Nacional

Economista e socióloga, atuou trinta anos na Sudene, especializou-se em Economia Regional, porém com um pensamento multidisciplinar, transitando pela Geografia, o Urbanismo e a política

Tania Bacelar é economista e socióloga. Atuou trinta anos na Sudene, especializou-se em Economia Regional, porém com um pensamento multidisciplinar, transitando pela Geografia, o Urbanismo e a política.

Foi secretária de Planejamento e da Fazenda do governo Arraes (1987-90). Colabora com distintos movimentos sociais, participando hoje da Consulta Popular. Severa crítica do neoliberalismo, com suas reflexões sobre reforma agrária, planejamento econômico e desenvolvimento regional, tem contribuído para a formulação de alternativas para o Nordeste e o país.

Como você vê a situação do país em função das transformações que estão sendo impulsionadas pelo neoliberalismo?
Nos anos 70, no plano mundial, tivemos dificuldades para a economia acumular na esfera produtiva e uma crescente tendência dos agentes econômicos a acumularem na esfera financeira. Entramos em um ciclo de desaceleração, em que os agentes econômicos geram seus lucros e ampliam o seu patrimônio na chamada esfera financeira da economia. A acumulação passa a ser crescentemente rentista. O Brasil resistiu a isso nos anos 80, mas capitulou nos anos 90.

Temos, no cenário mundial, duas hegemonias: do ponto de vista da dinâmica real da economia, a hegemonia do rentismo; do ponto de vista ideológico, a hegemonia do neoliberalismo. Uma combina com a outra. Essa idéia muito cara aos liberais, de que o mercado é quem comanda, é muito boa para o rentismo, porque os fluxos financeiros querem operar em escala mundial. A telemática deu as bases materiais para isso.

Assim, na década de 90, o país mergulhou no rentismo, que começou com Collor, quando se desregulamentou o sistema financeiro brasileiro. Éramos a oitava economia do mundo com um sistema bancário nacional; tínhamos grandes bancos, nacionais, médios e públicos. Agora, o espaço dos bancos públicos foi invadido pelos internacionais. Há uma fantástica internacionalização do sistema bancário brasileiro.

O próprio programa de estabilização é muito mais a adesão ao rentismo do que um programa de quebra da inflação. Ele tem como subproduto a quebra da inflação, mas o que faz mesmo é engatar o Brasil na dinâmica mundial. A trajetória da década é de crescimento baixo, no começo com inflação alta, no fim com inflação baixa. O próprio Plano Real tem a política de juros altos, que é um instrumento do rentismo. Desde a preparação do real até hoje, muda a conjuntura, o argumento, mas a política de juros altos permanece. Preparando o real, o argumento era: "Precisamos de juros altos para atrair capitais para entesourar reservas para preparar o programa de estabilização". Feito o programa de estabilização, a reforma monetária, introduzido o real, a conjuntura era de oferta abundante de recursos no sistema financeiro, e o programa já tinha sido feito. Aí eram juros altos porque, como o programa usava âncora cambial, era necessário não gerar déficits na balança de transações correntes. Os juros altos permitiriam captar os recursos necessários para financiar o déficit nas transações correntes. Vieram as crises do México, da Ásia, da Rússia, o contexto internacional mudou, não tínhamos mais superofertas de financiamento, o déficit externo era grande, mas diziam que precisávamos de juros altos para segurar a política do Plano Real!

Em janeiro, se confirmou que essa política era insustentável. Vamos agora para a meta inflacionária, que define a inflação e em função dela se define a taxa de juros. Então, se a inflação crescer, o que vai acontecer? Juros altos de novo, não mais pela política cambial mas pela política das metas inflacionárias. Então, muda tudo e só não muda a política monetária de juros altos porque ela é um instrumento importante do rentismo.

Isso implica um deslocamento da correlação de forças entre setores da burguesia?
Exatamente. Mas é um deslocamento tanto externo como dentro do país. Os setores hegemônicos no terreno internacional conseguem ganhar aliados internos importantes. Parte do empresariado tradicional do setor produtivo da indústria de transformação perde peso relativo. Alguns estão até desaparecendo, empresários importantes, no ciclo anterior, como o Mindlin.

Esse espaço econômico passa a ser ocupado, de um lado, pelo grande capital que vem de fora. Essa entrada no rentismo coincide com uma vaga de desnacionalização muito importante. Não só os bancos se desnacionalizam, mas o setor produtivo também está passando por essa vaga em que parte do espaço é ocupada por agentes externos.

Voltando ao caso do Mindlin, quem ocupa seu espaço hoje é uma grande empresa alemã. E outros espaços são ocupados por agentes internos que se articulam com os externos ou em torno das estatais privatizadas. Esses consórcios que se formam em torno das estatais privatizadas ganham espaço econômico, e parte deles é de empresas brasileiras. Temos, então, uma profunda recomposição dos grupos econômicos, com peso crescente para os estrangeiros. Dentre os nacionais, alguns grupos avançam e outros desaparecem.

Estamos em um processo de mudança de estruturas de poder empresarial, com rebatimento nas estruturas de poder político, porque a economia e a política sempre andam juntas. Na fase em que estamos, o rentismo é muito estéril. Ele gera muitos lucros, amplia a riqueza, mas na esfera imaterial da vida econômica. Parte da explicação que eu encontro para o desemprego vem daí. É possível ter muito lucro com a desvalorização do real, mas isso não cria emprego. Entrar nessa onda rentista tem um impacto muito forte sobre a sociedade. É um processo muito seletivo, mais ainda do que já tínhamos no Brasil.

Estamos perdendo em vários segmentos. Cadeias produtivas, que o Brasil montou a duras penas, vão se partindo. Tínhamos uma indústria muito mais complexa do que hoje. Essa vaga de importação quebrou muitas cadeias produtivas. E aumentou a dependência de ofertas externas. O processo de integração crescente que vinha sendo feito perde consistência. De um lado, há aportes positivos à medida que não tínhamos condição de produzir algumas máquinas novas, mas, por outro lado, se fez uma competição muito desleal, sobretudo depois do Plano Real. Abriu-se a economia muito rapidamente e além disso tivemos vários anos com o câmbio sobrevalorizado. Isso deu um choque violento de competição. Não que não fôssemos competitivos; ficamos artificialmente não-competitivos. E isso quebrou vários segmentos que poderiam produzir em condições normais. A abertura muito rápida com sobrevalorização cambial causou um impacto destrutivo, em termos de competitividade. Desfez parte do tecido econômico brasileiro, que não era tão atrasado, mas que foi ficando atrasado.

Um exemplo que interessa a nós do Nordeste é o do algodão. O Brasil era um dos maiores produtores de algodão e se transformou em um dos maiores importadores. E não é porque não haja consistência no país para se produzir algodão, mas porque a indústria comprava fora, com juros baixíssimos, longos prazos de financiamento e uma taxa de câmbio sobrevalorizada. Então, passou a ser rentável se tornar importador e não-rentável ser produtor.

Essa política macroeconômica invertida é resultado de um aprisionamento das políticas econômicas em um círculo vicioso, numa lógica implacável, ou foi um propósito político do governo FHC?
As duas coisas. Há um lado que é real, existe um Estado brasileiro que está muito endividado, que se endividou nos anos 70 e aprofundou o endividamento nas últimas décadas. Qualquer que seja o presidente, terá que lidar com um Estado endividado e, portanto, ser operador de um Estado que é refém de seus credores. Para mim, quem definiu melhor Fernando Henrique foi José Luís Fiori, quando disse que achava que ele não tinha mandado a gente esquecer o que ele escreveu, mas que ele tinha acompanhado o objeto de estudo dele.

Seu objeto de estudo era a burguesia dependente brasileira. E sua política é a política dessa burguesia, dessa fração que tem força e que é internacionalizada, que patrocina esse padrão de inserção do Brasil na economia mundial. É uma elite que não tem um projeto para o Brasil, tem um projeto para ela, com uma referência internacional.

É um projeto muito pequeno, que envolve apenas um pedaço do Brasil, entregando os outros à sua própria sorte.

A resistência que setores da burguesia brasileira ofereceram a esse projeto é desprezível, porque uma parte importante dela já está integrada e, portanto, também se beneficia com esse projeto, defendendo-o não apenas ideologicamente, mas também materialmente.

Quanto à parte que não se beneficia, eu me pergunto, às vezes, por que essas pessoas, que vão perder materialmente, defendem o neoliberalismo? Aí há a força da ideologia, da hegemonia do mercado, que na visão dos empresários é muito importante. Eles são fascinados pelo discurso do mercado.

E nos setores populares, esse discurso também pega?
A parte mais pobre da sociedade brasileira apoiou o projeto FHC. Votou nele para o primeiro mandato e tornou a votar. Um elemento explicativo importantíssimo para isso é a queda da inflação. O Plano Real tem esse grande mérito para os poderosos, que é gerar um subproduto de grande importância para os mais pobres. Com isso, ele ganha uma adesão social importante. Até porque a queda brusca da inflação coincidiu com preço estável da cesta básica, que não tem nada a ver com as políticas do governo. Há uma tendência mundial de queda dos preços das matérias-primas, entre as quais estão os produtos alimentares básicos. Mas isso coincide no tempo com a queda brusca da inflação e causa impacto na cesta básica de 80% dos brasileiros, que vivem nas cidades.

Esse processo exauriu-se, e nos dois últimos anos já há uma queda do rendimento real. Com o aumento do desemprego, hoje temos outra conjuntura. Não é à toa que Fernando Henrique está perdendo adesão social, o dia-a-dia da população mudou também. As pessoas sentem que é preciso mais do que só a queda da inflação. Creio que FHC não conseguirá recompor a adesão que tinha.

O problema é que é difícil você soldar esta outra parcela da população...
É muito mais difícil, exatamente porque são interesses muito mais heterogêneos e não temos estruturas políticas capazes de fazer isso. O PT atinge até um pedaço do Brasil. Há um setor dos excluídos com o qual ele não dialoga e um setor do empresariado que ele também não atinge. Nem há outros partidos que façam isso.

O que se obteve de dinamismo econômico no Brasil no século XX é apreciável. Tivemos um desenvolvimento nacional e uma relativa integração do mercado interno, amparados na condução estatal. Isso tinha, do ponto de vista social, uma capacidade integradora importante, que funcionou por meio século. Mas hoje a correlação de forças e esse padrão rentista de organização do capitalismo inviabilizam a recuperação disso sem uma grande confrontação política. Qualquer projeto que queira reconstituir um espaço econômico nacional e que permita integrar mais as populações tem que trabalhar com a perspectiva de uma forte ruptura...
Exato. Eu acho que o debate ideológico tem um papel central. Nós perdemos o debate nos anos 90, e por isso é muito importante fazer a crítica às teses que foram hegemônicas. Há um mito de que o mercado interno não é importante e que a economia está mundializada. Não há dado internacional que comprove isso. A grande maioria das empresas realiza a maior parte da sua produção no mercado do seu país de origem, a começar pelos Estados Unidos e pelo Japão. Só nos pequenos países é que as grandes empresas não têm espaço interno para fazer isso. É verdade que há uma tendência a aumentar a internacionalização, mas isso é meia-verdade. Um país como o Brasil não pode deixar de apostar no mercado interno. Os outros países nos buscam exatamente por isso, eles percebem a importância de nosso mercado e o disputam a ferro e fogo. E nós o desvalorizamos e queremos fazer a retomada pelas exportações. A exportação é muito importante, mas não pode ser o carro-chefe. Será sempre uma estratégia, um elemento complementar importante. Nós conseguimos ser a oitava economia do mundo em 80 direcionados para o mercado interno e não vamos conseguir isso olhando só para o mercado externo, até porque a disputa por ele é muito dura.

Qual o papel da intelectualidade nesse processo?
A academia no Brasil tem uma responsabilidade muito grande, a sociedade brasileira escuta muito seus intelectuais, e parte deles embarcou nessas meias-verdades, difundiu esses mitos. A responsabilidade diante do que está aí não é só dos empresários, dos políticos, é do meio acadêmico também.

Colocar a expansão do mercado interno como eixo da política econômica significaria romper com o rentismo e com os setores hegemônicos no capitalismo brasileiro?
Exato. E, portanto, ser capaz de construir essa outra força, da qual fazem parte os excluídos. Há excluídos que já foram incluídos: uma parte das classes médias, do empresariado que está tendo dificuldade de se inserir neste padrão ou que teria muito mais chance de se desenvolver num outro padrão. Eles podem até não estar perdendo em termos absolutos, mas estão em termos relativos. Esse é o desafio político: quem vai conseguir soldar esse pedaço. Claro que a realidade tem muita força, mas creio que as idéias no Brasil também têm muita força, o que passa pela cultura, o que passa pela visão de mundo. A dificuldade é como fazer esse debate, quais são os meios para isso, como conquistarmos aliados para ampliá-lo. Tivemos uma derrota no plano das idéias. Se não estivermos convencidos disso, não adianta esperar que as mudanças venham somente do processo social e econômico.

Estamos indo para a guerra civil, para a violência. À medida que a situação degrada, surge uma sociedade muito violenta. As violências pública e privada aumentam. Não é só o crime do tráfico, há um processo de degradação interna também, na vida das famílias, muito sério. E um processo de degradação de valores, como por exemplo nessa falta de compromisso com o próprio país, essa visão de que Nação é démodée. Isso pegou no Brasil. Essa discussão é importante. Faz sentido falar em Nação ainda?

Faz sentido?
No caso do Brasil, acho que sim. Somos uma Nação ainda em construção. Estamos num mundo onde as nações interagem cada vez mais, mas as identidades nacionais são muito fortes. Não é a toa que Taiwan acaba de anunciar que vai falar com a República Popular da China de igual para igual. O que existe por trás disso, senão uma afirmação nacional?

A possibilidade de coesionar um bloco de forças sociais extremamente heterogêneas está vinculada à afirmação de uma identidade nacional. Só esta idéia é capaz de juntar. Fora isso, vamos nos despedaçar, ser pedaço de Brasil e ex-nações.

Você é especialista em economia regional. Em que medida essas transformações que sofre hoje a economia brasileira estão remexendo os problemas regionais?
Tenho trabalhado no sentido de mostrar que os anos 90 marcam, do ponto de vista regional, o começo de uma nova fase que tende à ampliação das diferenças regionais em todas as regiões. É uma volta à hegemonia do Sul/Sudeste, uma volta à reconcentração, de Minas para baixo. Temos trabalhado na questão regional com três grandes fases. Em uma primeira, que durou quatrocentos anos, tínhamos economias regionais articuladas com o exterior. Produzia-se açúcar, café para o mercado externo. Então, cada base regional se articulava muito mais com o exterior do que com as outras bases. A ruptura disso veio com o século XX e com o processo de industrialização, porque passamos a valorizar o mercado interno, e com muito mais força depois de 30. A transição para a indústria é para produzir aqui o que a sociedade vai consumir aqui. Isso promoveu uma articulação econômica entre as regiões. Só que essa passagem se deu concentrando muito a indústria numa região. Esse processo atuou com muito mais força numa das bases, que foi a mais dinâmica, a da última monocultura exportadora que estava em torno de São Paulo. Isso solda o Brasil mas com hegemonia muito forte de São Paulo. Depois há uma mudança, e vai-se traçando a teia das relações intrarregionais.

Num primeiro momento, as antigas bases regionais sofrem um impacto negativo com esse processo de concentração em São Paulo. Há, em parte, desindustrialização porque, por exemplo, a indústria têxtil paulista ganha mercado da do Nordeste e fecha muitas fábricas nos anos 40. Mas num segundo momento já estávamos revertendo isso. Estavam em marcha a desconcentração, a integração industrial e a redução das disparidades regionais. Todos os estudos mostram que, a partir dos anos 70, a tendência à exacerbação da concentração estava se atenuando, ainda que de forma modesta. São Paulo estava perdendo importância relativa e o Nordeste estava ganhando peso relativo.

Os anos 90 tendem a mostrar uma volta à tendência anterior, interrompendo esse processo. Há dados da Sudene que tentam contestar isso dizendo que, de 90 a 98, o Brasil cresceu 0,15% e o Nordeste cresceu 12%. Eu acho que não é referência. Porque crescer na hora que o Brasil desacelera, na verdade, é crescer muito pouco também! E as tendências de investimentos e de novos padrões produtivos são muito mais favoráveis ao Sul e ao Sudeste do que ao Nordeste e ao Norte. Eu estou mais com o pessoal que está trabalhando a hipótese da reconcentração.

Isso deriva da crise do Estado brasileiro?
É essa ausência do Estado. As forças do Estado brasileiro hoje patrocinam o rentismo, não patrocinam mais o desenvolvimento. E aí as regiões que precisam mais do investimento e da ação públicos terminam, a médio prazo, pagando o preço. Por exemplo, o investimento pesado em infra-estrutura que o Estado brasileiro fez no Nordeste, que não tem retorno a curto prazo. Como no Nordeste o investimento público tinha um papel muito importante e ele cai com mais força, isso tem um impacto mais forte do que no Sudeste. A outra variável é que as novas formas de produzir são mais favoráveis ao Sudeste e ao Sul. Há uma restruturação produtiva mundial e há novos fatores, como a mão-de-obra qualificada, a infra-estrutura, as articulações entre centros financeiros e produtivos que atraem os investimentos e que pesam mais na competitividade das regiões. E esses fatores estão mais concentrados de Belo Horizonte para baixo. Toda teoria moderna diz que os lugares que vão atrair investimentos e que vão ser mais competitivos são os que têm mais centros de produção de conhecimento. E as melhores universidades, os principais centros de pesquisas no país estão de Belo Horizonte para baixo.

O próprio peso do Mercosul puxa nesse rumo. A Argentina tem um PIB do tamanho do de São Paulo e o Nordeste tem um PIB de 125 bilhões, que não é nem metade do paulista. Então no Nordeste há um mercado muito menor do que o da Argentina, do Paraguai e do Uruguai. Então quem pensa no Mercosul tende a ir de Minas para baixo. Tudo isso está nos indicando que o mercado, deixado à sua própria sorte, vai fazer a reconcentração.

Por outro lado, eu tenho trabalhado muito para mostrar que esta análise macrorregional é cada vez mais insuficiente para dar conta da dinâmica regional. O que é o Nordeste? O que é o Sudeste? Eu acho que crescentemente são análises que escondem mais do que esclarecem. Dentro do Nordeste há áreas muito competitivas, muito dinâmicas, que têm uma ligação com o projeto da internacionalização dos pedaços modernos do Brasil. As áreas de fruticultura, de grãos, o litoral – onde pode se desenvolver o turismo de renda alta – são pedaços da região que podem engatar nesse projeto seletivo das elites brasileiras. Agora, há outro pedaço do Nordeste que sobra, como por exemplo o semi-árido seco. Então, somos desafiados a fazer análises em outras escalas, sub-regionais e locais. Em cada uma dessas macrorregiões encontramos focos de dinamismo e focos de não-dinamismo. Há uma tendência de fragmentação e crescente heterogeneidade interna. E no Sul também há regiões assim. Mas a resposta do governo para o Nordeste é: grãos, fruticultura e turismo. A resposta do Banco Mundial também é grãos, fruticultura e turismo. A do empresariado idem. Mas o semi-árido, onde está 40% da população do Nordeste, não está na agenda de nenhum desses atores.

Qual seria o diagnóstico, em linhas sumárias, da situação econômica do Nordeste?
Há a produção de grãos no oeste da Bahia, sul do Maranhão e do Piauí, que na verdade são uma extensão do cerrado, economicamente são mais Centro-Oeste do que Nordeste. Há áreas de fruticultura irrigada, que são pontos dentro do semi-árido, lugares muitos especiais, onde há água e terra boa. Temos o litoral com esse potencial turístico e onde os investimentos estão sendo feitos: há grandes redes mundiais interessadas em construir resorts nas praias. Com esse pouco investimento o Nordeste já atrai parte do turismo nacional. Recife tem um certo dinamismo mais voltado para o mercado interno, é um pólo terciário. E Fortaleza tem as áreas metropolitanas que são áreas importantes. Nas três áreas metropolitanas – Salvador, Recife e Fortaleza – está metade do PIB do Nordeste. Há uma área dinâmica no Maranhão, que é área afetada pelos investimentos de Carajás.

As áreas críticas são a do cacau e a do açúcar, nas quais do que existia parte continuará existindo e parte não! Não são áreas de decadência, mas em reestruturação. O cacau ainda tem consistência, mas é preciso fazer conviver o cacau com outras atividades, diversificando a produção. A cana ainda vai ser importante mas em lugares muito mais restritos, com muito menos empresas. A área mais problemática é o semi-árido, onde está 40% da população. A sua base econômica era o algodão, a pecuária e a agricultura de subsistência. E o algodão praticamente desapareceu. Nas condições atuais da economia, o algodão dessa região não tem produtividade suficiente para competir com o do Mato Grosso, por exemplo. E ele tinha uma relação muito importante com a pecuária, que tinha parte de seus custos rebaixada pela presença do algodão. Como parte da alimentação do gado vinha do algodão, o seu fim teve impacto negativo também na pecuária. Aí há uma diminuição da renda, tanto para as elites como para uma massa de pequenos produtores que vivia nesse modelo.

É uma região em busca de novas alternativas, que ainda pode ser a pecuária, mas uma pecuária mais intensiva, a criação de cabras. O caprino sempre foi desprezado, porque o boi era cultura de rico e cabra era cultura de pobre. Agora tem empresário achando que cabra é cultura de rico e que vale a pena. Mas é uma região com um contingente demográfico muito grande. Só não explodiu porque a Constituição de 88 trouxe para cá a Previdência Rural, que foi um colchão de amortecimento importante, pois a maioria das cidades pequenas do semi-árido se sustenta com duas fontes rendas: uma é a renda pública das transferências, Fundos de Participação; e a outra é a transferência via aposentadoria. A cidade funciona no dia em que a prefeitura paga, ou que o INSS paga, não tem outra renda! Essas cidades não têm economia interna! São uma ficção! Os velhos seguram a economia e uma parte grande da população continua saindo, agora não mais para São Paulo, mas para as beiras das metrópoles, das cidades médias do Nordeste. Todas se favelizaram nos últimos anos. E tem havido muita seca, que são terríveis para a agricultura de subsistência. Para o tipo de agricultura dessa região, que é de ciclo curto, dependente de chuva na hora certa, quando ela é irregular, como agora, desmonta.

O que poderiam ser alternativas político-econômicas?
Seria necessário democratizar o acesso à água. Não é à toa que todas as estruturas que lidam com água estão nas mãos do PFL. Em muitos lugares do semi-árido o domínio da água é muito mais importante do que o domínio da terra. A equação em torno do acesso à água é muito importante para uma construção mais democrática dessa região. Depois, é necessário investimento em educação. Metade dos analfabetos do Brasil estão no Nordeste. Os níveis médios de escolaridade são muito mais baixos que os níveis médios do país. Aí está um grande desafio, porque às vezes há alternativa econômica mas as pessoas não têm habilidade e conhecimento para desenvolvê-las. Um cortador de cana, por exemplo, que faz isso desde criança, não consegue ir para a escola porque a cana tem uma demanda cíclica. Quando ele está na escola vem a safra e ele sai da escola. E de repente querem transformá-lo em um pequeno produtor rural. Isso é muito mais difícil do que em Santa Catarina ou no Paraná, onde o avô e o bisavô foram pequenos produtores, ele entende o que é uma unidade de produção e sabe como aquilo funciona. O investimento necessário para transformá-lo em um produtor é muito menor do que na Zona da Mata.

Acho que água e gente são bons desafios. Claro que há ainda um investimento em infra-estrutura a ser feito, há lugares sem energia, água, escola, acesso.

Acenou-se na campanha e continua se falando da questão da transposição das águas do São Francisco. O que você acha disso?
Ela é muito importante para três estados: Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Porque esses estados têm sua maior parte do território nesse miolão do semi-árido, onde a água perene é coisa rara. Mas é um investimento muito caro, compete com o investimento em energia, e aí a Bahia é contra. O que politicamente é difícil, pois dizer que a Bahia é contra quer dizer que ACM é contra. Então, é a força do Tasso Jereissati contra a força do Antonio Carlos Magalhães, e a força do ACM tem sido muito maior!

Mas no campo do ACM também há essa discussão, quer dizer, a água para consumo humano e para agricultura versus a água para energia. E aí há toda a polêmica em torno da privatização do setor elétrico, que está em cima da mesma bacia que vai ser transportada. Há uma discussão sobre a origem da água e outra de para onde vai essa água. Vencida a batalha do transporte, há outra questão: para quem vai a água, quem é capaz de pagar por essa água subindo e descendo montanhas, transportadas por bombas e não sei o que mais? Ela pode ir para grandes empresas, grandes proprietários, e pode até dinamizar, mas num processo muito seletivo.

Muitas análises salientam também a dimensão ecológica. Embora os modelos sejam mais de construção de grandes açudes, os ecologistas conseguiram de alguma forma introduzir cunhas na proposta, que hoje é mais de reforçar os grandes reservatórios já existentes. Mas há lugares que não têm água para beber. Aí seria necessário combinar isso com formas de captação mais naturais. Há muitos projetos no semi-árido que prescindiriam da transposição porque organizam as unidades para captar água de chuva. E há uma outra corrente mais contrária à transposição que diz que com este mesmo investimento poder-se-ia fazer processos de captação da água que cai. Mas há muitos lugares em que ela cai de forma muito irregular e não há como captá-la.

Há muitas experiências de formas de captar a água na hora em que a chuva cai. E aí os investimentos são menores, não interessam às grandes empresas de construção, porque o grande charme da transposição também é o fato de ser uma grande obra.

Por outro lado, a estrutura fundiária do semi-árido também é muito concentrada. Então, por exemplo, perfuração de poço, em vários lugares é possível e aparece como alternativa, usando a água subterrânea. Mas de vez em quando aparece uma denúncia: "botaram o poço na fazenda de seu fulano de tal", que por coincidência é um político de prestígio. Aí tem argumentos, como os do padre de Afogados do Ingazeiro, Dom Francisco, que diz: "E quer que bote aonde, meu filho, se não for na fazenda de seu fulano? Se ele tem as terras toda do município?" A estrutura fundiária define. Portanto, a discussão da água teria que vir com uma discussão da redistribuição fundiária.

As propostas de redução das disparidades regionais do desenvolvimento tiveram uma instituição símbolo, a Sudene. Você, que já trabalhou nela, que balanço faz de sua atuação?
Eu fui da Sudene durante 30 anos. Acho que quem melhor fez a avaliação da Sudene foi seu criador, o Celso Furtado. Quando ele voltou do exílio, deu uma entrevista na qual dizia que o Nordeste tinha se modernizado, mas que a miséria não tinha acabado. E ele fez uma autocrítica ao dizer: "Nós acreditávamos que investindo no Nordeste a gente resolveria a questão regional". O que era um dos pilares do pensamento desenvolvimentista: desenvolvendo as atividades produtivas, investindo na economia, se equaciona a questão social. Mas o investimento foi apropriado por poucos, porque não foram quebradas duas estruturas muito seletivas: a da propriedade da terra e a da propriedade do conhecimento.

A proposta inicial da Sudene pressupunha reforma agrária e mudança nos padrões educacionais. A Sudene, no começo, deu ênfase à educação, teve um departamento de recursos humanos que era muito prestigiado por Celso Furtado. Quando entrei na Sudene, fazia seleção de pessoas que recebiam bolsas de estudos. Mas com o golpe, a Sudene teve que se enquadrar no novo padrão, o desenvolvimentismo e os incentivos se tornaram muito mais importantes do que o programa em educação.

Fale-nos um pouco da sua formação intelectual e profissional.
Sou pernambucana, fiz o curso de Ciências Sociais – o que talvez explique por que eu seja uma economista meio heterodoxa – e depois o de economia. Como entrei na Sudene no pós-64, a vida foi me tornando economista. Mas sempre combinei a Sudene com a universidade. Fazia quarenta horas na Sudene e vinte na universidade. Primeiro, eu ensinei na Universidade Católica e depois na Federal, um pouquinho antes de fazer o doutorado em Economia Regional na França.

A maior parte da minha experiência é a combinação dessas duas atividades, o que me dá um perfil que não é nem o acadêmico puro, nem o burocrata puro. A Sudene me deu a experiência em políticas públicas e a academia, a possibilidade da discussão teórica. E também tive algumas incursões na política. No governo Arraes, de 1986 a 1990, fui secretária de Planejamento, depois da Fazenda. Foi uma experiência que me fez conviver com o mundo político e deu um aporte importante à minha formação. Uma das conclusões que tirei dessa experiência é que muita gente acha que ganhar o governo é ganhar o poder, e no governo Arraes aprendi que ganhamos o governo mas não o poder. Outras áreas muito mais fortes detinham o poder. O poder do Judiciário, por exemplo, é muito importante.

Por outro lado, em um país como o Brasil só a democracia representativa não dá. O PT deu certo onde foi capaz de combinar democracia representativa com democracia popular: na Prefeitura de Porto Alegre, na de Belo Horizonte... Onde os partidos de esquerda conseguiram combinar seu poder com pressão popular se saíram melhor, inclusive se mantiveram no governo.

Por esse aprendizado, hoje eu tendo a fazer mais um trabalho de apoio aos movimentos sociais. Aprendi como é importante ter no tecido social entidades com capacidade de fazer pressão, cobrar, formular e implementar políticas públicas. Isso é tão importante quanto estar no governo. Assim, minha atuação política é menos partidária e mais na sociedade civil, por essa convicção. Claro que há momentos que temos que ir para o governo, mas sem se iludir.

Quem são os pensadores mais marcantes na sua formação?
Mais do que Celso Furtado, o Francisco de Oliveira, superintendente-adjunto do Celso, me influenciou muito. Quando comecei a construir a minha própria visão, o Chico era do Cebrap, e sempre continuou produzindo dentro do Brasil. Mas Celso Furtado também teve uma influência grande em toda essa geração que fez parte da Sudene.

Na faculdade, como entrei na época da ditadura, só havia teoria neoclássica. Tivemos que estudar teoria marxista por fora. Então você vai fazendo uma síntese por conta própria. Quando fiz meu curso diziam que Sociologia era coisa de sociólogo; que História era coisa de historiador; que economista tinha de saber estatística! Como era também socióloga, eu não acreditava muito nisso. Uma das coisas importantes é valorizar a história, entender as formações sociais e, geralmente, os economistas não pensam assim. Eles entendem o que é a formação econômica mas não entendem a formação social, desvalorizam elementos como a natureza. A discussão da relação homem-natureza é paupérrima nos cursos de Economia.

A minha convivência com geógrafos também foi muito importante. Quando voltei da França, em 1978, não fui ensinar no Departamento de Economia, mas no mestrado em Geografia. O professor Manuel Correia de Andrade, que era o coordenador do mestrado de Economia e Sociologia, tinha sido afastado, estava construindo um mestrado de Geografia e me chamou para integrá-lo. Ele fez um mestrado interdisciplinar. Isso me agregou muito à Sudene. A Sudene tinha uma equipe, de fato, multidisciplinar. Trabalhávamos em conjunto – geólogos, engenheiros, agrônomos, economistas – e procurávamos dar um tratamento interdisciplinar. Eu não fui só economista, era economista de uma agência de desenvolvimento que tinha de pensar com outras categorias profissionais.

Mas a minha ida para a Geografia teve uma influência muito grande, porque nós economistas trabalhamos com o espaço abstrato e os geógrafos com o espaço concreto. Isso me obrigou a dialogar com o espaço dos geógrafos. Como era mestrado em Geografia Regional, o Manuel Correia sempre dizia: "não dá para entender sem os economistas, sem os sociólogos". E a concepção do mestrado era com áreas de domínio conexo nas disciplinas que ele considerava importante. E como Economia era uma das disciplinas, fui ensinar as cadeiras de Economia. Isso também me tornou uma economista meio diferente da média.

Em Pernambuco existe uma corrente de intelectuais de esquerda que vem de antes de 64 e de certa forma se manteve, enquanto em outros lugares este processo foi quebrado. Por quê?
Em Pernambuco temos a maior universidade da região. Há uma massa crítica relativamente grande. A esquerda sempre teve muita força. O ambiente acadêmico tende a ter essa tradição do pensamento de esquerda muito forte. Então, por mais que a repressão tenha reduzido isso, havia uma massa crítica, em tamanho e densidade, que talvez explique por que essa tradição não morre aqui, e continua criando espaços de produção acadêmica, mesmo na ditadura e depois dela, com mais força do que na média dos outros estados.

Depois há uma coisa em comum com o Rio de Janeiro. Enquanto o Rio quer pensar o Brasil, Pernambuco quer pensar o Nordeste. O regional, em Pernambuco, é muito forte também. Temos a sensação de que somos um pólo da região. Agências federais regionais importantes estão no estado: a Chesf, a Fundação Joaquim Nabuco, a própria Sudene... enfim, grandes órgãos regionais para pensar o Nordeste.

Ao mesmo tempo, havia uma luta social intensa. A presença da cana na Zona da Mata é importante em Pernambuco. As relações sociais no semi-árido são completamente diferentes das relações sociais na Zona da Mata. No semi-árido as relações, na esfera econômica, são de parceria com o grande proprietário. No sertão, o grande proprietário vai à fazenda com o pequeno produtor que trabalha para ele e entra em sua casa, senta-se à mesa e come. Jamais você vai assistir essa cena na Zona da Mata! Um cortador de cana fica embaixo dos batentes da casa grande e tira o chapéu quando o dono da casa chega. Essa fratura social que há aqui é muito profunda. Então, para conviver com ela, analisá-la e explicá-la é necessário um aporte teórico que as teorias convencionais não dão conta. A realidade empurra portanto para as posições de esquerda.

O PT quando surge em Pernambuco encontra um terreno ocupado, uma tradição de esquerda anterior a 64, diferente de outros lugares onde ele se desenvolveu numa espécie de vácuo...
O problema do PT no estado não é tanto esse. Esse é um, porque ele tem de conviver com lideranças consolidadas que não são petistas, tipo Arraes, Jarbas Vasconcelos, e as lideranças petistas são novas. As forças sociais que o PT representa aqui também deram um limite a ele, porque o PT na sua formação surgiu como representante do operariado ou do movimento de servidores públicos, que têm peso. Em muitas cidades do interior, empregado do setor público é o único de renda permanente do lugar.

O problema do PT é que sua base social continua refletindo esses dois segmentos, o que tem a ver com o PT nacional. Mas esta base é insuficiente para o partido crescer em Pernambuco e ele tem demonstrado grande dificuldade em ampliá-la. Ele não consegue chegar à Zona da Mata, não consegue falar para os cortadores de cana. No sertão, não consegue ser representante dessa massa deserdada dos pequenos produtores que ficaram sem ter o que fazer com o fim do algodão. O desafio do PT aqui é mais o de se ampliar socialmente do que o de se firmar politicamente.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de TD e editor do jornal Em Tempo.