Política

Homem comprometido com a verdade ele foi um homem de verdade: reto, franco, impoluto

É sempre triste ver o mundo desfalcado de gente boa, como Francisco Iglesias, cuja morte privou o Brasil de um dos seus intelectuais mais dignos e capazes. Quem teve a sorte de conhecê-lo bem pode testemunhar sobre o raro equilíbrio de qualidades que faziam dele alguém tão singular. Iglesias era discreto e participante; reservado, mas loquaz; sereno e apaixonado. Um de seus traços salientes era a franqueza, que o fazia dizer sempre o que pensava, sem omissão nem temor. E tudo o que dizia vinha revestido da clareza e da propriedade de expressão que caracterizam os expositores de qualidade. Não espanta que haja sido tão requisitado para cursos, conselhos, congressos, bancas de concurso, palestras. Ele procurava atender sempre, com uma generosidade e uma disponibilidade que o tornaram dos professores universitários mais admirados e estimados do país. Muita e muita gente lhe deve apoio, estímulo, solidariedade, compreensão em momentos fáceis e em momentos difíceis. Homem comprometido acima de tudo com a verdade, ele foi (sem querer fazer jogo de palavras) um homem de verdade: reto, franco, impoluto, disponível para as boas causas, crítico severo de desmandos, transigências e ignorâncias. Era admirável a sua capacidade de indignação contra os corruptos da política e os administradores ineptos; mas também o seu divertido sarcasmo em relação aos intelectuais canastrões e os burgueses desfrutáveis.

A sua obra reflete muito do que foi. Assim, o grande amor pela terra natal parece presidir a escolha do seu livro notável Política econômica do governo provincial mineiro (1835-89) (1958), exemplar pela probidade da investigação e a novidade das conclusões. Menciono a propósito a maneira pela qual demonstrou que a relativa regularidade da administração dependeu em boa parte dos vice-presidentes em exercício, radicados na província, conhecedores da sua realidade, ao contrário muitas vezes dos presidentes efêmeros, que vinham de fora ao sabor das flutuações políticas. Igualmente importante é a obra sobre aspectos do pensamento conservador, História e ideologia (1971), na qual analisa esse pendor por assim dizer fatal das elites brasileiras, denunciado no começo do século com admirável argúcia por Manuel Bonfim. Grande expositor, docente interessado no desenvolvimento cultural dos estudantes, a bibliografia digamos formativa lhe deve uma excelente Introdução à historiografia econômica (1959), enquanto o leitor menos especializado pode beneficiar-se com as suas claras sínteses, a exemplo de Trajetória política do Brasil (1993).

Ao lado disso, foi sempre importante a sua colaboração em jornais e revistas, marcada pela lucidez e o invariável equilíbrio expositivo, desde os tempos juvenis da revista Edifício. A esse propósito convém não esquecer que foi homem de grande cultura literária, apaixonado pela poesia e a ficção. Lembro o tempo em que éramos jovens (Iglesias, cinco anos mais moço do que eu) e ele dizia de cor poemas e mais poemas de Carlos Drummond de Andrade, poeta que "cultivava" (um dos seus verbos prediletos) com fervorosa admiração.

Mas qualquer notícia sobre ele ficaria incompleta sem uma referência ao teor da sua amizade. Poucos souberam ser amigos como Iglesias, de modo que não espanta ter sido tão estimado em todos os quadrantes por gente de vária natureza. De fato, poucos mereceram tanto apreço que se consagra aos melhores.

Antonio Candido