Economia

Há mais de um ano, um grupo expressivo de economistas do PT vem se reunindo e elaborando um projeto econômico alternativo para o país

Desde a campanha presidencial de 1998, os economistas que assessoravam a candidatura de Lula (e que depois continuaram colaborando com a direção nacional do PT) chegaram a um diagnóstico da economia brasileira e a um projeto alternativo que se tornou consensual, em suas linhas gerais. Quando, em setembro de 1998 - em meio à crise da Rússia -, os capitais voltaram a fugir do Brasil em massa, este projeto alternativo foi divulgado por Lula e apresentado à opinião pública numa entrevista coletiva.

Durante 1999, os mesmos economistas (com a participação de outros, inclusive alguns de outros partidos) continuaram se reunindo regularmente com Lula, José Dirceu e dirigentes nacionais do partido, retomando o referido projeto e o atualizando, com o detalhamento de suas linhas principais. Ao mesmo tempo, a crise econômica, que culminou com o colapso da política cambial e a explosão dos endividamentos externo e público do país, acabou por extravasar ao plano político. A opinião pública se voltou decisivamente contra o governo federal, o que fragiliza sua base de apoio parlamentar e enseja a sucessão de marchas sobre Brasília, que vão compondo um quadro de repúdio geral às políticas econômica e social.

1999 foi o segundo ano em que o crescimento econômico brasileiro foi igual a zero. Além do crescimento anual dos anos 90 ser menor do que o da primeira década perdida, ele será o menor do século e acompanhado de um amplo processo de desestruturação da produção e do emprego nacionais, de desequilíbrio nas contas públicas e desequilíbrio externo.

Tudo isso agravou sobremaneira a exclusão, de que o desemprego em nível inédito constitui a expressão suprema. Tão ou mais grave é o processo historicamente inusitado de desassalariamento e precarização das condições de trabalho, que faz com que, por exemplo, em abril de 1999 tenham contribuído para o INSS apenas 18,3 milhões de assalariados (dados da GFIP - Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social), quando a população economicamente ativa do país alcança 70 milhões.

Nestas condições, a luta política se centra cada vez mais em temas econômicos (e sociais, por suas conseqüências). A maioria da opinião pública passa a suspeitar das virtudes do modelo neoliberal e a resposta do situacionismo e dos interesses que o respaldam é uma só: não há alternativa! A mídia bate incessantemente nesta tecla, enquanto escamoteia as propostas da oposição ou as desfigura. Torna-se por isso importante dar a conhecer o projeto econômico que há mais de um ano vem sendo desenvolvido por um número expressivo de economistas do principal partido de oposição.

O Brasil na economia global
A globalização da economia capitalista mundial suscitou a dominância financeira e uma hierarquia entre as nações com claras e evidentes vantagens para os países do núcleo central, em especial dos EUA. O modelo econômico que daí emergiu revelou-se bem menos dinâmico, certamente como resultado dos domínios dos credores e das políticas deflacionárias, nas quais se combinam juros elevados e contínua restrição aos gastos públicos.

Os países da periferia, que se integram subordinadamente à economia global, adotaram aberturas financeira e comercial indiscriminadas e taxas de juros elevadas, como forma de atrair capitais. O Brasil abriu a economia às importações e aos capitais externos, optou por sobrevalorizar o câmbio e manter os juros elevados. O breve ciclo de expansão do real resultou em elevados estoques de dívidas interna e externa, sendo que sua rolagem trouxe acentuado desmonte do Estado e das políticas públicas (submetidas a sucessivos ajustes fiscais), bem como a deterioriação da situação financeira de parcela expressiva das empresas nacionais. Por outro lado, esse conjunto de políticas favoreceu a desestruturação e desnacionalização da indústria e da agricultura.

Nas atuais condições internacionais (menor crescimento e queda de preços, sobretudo das commodities) e domésticas, a desvalorização do real, por si só, não terá capacidade de reverter esse quadro. Seus impactos sobre a balança comercial têm sido ainda limitados e os principais constrangimentos se mantêm: desequilíbrio das contas públicas e externas e subordinação aos fluxos financeiros internacionais.

O Plano Real, em 1994, aprofundou ainda mais este processo, que foi iniciado por Collor e ampliado por Itamar (sobretudo quando foram ministros da Fazenda Fernando Henrique e Ciro Gomes, quando as tarifas foram violentamente reduzidas). A estabilização rápida e aparentemente indolor dos preços, no segundo semestre daquele ano, se fez às custas da importação maciça de produtos industriais e agrícolas barateados pela eliminação das taxas aduaneiras e pela sobrevalorização do real. A persistência dessa política até janeiro de 99 produziu inflação mínima, mas à custa de enorme importação de capitais externos e exportação de milhões de empregos industriais. O Brasil tornou-se de fato dependente da entrada contínua de crescente quantidade de capitais, a um custo cada vez maior, em termos de juros sobre juros, já que o repagamento das dívidas vencidas e o financiamento das remessas de lucros se fez tomando novos empréstimos.

O resultado é que, desde que fomos alcançados pela crise financeira internacional, vinda da Ásia, há dois anos, a economia brasileira está impedida de crescer por “estrangulamento externo”. Convém notar que a crise externa apenas agravou este estrangulamento, pois ele é intrínseco ao modelo adotado. O governo é obrigado a impedir que a economia cresça conforme seu potencial porque a abertura ao exterior faria com que o valor das importações, somado ao serviço da dívida externa, ultrapasse o dos capitais externos que “voluntariamente” vêm ao país. A elevação da taxa de juros (o Brasil pratica as maiores taxas de juros do mundo) serve ao mesmo tempo para cortar o crescimento da economia e atrair mais capitais. Este “remédio” mata o paciente: as dívidas pública interna e externa disparam, o desemprego aumenta, o mercado interno se contrai, empresas médias e pequenas vão à falência e as grandes se fundem, em geral com multinacionais.

Atraídos pelos juros elevados e dadas a guerra fiscal e ausência de políticas setoriais nacionais, os capitais que ingressaram como IDE [Investimento Direto Externo] – que alcançaram 44 bilhões de dólares entre 1997 e 1998 – vieram sob a égide de um processo de fusões e aquisições voltado à compra de empresas nacionais privadas e públicas, vendidas a “preço de banana”. Estes capitais, ao contrário do passado, não expandiram a capacidade produtiva, não favorecem a elevação da taxa de investimento e tampouco se dirigem a setores previamente escolhidos em função dos interesses estratégicos nacionais. Eles causaram inusitada desestruturação das cadeias produtivas, ao integrar parcelas do parque industrial brasileiro às suas cadeias multinacionais. Cerca de 80% destes capitais dirigiram-se ao setor de serviços – que não gera produtos exportáveis – e suas remessas de lucros irão agravar o balanço de pagamentos a partir de agora. Estudos da Unctad mostram que cada 10 bilhões de dólares investidos em serviços devem gerar remessas anuais de lucros de cerca de 1 bilhão de dólares todos os anos.

Por isso torna-se necessário um novo projeto estratégico nacional, com clara definição de prioridades setoriais e de uma política comercial ofensiva, e a reversão da indiscriminada liberalização dos fluxos de bens e serviços. As políticas setoriais deverão estar articuladas nacionalmente, de maneira a romper com a guerra fiscal e assegurar os objetivos do projeto de desenvolvimento do país, dos estados e regiões. As políticas industrial e de comércio exterior deverão redefinir a forma de articulação da economia doméstica com o exterior, revertendo o processo de desnacionalização, permitindo a internalização de setores produtivos com maior desenvolvimento tecnológico e urna inserção mais dinâmica no comércio internacional.

Retomar a autonomia econômica e política

A abertura irrestrita aos capitais externos subordina a política econômica aos interesses e preconceitos dos bancos e fundos transnacionais de investimento, que gerem o capital globalizado. Para escapar da armadilha do endividamento em progressão geométrica e do conseqüente estrangulamento externo, é essencial que a movimentação dos capitais sobre nossas fronteiras seja controlada pela autoridade monetária. O que significa que os fluxos de valores para fora e para dentro do país serão sujeitos a condições qualitativas - remessas especulativas ou sem razão explícita não serão permitidas - e quantitativas.

Alega-se que a interligação eletrônica dos operadores financeiros em todos os países impede que este controle possa ser feito com eficácia. Mas, os que assim argumentam esquecem que a movimentação internacional de recursos exige a conversão dos mesmos da moeda de origem à de destino. O controle desta movimentação torna-se possível, desde que a autoridade monetária seja a única compradora das divisas estrangeiras que entram no país e portanto a única vendedora de divisas aos que querem remeter valores ao exterior. É a chamada "centralização do câmbio", hoje absolutamente indispensável para restabelecer o equilíbrio de nossas contas externas e assim abrir o estrangulamento externo.

Céticos continuarão objetando que a centralização cambial nunca será completa, porque muitas divisas entrarão e sairão do país à revelia da autoridade monetária. Ora, este é o mesmo argumento contra qualquer aumento de tributos, pois ele suscita maior sonegação dos mesmos. É claro que será preciso aperfeiçoar o aparelho fiscal, tanto para impedir a sonegação de impostos como para coibir o contrabando de mercadorias e de divisas. 0 fundamental é que as exportações e importações legais de bens e serviços estarão submetidas à centralização cambial e que as divisas assim ganhas serão utilizadas de acordo com um orçamento cambial que priorizará a retomada do desenvolvimento.

A centralização cambial e a renegociação da dívida externa libertarão a taxa de juros dos condicionantes externos. Desta forma, tornar-se-á novamente possível reduzir efetivamente os juros, que continuam elevados, porque no atual quadro de abertura financeira, a tentativa de reduzi-los abaixo do presente patamar pode levar à saída dos capitais do país e à especulação cambial.

A política monetária voltaria, então, a ser usada para alcançar urna meta real de crescimento econômico, por meio do aumento da oferta de crédito e da baixa dos juros. Urna política monetária mais flexível, com a redução dos depósitos compulsórios, vai liberar oxigênio para uma economia que acumulou capacidade ociosa e portanto reúne todas as condições para voltar a crescer. Este crescimento econômico, acompanhado por políticas industriais e agrícolas, deve suscitar forte aumento da oferta de bens e serviços, capaz de compensar as pressões inflacionárias que a queda do desemprego pode vir a gerar.

A renegociação das dívidas externas

Estas medidas terão de ser complementadas por uma renegociação dos vencimentos das dívidas externas. Esta renegociação visa livrar o país da necessidade de tomar empréstimos de curto prazo para pagar outros que estão vencendo, com condições de juros e repagamento que agravam o estrangulamento externo. O país precisa fazer unia projeção realista de suas receitas futuras de divisas e dos gastos externos indispensáveis aos objetivos prioritários de crescimento com redistribuição da renda.Tal projeção proporcionará os valores de que o Brasil poderá dispor, nos próximos anos, para servir suas dívidas externas. Trata-se de convencer os credores externos a aceitar uma reestruturação das dívidas que torne seu serviço (juros + amortização) compatível com o crescimento vigoroso da economia.

É claro que o Brasil não pode contar com a anuência dos credores assim como a política atual tampouco pode assegurar que os fluxos "voluntários"1de capitais externos venham a cobrir todo ano o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos. O que é proposto é que as dívidas externas sejam pagas com o excedente gerado pelo crescimento e não - como vem acontecendo nos últimos cinco anos - com novas dívidas.

A dívida externa compõe-se de muitas dívidas, assumidas por diversos devedores -governos, empresas nacionais e estrangeiras, indivíduos - com diferentes credores: bancos e fundos privados, detentores de títulos, bancos públicos multilaterais e nacionais etc. A renegociação deverá ser feita com cada um dos credores e não, como nos anos 80, com um cartel de credores, mesmo porque o Brasil possui reservas cambiais e tem servido pontualmente suas dívidas. O mais provável é que esta renegociação acabe sendo arbitrada pelo Fundo Monetário Internacional, cuja postura vai depender das grandes potências, mas também do posicionamento dos grandes devedores, alguns dos quais poderão estar promovendo igualmente a renegociação de suas dívidas. Após a moratória do Equador, até mesmo o FMI está admitindo a renegociação das dívidas externas. Falta coragem e determinação para fazê-la e de acordo com os nossos termos.

Um dos resultados possíveis da renegociação poderá ser um compromisso do Brasil estimular a exportação. Tal compromisso poderia até reforçar a retomada do desenvolvimento, pois a reabsorção do desemprego seria facilitada por uma expansão das vendas ao exterior. A estratégia de crescimento da economia deveria contemplar um aumento vigoroso dos investimentos e da demanda efetiva, tanto interna quanto externa. Se o esforço exportador tiver credibilidade, ele será um argumento poderoso para que os credores externos aceitem ampliar os prazos de vencimento de seus créditos.

A hipótese de reestruturação unilateral das dívidas cujos credores se mostrem intransigentes não pode ser excluída. A moratória não é desejável, pois não se visa o isolamento do país da economia global. Mas, tampouco pode ser considerada impossível, pois isso colocaria o país inteiramente à mercê dos credores adversos ao projeto. O recurso à moratória é legítimo. O Brasil, assim como os Estados Unidos e outros países, já lançou mão dele no passado e ele não implica qualquer ruptura de relações comerciais e políticas.

A redistribuição da renda

A redistribuição da renda é uma reivindicação histórica da esquerda, particularmente do PT. Na atual conjuntura, em que grande parte da capacidade produtiva do país está em ociosidade forçada, a redistribuição da renda se casa harmoniosamente com a retomada do desenvolvimento. Esta precisa de uma expansão da demanda efetiva e a redistribuição da renda combina a satisfação deste requisito com o imperativo de justiça social.

Neste sentido, incorporamos um certo número de propostas que o partido já vem defendendo há tempo. Trata-se da redistribuição tanto da renda como do patrimônio produtivo. Sob o primeiro tópico, além da necessidade urgente de recompor o poder de compra do salário mínimo, a proposta principal é a garantia de renda-mínima. Um dos programas mais bem sucedidos de combate à pobreza, já aplicado em nível municipal, é a bolsa-escola, que implica o subvenção de famílias pobres para que seus filhos possam freqüentar a escola pública e não precisem trabalhar. A proposta é estender este programa às 10 milhões de crianças carentes de todo o país.

Outra proposta, sobre a qual ainda não há completo consenso, é iniciar a implantação de uma renda cidadã - o pagamento de uma soma mensal a todos os cidadãos do país, independentemente de serem pobres ou não. A grande vantagem desta proposta é que ela evita a necessidade de checar o tempo todo os beneficiários para verificar se eles continuam dentro das categorias de pobreza que fazem jus à suplementação da renda. Tal verificação exige um custoso aparato fiscalizador e enseja comportamentos anti-sociais por parte dos que exercem e dos que sofrem a fiscalização. A renda cidadã beneficia amplas categorias de cidadãos, e as pessoas que a receberiam sem necessitar a devolveriam sob a forma de imposto de renda progressivo. Ela poderia beneficiar inicialmente mulheres em idade reprodutiva (dos 20 aos 45 anos), pois muitas são chefes de família e pobres.

Uma das formas de redistribuir patrintônio produtivo é a reforma agrária. Somos um dos poucos países do mundo que ainda não fez reforma agrária e acumulamos sérios problemas sociais no campo. Propomos o assentamento de um trilhão de famílias em terras hoje subutilizadas, ao longo dos próximos quatro anos.

Os assentados pela reforma receberiam terra e um capital inicial e desta forma seriam reinseridos à produção social, podendo amortizar sua dívida com o valor gerado pelo seu trabalho. Dadas as dificuldades enfrentadas pela agricultura familiar no Brasil, torna-se indispensável uma política agrícola de apoio à pequena exploração e à formação de cooperativas de várias modalidades para reunir recursos, obter ganhos de escala e ampliar o número de postos de trabalho. As políticas agrícolas e agrária deverão ter um múltiplo papel, articulando a indispensável reativação da agricultura com a necessária distribuição de renda, da propriedade e do poder no campo, eliminando, assim, o predomínio das oligarquias regionais e "parlamentares" e a pressão exercida pelo fluxo migratório sobre o mercado de trabalho dos grandes centros urbanos.

Soluções cooperativas também estão sendo aplicadas cada vez mais nas cidades para enfrentar a exclusão social: empresas em vias de falir são entregues a seus trabalhadores, que passam a operá-las em autogestão, preservando assim dezenas de milhares de postos de trabalho; a Caritas, desde a década passada, e incubadoras de cooperativas populares em universidades, nos últimos anos, estão promovendo a formação de cooperativas de trabalho com desempregados ou trabalhadores marginalizados; centrais sindicais e sindicatos também se empenham cada vez mais na organização de desempregados e de trabalhadores terciarizados em cooperativas.

No mesmo sentido estão atuando governos municipais e estaduais, sobretudo por intermédio de bancos do povo, que são instituições voltadas ao financiamento dos microprodutores mais pobres. Propomos reforçar, ampliar e aprofundar todos estes programas nina ofensiva nacional, capitaneada pela União, em parceria com governos regionais e locais, igrejas, universidades, sindicatos etc., de maneira a favorecer a organização coletiva e/ou cooperativa e auxiliar no combate ao desemprego e à exclusão social. Esta ofensiva, que deve incluir o apoio e ampliação da agricultura familiar e das pequenas e médias empresas urbanas, exigirá a reformulação do sistema financeiro.

A reforma financeira

A intermediação financeira no Brasil tornou-se um oligopólio gigantesco a serviço de seus donos e das grandes empresas, sobretudo as transnacionais. Cobrando juros imensos, os bancos agravam a inadimplência, pois qualquer atraso no pagamento de débito em cheque especial ou cartão de crédito ocasiona o inchamento veloz do mesmo até se tornar inapagável. A inadimplência assim ampliada torna-se pretexto para a manutenção dos juros em altura celestial.

A venda de grandes bancos varejistas a transnacionais foi justificada como necessária para tornar o sistema financeiro mais competitivo. Mas, na realidade, as distorções foram até agravadas: os bancos transnacionais que trabalham com poupança nacional preferem financiar transnacionais e rapidamente aderiram à prática usurária das congêneres nacionais. O setor produtivo nacional, formado pelas empresas médias e pequenas, ficou ainda mais carente de financiamento por causa da privatização de bancos estaduais e da mudança de orientação do Banco do Brasil, que passou a priorizar sua própria lucratividade à custa de suas funções sociais.

O projeto de retomada do desenvolvimento com redistribuição da renda e da riqueza exigirá ampla reforma do sistema financeiro, de maneira a reconstituir as bases de financiamento domésticas, inclusive com a utilização de instituições públicas e a eliminação da excessiva dependência do financiamento externo.

Será preciso expandir a oferta de crédito como um todo e direcionar o crédito suplementar aos setores que mais o necessitam. Para tanto, propõe-se: 1. induzir os bancos privados a conceder empréstimos a pequenas e médias empresas; 2. fazer com que o Banco do Brasil volte a ser o grande banco de desenvolvimento, sobretudo agrícola, que já foi; 3. orientar a Caixa Econômica Federal a financiar a habitação popular; o BNDES, o Banco do Nordeste e o Banco da Amazônia a somar seus financiamentos à ofensiva contra o desemprego e a exclusão social, de modo a viabilizar a acumulação de capital nos setores com mais potencial de absorver força de trabalho e oferecer bens e serviços aos novos consumidores, beneficiados pela redistribuição da renda.

Além disso, é preciso quebrar o monopólio bancário da intermediação financeira, permitindo que os setores populares criem e desenvolvam seu próprio sistema financeiro sob a forma das tradicionais cooperativas de crédito (hoje reduzidas a clubes de empregados da mesma empresa), ou dos modernos bancos do povo, aos quais devese permitir que recebam depósitos. À medida que a redistribuição de renda e de riqueza incremente os rendimentos dos setores populares, a poupança dos mesmos deverá servir para financiar a expansão da economia solidária. Hoje, estes rendimentos são necessariamente captados pelos bancos, que os canalizam ao financiamento de grandes empresas ou do déficit público, num processo de concentração da renda.

A expansão do crédito deve possibilitar a paulatina redução dos juros a níveis civilizados, inclusive pela redução forçada do spread (diferença entre os juros cobrados pelos bancos de seus devedores e os pagos por eles aos depositantes). A centralização do câmbio permitirá desligar a taxa interna de juros do risco-país incorporado aos juros pelos prestamistas externos. Estes não poderão fugir do país, pois teriam de converter seus reais em dólares a taxas proibitivas de câmbio negro.

Convém observar finalmente que a redução da taxa de juros será vital também para reduzir o déficit público, pois cortará grande parte dos encargos financeiros da União. Isso será indispensável para permitir a ampliação da poupança e do investimento públicos, sobretudo em infra-estrutura, saúde e educação. Neste sentido, a reforma financeira será equivalente a uma formidável redistribuição cia renda: algo como 6% ou mais do PIB deixarão de ser pagos como juros aos credores do Estado, liberando recursos para serem invertidos em saneamento básico, habitação popular e serviços públicos de saúde e de educação, em benefício das camadas que não têm dinheiro para adquirir estes serviços no setor privado.

Reforma tributária

A reforma tributária é parte integrante do projeto e sobre ela já há considerável acúmulo no partido. Seus principais objetivos são, de um lado, permitir que o Estado volte a orientar o desenvolvimento da economia, recuperando a capacidade de gasto público em setores estratégicos da infra-estrutura e nas políticas sociais e, do outro, redistribuir o ônus tributário de modo que "quem pode mais paga mais".

Será necessário ampliar a participação do Estado no produto social, inclusive para se poder financiar programas de renda mínima e renda cidadã. Com a presente estrutura tributária, grande parte de qualquer aumento da receita fiscal seria retirado, mediante impostos diretos, das camadas a serem beneficiadas por tais programas. Portanto, a proposta é que haja um grande aumento de tributos sobre propriedades grandes e rendas elevadas, sobretudo de pessoas físicas, já que as jurídicas têm forte propensão a repassar seus encargos tributários aos preços que cobram.

Uma parte integrante da reforma tributária deve ser a desoneração da folha de pagamentos das empresas das contribuições trabalhistas, em seu sentido mais amplo, para interromper o desincentivo fiscal que hoje afeta o emprego. Estas contribuições trabalhistas não podem, é óbvio, ser eliminadas (como querem entidades patronais), mas devem ter por base o faturamento total da empresa ou algo semelhante, de modo que o encargo trabalhista seja repartido de forma equânime entre empresas intensivas em mão-de-obra e intensivas em capital.

A elevadíssima concentração da renda e da riqueza no Brasil exige medidas de maior impacto, que venham a sacudir as estruturas desta sociedade tão desigual. Neste sentido, propomos a criação de um fundo de combate à pobreza e ao desemprego, a ser criado não com migalhas de orçamentos, mas a partir de uma receita obtida por um imposto de 10% sobre o patrimônio de um trilhão de reais, que corresponde à riqueza do 10% mais rico das famílias do país. Um total de 100 bilhões de reais deverá ser pago em cinco anos, para ser utilizado em programas de investimentos e geração de trabalho e renda e em programas emergenciais de socorro a famílias em extrema dificuldade. O rendimento deste fundo poderia financiar a paulatina instauração da renda-cidadã e constituir a base de capital de iniciativas como o banco do povo.

Como parte da reforma tributária, propõe-se reforçar a receita fiscal das áreas mais pobres do país. A nova estrutura tributária federal deveria ampliar a transferência de recursos fiscais monetários aos municípios destas áreas, de modo que merenda escolar, cestas básicas e outras formas de assistência possam ser realizadas com produção local, o que conferirá ao processo um efeito multiplicador de demanda e emprego.

A reforma tributária deverá contemplar o fortalecimento dos municípios como parte do esforço de descentralização e democratização da administração pública. No mesmo sentido, propõe-se generalizar a todos os níveis de governo e a todo o país a prática do orçamento participativo. As experiências em curso já bastam para mostrar que o orçamento participativo reforça as associações comunitárias e robustece a ação democrática no plano de bairro e vizinhança. O orçamento participativo tem, além disso, o condão de aperfeiçoar a administração pública mediante uma prática contínua de negociação de prioridades e prestações de contas das autoridades às comunidades.

Conclusão

O projeto anteriormente esboçado está longe de ser completo. Faltam aspectos importantes, como controle de preços e salários para neutralizar pressões inflacionárias; políticas setoriais ou por cadeia produtiva de fomento da produção e sobretudo da substituição de importações; política de comércio exterior para proteger os setores da economia nacional que interessa desenvolver e para contribuir ao reequilíbrio do balanço de pagamentos em conta corrente etc.

Mas, estas lacunas não impedem a percepção de que um projeto econômico alternativo ao neoliberal é perfeitamente factível e já está em fase adiantada de elaboração. Este projeto resulta em parte do grande debate internacional desencadeado a partir da crescente consciência dos resultados deletérios da globalização financeira e que hoje envolve o Attac e, até mesmo, o FMT, o Banco Mundial, a Unctad [Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento] e outras entidades, e que gira ao redor do controle (nacional ou multilateral) da movimentação dos capitais especulativos. Ele resulta também da evolução do debate e da prática social - pública e privada - em nosso país, com destaque para a experiência dos governos petistas de estados e municípios.

Guido Mantega é economista, professor na Fundação Getúlio Vargas-SP

Jorge Mattoso é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Cesit da Unicamp

Paul Singer é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP

Reinaldo GonçaIves é professor de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro