Internacional

Bernard Cassen, diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, professor da Universidade Paris VIII e coordenador do ATTAC, esteve no Brasil em 1998

Bernard Cassen, diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, professor do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris VIII e coordenador do ATTAC, esteve no Brasil em dezembro de 1998 para participar do seminário Democracia, participação e dimensão social nos acordos de integração a convite da Rede Brasileira pela Integração dos Povos. Este encontro internacional contou com a presença de representantes de várias redes do movimento social e sindical - experiência que tem se multiplicado ante a proliferação dos acordos de livre comércio, principalmente nos países do continente americano, como reação das sociedades diante da lógica predominantemente comercial que está nor trás de iniciativas como o Nafta, o Mercosul e a Alca. A Rede Brasileira Pela Integração dos Povos é uma iniciativa da CUT, Ibase, Fase, Conselho Regional de Economia/RJ e Contag, aberta a outras entidades e organizações insatisfeitas com os rumos dos acordos de integração e dispostas a conferir uma dimensão social, trabalhista, ambiental e cultural ao processo de integração dos povos.

Naquela ocasião o professor Cassen aceitou participar de um bate-papo com Marco Aurélio Garcia, secretário de Relações Internacionais do PT, e Kjeld Jakobsen, secretário de Relações Internacionais da CUT, sobre os dilemas da integração européia. Também participaram os assessores de relações internacionais da CUT, Renato Martins, e do PT, Ana Maria Stuart.

Os projetos de desenvolvimento nacional ainda são compatíveis com os processos de integração regional na forma como vêm se dando na Europa Ocidental, no Mercosul e na Alca?
Em primeiro lugar, gostaria de fazer um esclarecimento: a palavra nacionalismo na França é extremamente carregada. No espectro político francês o único partido que é nacionalista é o Front National de Le Pen, de extrema-direita. Na França, fazemos uma distinção entre o nacionalismo - que significa classificar a Nação acima dos valores - e o que podemos chamar de patriotismo republicano, que classifica os valores acima da Nação. Quanto à questão da articulação entre nacionalismo, regionalismo e globalização, quero começar falando de globalização e regionalismo. Trata-se de um tema clássico que encontramos em toda a literatura econômica atual sob diversos enfoques: os acordos de integração regional são ou não compatíveis com o multilateralismo? Serão ou não uma etapa em direção à globalização? São questões que, do ponto de vista teórico, ainda estão em aberto. Então, mesmo não tomando partido sobre a questão teórica, pois não sou especialista nessas questões, eu sou a favor do regionalismo à medida que ele agrupe países que se encontram em níveis de desenvolvimento mais ou menos compatíveis. Um exemplo disto pode ser a União Européia, mesmo comportando países como Grécia e Portugal, que estão muito distantes da Holanda, da Dinamarca ou da própria França. Mas entre o México e os Estados Unidos é uma loucura, como demonstrado pelos resultados do Nafta. No caso do Mercosul, parece-me tratar-se de países relativamente homogêneos; por conseguinte, isto tem algum sentido em termos de agrupamento regional.

Hoje, o plano da intervenção democrática no qual os cidadãos exercem ou pensam exercer sua escolha é o nacional. Não há outros. O plano europeu não é um espaço democrático. Há eleições européias que não têm nenhum sentido. Nas eleições para o Parlamento europeu, há chapas para cada um dos países, não uma chapa européia. Portanto, o plano democrático é nacional, mas o financeiro é mundial e o econômico se globaliza cada vez mais. Toda a questão está em saber como podemos sobrepor o plano da intervenção democrática e legítima ao dos fluxos econômicos e financeiros, de modo a que a esfera da democracia se sobreponha à esfera da economia e das finanças, pois está claro que nenhum Estado, talvez nem mesmo os EUA, pode dominar os fluxos financeiros. Em conseqüência, a regionalização é uma etapa intermediária, que nos aproxima do plano mundial, mas é preciso uma regionalização com regulamentações. Caso se trate simplesmente de um modelo reduzido da modernização, com acordos de livre comércio unicamente, isto não tem nenhum interesse.

O senhor é a favor do protecionismo?
Eu sou favorável, mas não no sentido clássico. Um protecionismo no qual os mais ricos ofereçam oportunidades aos mais pobres e não o inverso. Por exemplo, parece-me absurdo que a União Européia tenha a mesma tarifa alfandegária que o Mali, ou Bangladesh ou a Noruega! Para nós, europeus, nosso problema de segurança é a África do Norte. Nossa vizinha é ela, o Mar Mediterrâneo é a nossa fronteira. Então, ou ajudaremos bastante os africanos do norte e a África Negra a se desenvolverem, ou teremos ondas migratórias não de centenas de milhares, mas de milhões ou dezenas de milhões de pessoas, o que desestabilizaria completamente nossas sociedades e provocaria reações de tipo fascistóides. Portanto, nosso interesse deve ser o de ajudar a África, para ter relações de parceria, para propiciar-lhe condições muito privilegiadas, que não proporcionaríamos ao Brasil.

E a Europa Oriental?
A Europa Oriental é sobretudo uma prioridade para a Alemanha, mas evidentemente tudo se encaixa. Precisando, diria: a Europa Oriental, a Rússia e a África são nossas prioridades, não a América Latina, que pode ser prioridade cultural e política, mas não estratégica.

Como vem se dando o processo de integração européia?
Há freqüentemente na Europa uma espécie de "fuga para frente" teórica e política em relação à integração, que diz mais ou menos: "as coisas não vão bem na França, na Itália etc. Então, vamos construir a Europa e as coisas irão melhorar". Isto é evidentemente um absurdo! É preciso sobretudo cuidar, em um processo de integração, para que antes de tudo se assegure a coesão, a solidariedade no interior dos países envolvidos com a regionalização. Por conseguinte, o problema de fundo do Brasil não é o Mercosul, é antes tornar o Brasil uma sociedade com certa coesão. A homogeneização começa antes de tudo implantando em cada uma das sociedades mecanismos de redistribuição da riqueza. Em seguida, implantando mecanismos em nível regional. Isto é o que se faz em parte na Europa. Há a política dos fundos estruturais, que consiste em diferentes programas que permitem transferir recursos da União Européia a países ou regiões desfavorecidas. Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha se beneficiaram em níveis colossais desses fundos. Aliás, isto é o que explica por que nestes países não há debate teórico sobre a Europa: para eles, a Europa é um cofrinho, basta apertarem o botão e as pesetas caem! Portugal ganhou muito, a Grécia também. E é verdade que houve uma considerável transferência interna de riqueza que, aliás, não impediu o aumento das desigualdades. Mas elas teriam aumentado muito mais rapidamente se não tivesse havido estes mecanismos de adequação. Infelizmente, estes fundos estruturais visam apenas atenuar as carências ou os problemas gerados pelo mercado único. Este é seu objetivo: fazer as vezes de enfermaria para os doentes do mercado único e muito brevemente do euro.

Em Portugal foi feito grande investimento em construção de estradas, edifícios etc; mas, por outro lado, foi criada uma regulamentação muito estranha sobre a atividade econômica, estabelecendo quotas de exportação para peixe, vinho, alimentos. Parece que hoje se produz menos peixe em Portugal do que as necessidades da população e o que falta é preciso importar, e se há algo que existe em Portugal é o peixe. Que benefício um país como Portugal recebe em troca disto?
A pesca é um problema muito complicado. Há uma política comum - relativamente inteligente - para a pesca em nível europeu, que parte do princípio de que há uma superexploração geral das espécies, não apenas na Europa, mas no mundo. Por exemplo, o Canadá proibiu a pesca do bacalhau porque não há mais bacalhau. De um modo geral, a quantidade de peixe vem diminuindo em toda parte e a pesca nas águas européias é regulamentada por motivos ecológicos. Isto fez com que todos os países, principalmente a França, restringissem o que denominamos direito de captura. É evidente que para os portugueses e para os espanhóis, para os quais o peixe tem maior importância que para os austríacos, isto soa como provocação. Quanto aos produtos agrícolas, as quotas são iguais. Não há quotas para o vinho e sim para o leite, pois há uma superprodução de leite e, como conseqüência, houve um certo incentivo para diminuir a sua produção. Por isto é uma loucura querer exportar produtos agrícolas para a Europa, que já produz muito mais do que precisa. A política agrícola comum consistiu em garantir os preços independentemente da produção durante um longo período. Então, os agricultores modernizaram-se, se motorizaram como se diz, passaram a utilizar cada vez mais adubos, pesticidas etc., o que fez com que o custo da agricultura aumentasse e o resultado ecológico fosse catastrófico. Estima-se que, em países como a França, a Holanda ou os EUA, para produzir uma caloria alimentar se desperdiçam nove calorias minerais. Um camponês africano tem um rendimento energético superior ao dos agricultores europeus ou norte-americanos. Trata-se, portanto, de uma agricultura completamente maluca.

No Brasil, utiliza-se freqüentemente as relações difíceis com a política agrícola européia para fugir de uma discussão que é sobretudo nacional. Ou seja, não podemos nos fixar em uma política agrícola vocacionada para a exportação. Temos, em um país com 160 milhões de habitantes, uma possibilidade de ampliação do mercado interno que permitiria uma política agrícola muito ativa, que tornaria nosso trigo extremamente competitivo em relação à Austrália, à Nova Zelândia e aos EUA. Trata-se, portanto, de um problema de decisão anterior, não é um problema da globalização.
Acredito que se deva associar este problema ao da segurança alimentar, o que vale dizer que cada povo ou cada conjunto regional deva estar em condições de se alimentar, de assegurar pelo menos a metade de sua necessidade alimentar. A Europa tem uma produção excedente, não há nenhuma razão para que ela importe produtos alimentares. Entretanto, ela foi obrigada a fazer isto depois dos acordos do GATT, em 1993, que impuseram o que chamamos de "acesso ao mercado". Isto quer dizer que todos os Estados, com produção excedente ou não, devem importar 5% de seu consumo; isto é, nós europeus, que produzimos muito trigo, devemos importar 5% de trigo e, em função disso, obviamente, exportamos ainda mais. Tudo isto é absurdo. Sei que a agricultura é o ponto de discórdia entre a Europa e a América Latina, mas querer exportar produtos agrícolas para a Europa significa ir pelo caminho errado. Ao contrário, na América Latina um terço da população não come. O mercado brasileiro para o trigo está aqui, não na Europa.

E o grande tema que hoje se coloca para os acordos de integração é precisamente o déficit social e a exclusão que estas políticas de desenvolvimento não têm conseguido resolver. A integração européia pode resolver a curto ou médio prazo o problema do desemprego e da exclusão social?
O mecanismo da exclusão é inerente, faz parte da própria lógica do neoliberalismo. Ele consiste, simplificando um pouquinho, em aumentar a riqueza dos mais ricos e aumentar a pobreza dos mais pobres, aumentando também o número de pobres. No âmbito das políticas neoliberais, não há nenhuma solução, até porque o capital, para se reproduzir atualmente, pode prescindir de centenas de milhões de pessoas. No plano político, a marginalização, longe de contribuir para fornecer os elementos progressistas, os enfraquece, porque os marginais econômicos não votam mais. Vimos isto na Inglaterra, onde os conservadores se mantiveram no poder por 17 anos sem nunca terem tido mais de 43% dos votos. Claro que isto se deve em grande parte ao sistema eleitoral, mas quando alguém é marginalizado, ele se marginaliza totalmente, inclusive da participação na vida cidadã. Portanto, a marginalização só incomoda os liberais um pouco em sua vida cotidiana, porque cada vez mais - e infelizmente o Brasil é um bom exemplo - a vida torna-se perigosa, sobretudo para os ricos que têm medo de serem agredidos, que suas crianças sejam seqüestradas etc. Vemos este fenômeno desenvolvendo-se em muitos países da América Latina, onde há espaços de ricos protegidos até mesmo militarmente. Começamos a viver isto na Europa também, em um clima de ódio. Hoje, na França, em todos os bairros de periferia das grandes e médias cidades, sobretudo na região parisiense, há jovens, em sua maioria filhos de imigrantes, que têm uma escola precariíssima, não têm trabalho e vivem da delinqüência, da droga. Hoje a polícia já não consegue mais entrar nessas regiões, ou só o faz com a tropa de choque. Para retomar esses lugares, seria preciso, em primeiro lugar, querer. Mas, mesmo querendo, isto será muito difícil porque implicaria um gasto enorme de dinheiro público. Isto passa pela volta do Estado ao serviço público nestas periferias: mais transporte, mais escola, enfim, mais tudo, e isto custará muito caro. Os mecanismos implantados hoje na Europa visam diminuir o Estado quando, ao contrário, é preciso muito mais Estado. No entanto, aceita-se efetivamente mais Estado apenas para a polícia, para as tarefas de repressão.

No limite, poderíamos dizer que, nos EUA, em vinte ou trinta anos, se chegará a uma situação na qual metade da população estará presa, uma boa parte da outra metade a estará vigiando e haverá de 20 a 25% que estará vivendo muito bem, como é o caso aqui, na Argentina etc. É para isto que estaremos fatalmente caminhando se não revertermos completamente este quadro, se não restaurarmos os gastos públicos, o que requer reformas fiscais maiores, o que implica taxar o capital do mesmo modo que se faz com o trabalho e que a especulação seja suprimida. Enfim, há muitas medidas a serem tomadas, mas todas muito contraditórias em relação às lógicas atuais.

Na União Européia há medidas eficazes para gerar empregos e diminuir a exclusão social?
Os mecanismos atuais não permitem a diminuição da exclusão social. Seria necessária uma mudança completa de políticas. Muitos dizem que a Europa é composta por países muito desenvolvidos, com uri potencial tecnológico considerável, e que devemos nos concentrar nos produtos de alto valor agregado, já que somos os únicos, com o Japão e os EUA, capazes de produzi-los. Mas o que acontecerá com as dezenas de milhões de europeus que não são engenheiros, doutores, jornalistas etc.? Nós também temos um grande número de pessoas não qualificadas ou que são portadoras de deficiência; é preciso, evidentemente, desenvolver as atividades tecnológicas, mas desenvolver, ao mesmo tempo, atividades de grande intensidade de mão-de-obra. Temos que refutar a teoria das vantagens comparativas. Não é porque um chinês pode produzir uma camisa quarenta vezes mais barata do que um europeu que vamos deixar de produzir camisas; há pessoas, na Europa, que não podem fazer outra coisa a não ser camisas. Entre as pistas que podem ser vislumbradas, é preciso antes de tudo grandes obras de infra-estrutura: trens, auto-estradas, mas temos principalmente de reconstruir completamente nossas periferias, pensá-las de modo humano. A construção civil e as obras públicas são atividades que geram muitos empregos. É preciso realizá-las, não apenas para criar empregos, mas também para voltar a dar uma coesão à sociedade. Precisamos restabelecer o nível de vida, submeter o conjunto das obras a normas ecológicas. Medidas como estas poderiam contribuir para a diminuição do desemprego e cia exclusão. Acrescentem-se dispositivos de redução do tempo de trabalho, porque é perfeitamente possível trabalharmos menos. Para produzir um carro hoje é preciso quatro vezes menos horas de trabalho do que há quinze anos. Toda uma série de bens e serviços exigem cada vez menos pessoas para fazê-los. No entanto, há uma grande quantidade de atividades que não se diluem e que criam muitos empregos: todos os serviços denominados de interesse coletivo, como a ajuda aos portadores de deficiência, aos idosos, às crianças etc. Há um enorme campo para estas atividades, mas tudo isto implica uma transferência da riqueza. É preciso que esta, em vez de estar sempre a favor da renda, esteja cada vez mais a favor da criação de atividades.

Você acha que a conferência de cúpula de Luxemburgo, realizada em 97, contém orientações que levam a alguma possibilidade de mudança nesta direção?
Ocorreu, em novembro de 1997, em Luxemburgo, uma reunião extraordinária do Conselho Europeu sobre o emprego. Esta reunião havia sido fixada na reunião anterior deste mesmo Conselho, em Amsterdã, a qual havia adotado o Pacto de Estabilidade Orçamentária. Este pacto é o garrote que estrangula as políticas orçamentárias. O governo francês, de Lionel Jospin, que então estava no poder há apenas quinze dias, havia declarado que o Pacto de Estabilidade Orçamentária era um absurdo, mas, não obstante, o firmou. Ele fez a maior besteira de sua vida! Ele deveria ter rompido com este pacto e criado uma crise, mas ele abaixou a cabeça, capitulou. Em troca, conseguiu a realização desta Cúpula sobre o Emprego. Mas ela é uma brincadeira porque quanto mais a moeda é única e o Pacto de Estabilidade Orçamentária fixa objetivos muito precisos em matéria de inflação, de dívida etc., mais as matérias de emprego recebem apenas declarações de intenção, vagas, sem a previsão de sanção alguma.

Se um Estado não respeita as normas do Pacto de Estabilidade Orçamentária, ele será sancionado financeiramente mas, no que toca ao emprego, seu conteúdo não é de modo algum taxativo: "faremos o que for possível e depois compararemos nossos resultados". Na realidade, quando observamos as políticas de emprego que têm o aval dos governos é exatamente o contrário. Isto é, a palavra-chave é a empregabilidade, e as medidas que eles querem ver adotadas são as de diminuição dos encargos sobre os baixos salários, favorecimento da flexibilidade etc. No limite, as políticas européias em matéria de emprego correm o risco de serem ainda mais perigosas que certas políticas nacionais. Há um aspecto positivo, apesar de tudo, que é o fato de se falar da questão do emprego. Entretanto, a questão é saber como se fala em emprego, quais as medidas restritivas a serem implementadas. Pareceria que Jospin e Schrõeder querem acentuar a dimensão da criação de empregos nas políticas européias, mas se os dirigentes social-democratas querem desenvolver esta política eles vão entrar em grande conflito com o Banco Central.

Nos últimos dois ou três anos, diversos movimentos sociais ressurgiram em âmbito europeu: Marcha pelo Emprego, greves que ganharam dimensão transnacional e outros. Ao mesmo tempo, temos transformações políticas: dos quinze países da União Européia, onze estão ou sob um governo social-democrata, ou sob um governo da social-democracia aliada a outros partidos, como o Partido Verde na Alemanha. Isto tende a ampliar as tensões sociais no interior da União Européia porque a união monetária pressupõe um Banco Central independente, políticas cambiais atreladas etc. Em contrapartida, a ebulição social e política visa superar as políticas neoliberais tal como elas vêm se desenhando.0 que você espera da Europa do ponto de vista político e social nos próximos anos?
Eu não posso fazer um prognóstico, mas os acontecimentos que você assinala não pertencem a uma mesma trajetória. Eu diria que a tomada de consciência da dimensão européia dos problemas é relativamente recente na opinião pública de um modo geral e entre os assalariados mais particularmente. As marchas européias contra o desemprego, que começaram em 1994, mas se fortaleceram principalmente quando foram anunciadas em Florença, em 1996, e que são manifestações que pontuam cada uma das reuniões do Conselho Europeu, ou as chamadas eurogreves, como a dos rodoviários e a dos ferroviários, obedecem a uma lógica contrária à desregulamentação. Elas se explicam pela privatização dos grandes serviços públicos - energia, transporte etc. - e não pelo curo. O curo ainda não tem nada a ver com isto, ainda não chegamos lá. Isto tem a ver como outra agenda, de reação às medidas de desregulamentação e privatização preconizadas pela Comissão Européia.

O euro vai criar problemas suplementares de desequilíbrio regional. As regiões ou os países desfavorecidos estarão marginalizados. De um lado, porque não poderão mais beneficiar-se dos enormes créditos públicos que seriam necessários para igualá-los, em termos de infra-estrutura, transportes, educação, criação de universidades, centros tecnológicos etc., o que significa que o investimento será feito onde ele já está. No caso da França, ele está nas regiões da Île de France e Rhône-Alpes, e vai fugir das regiões periféricas como a Bretanha ou o centro da França, que são menos favorecidas pelos transportes. Assim, como não temos na Europa o que existe nos Estados Unidos: um orçamento federal potente que permite a injeção de muito dinheiro; e como também não ternos grande mobilidade por razões culturais e lingüísticas, caminharemos, nos próximos anos, para crises nestas regiões. Porque as regiões ou os países já não poderão contar com mecanismos de ajuste.

Até o Tratado de Maastricht, no quadro do sistema monetário europeu, um país como Portugal, por exemplo, ao passar por desequilíbrios na sua balança de pagamentos - sinal de que sua moeda estava sobrevalorizada - tinha a possibilidade de desvalorizá-la no âmbito de uma negociação com os demais países. Atualmente, esta possibilidade não existe porque só há uma moeda; portanto, a variável do ajuste vai se tornar apenas a força de trabalho; ou seja, isto vai se acrescentar a todos os problemas anteriores.

É um erro termos optado pela moeda única. E muitas pessoas de boa-fé acharam isto muito bom pois dizem: "temos uni mercado único, então precisamos de uma moeda única". Ou seja, se considerava resolvido o problema que justamente deve ser ajustado. Em um quadro em que não há verdadeira convergência econômica; teria sido preciso manter possibilidades de ajuste para alguns países. Estes mecanismos não existem e não sei o que vai ocorrer, mas haverá graves problemas sociais que vão colocar os governos em dificuldades. Os cidadãos os consideram responsáveis e dirão: "eu votei em você, você hoje é ministro, por isso me dirijo a você para que resolva meus problemas". O ministro por sua vez dirá: "é verdade, sou ministro, mas não tenho poder, o poder está com o Banco Central". Aliás, será que ele não tem razão ao dizer isto? É o Banco Central, é a Comissão, a Corte de Justiça; ele não pode fazer nada. Vejo tensões inevitáveis entre o Banco Central e os governos, que se tornarão obrigatoriamente os porta-vozes dos descontentes em seus países. Porque se houver manifestações, greves etc., os governos, por simples preocupação eleitoral, serão um pouco obrigados a retomarem as reivindicações em relação aos poderes comunitários. Criaremos uma tensão no âmbito das instituições, que eu diria inevitável e até mesmo desejável, porque é preciso reorientar a construção européia.

Marco Aurélio Garcia é secretário de Relações Internacionais do PT.

Kjeld Jakobsen é secretário de Relações Internacionais da CUT.

Renato Martins é assessor de relações internacionais da CUT.

Ana Maria Stuart é assessora de relações internacionais do PT.

Tradução: Mila Frati