fez o maior e mais completo raio x da sonegação no Brasil. Seu nome: CPI da Evasão Fiscal. Seu proponente e relator, senador Fernando Henrique Cardoso!

Portanto, não faltam instrumentos para o governo modernizar e tornar eficiente sua política fiscal. Nem para torná-la minimamente justa. Na verdade, urna política tributária distributivista, que inclua milhões de brasileiros no mercado de consumo de bens de primeira necessidade, com grande influência na dinamização da economia, não interessa ao governo, Mobilizado que está para, por meio da recessão, segurar os índices inflacionários e continuar seu curso de equilíbrio econômico às custas do emprego e da produção nacional.

A reforma tributária do PT

No início do ano, contra a vontade do governo que insistia na reforma política e pela crise que havia em sua base de sustentação, a Presidência da Câmara reinstalou a Comissão Especial de Reforma Tributária. Durante todo o primeiro semestre a comissão colheu subsídios dentro e fora da Câmara. Dezenas de emendas e projetos foram apresentados. A bancada do PT apresentou uma emenda global, urna proposta de nova política tributária que consiste principalmente nos seguintes pontos:

Justiça e distribuição de renda: Progressividade em todos os impostos patrimoniais, introdução do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) e do Imposto de Renda Negativo. Nesse item, o que se busca é uma tributação progressiva e não regressiva como é hoje. E que seja distributivista, cobrando especialmente dos mais ricos e transferindo renda aos mais pobres. O imposto da solidariedade recairia sobre o 1% mais rico, que possui 53% do patrimônio nacional, e seria cobrado uma única vez à base de 10% sobre o patrimônio líquido. O IGF já consta da atual constituição, mas nunca foi regulamentado. Segundo estudos do Ipea, a transferência de 8% da renda dos 10% mais ricos da população seria suficiente para a inclusão de 30% da população mais pobre, que vive com menos de um salário mínimo.

Desoneração da produção e do emprego: fim do IPI, que seria compensado com a criação de uma sobretaxa sobre o capital especulativo; fim do PIS-Pasep, da Cofins, da CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) e da Contribuição Patronal sobre a Folha de Pagamentos e criação de uma única contribuição sobre o lucro bruto (CSLB) destinada ao financiamento da seguridade social. Esse grupo de propostas visa desonerar a produção nacional, extinguindo-se o IPI. Mantém-se o Imposto Seletivo e cria-se uma sobretaxação do capital especulativo. Para o PT, é inaceitável que o país continue a tratar a especulação financeira de maneira tão especial como faz hoje. Uma novidade importante é o fim das contribuições cumulativas e da contribuição patronal sobre a folha de pagamentos e a criação de uma única contribuição sobre lucro. Com isso, desonera-se o emprego, utilizando-se o conceito de contribuição solidária para a previdência social, baseada no lucro e não no número de empregos gerado pela empresa contribuinte.

Um novo pacto federativo: Propõe-se um conjunto de mecanismos de valorização das finanças dos estados e municípios recuperando as perdas que tiveram nos últimos anos com a centralização de tributos pelo governo federal. Propõe-se também que as contribuições (e não apenas os impostos) sejam divisíveis para estados e municípios.

Fim do sigilo bancário e valorização da administração fazendária: Propõe-se a flexibilização do sigilo bancário para efeito da fiscalização das contribuições, garantindo-se os direitos individuais de sigilo. Propõe-se também a valorização da administração pública no que diz respeito à fiscalização e administração de tributos, com estabilidade para o agente público e modernização da receita federal.

Com esse conjunto de propostas, o Partido dos Trabalhadores trabalha no Congresso e rio debate com a sociedade por uma nova realidade tributária para o país. Uma política tributária que seja instrumento de desenvolvimento econômico e geração de empregos. E que inicie um amplo processo de distribuição de rendas, que é inadiável e que pode promover a inclusão de mais de 60 milhões de brasileiros.

No segundo semestre deste ano, a Comissão Especial da Reforma Tributária deve iniciar a votação do projeto final da reforma. É uma grande oportunidade para se operar uma mudança substantiva na sociedade brasileira e nos destinos do país. Tudo dependerá da real pressão que a sociedade exercer sobre o Congresso. Do governo certamente não partirá nenhuma mudança significativa. Ele já obteve a arrecadação necessária ao seu obsessivo ajuste econômico. Uma verdadeira reforma só interessa ao país que quer crescer, gerar empregos e distribuir renda e justiça social.

Antonio Palocci é presidente do PT/SP, deputado federal e 10 vice-presidente da Comissão Especial da Reforma Tributária