Internacional

A nova Constituição recebeu esmagadora aprovação popular. Nas ruas de Caracas fala-se em revolução

As águas de dezembro ainda fazem suas vítimas na Venezuela. As estatísticas oficiais, imprecisas, falam de 30 mil mortos durante as borrascas que inundaram o país. O presidente Hugo Chávez, de uniforme militar, comandou pessoalmente muitas das operações de resgate. Uma noite, abatido pela tragédia, declarou à imprensa: "Deus perdoa sempre, os homens nem sempre, a natureza jamais." Suas palavras revelavam apenas parte da verdade. As chuvas escapam da vontade humana e continuam sem ter na ciência um inimigo à altura, mas a repartição dos dramas que provocam costuma responder a paradigmas absolutamente classistas.

As tempestades começaram no dia 15. As urnas acolhiam os votos do referendo sobre a nova Constituição quando os céus anunciaram os primeiros sinais da desgraça que viria. Até então havia alegria nas ruas, principalmente nos bairros pobres das grandes cidades. Mais de 70% dos eleitores tinham votado favoravelmente a um projeto de leis fundamentais que fulminava a ordem jurídica anterior. Uma pesquisa do diário El Universal amostrou a radiografia do sufrágio. O "não" à Carta Magna proposta pelos partidários de Chávez obteve maioria na classe média (56%) e na classe alta (82%). O "sim", ao contrário, foi avassalador na classe baixa (84%). Os pobres da Venezuela apresentaram uma fatura no valor dos direitos que lhes foram surrupiados nas últimas décadas. Mas a reviravolta política não veio a tempo de evitar a matança natural.

As cenas em Caracas foram o retrato do que se passou por outras regiões desde que o aguaceiro começara. Milhares de barracos de lata, cartão e madeira despencaram dos morros que circundam a cidade. Os moradores do Country Club e outras áreas ricas sofreram bem menos. Seu pânico maior foi o sentimento de cerco: aquela gente miserável que há um ano enxotava os políticos da oligarquia agora desabava com sua dor nas cercanias dos quarteirões arborizados e pontilhados por casas confortáveis. Os destroços da Venezuela saudita estavam no chão.

Durante os últimos quarenta anos o modelo de desenvolvimento econômico esteve atado à indústria do petróleo. O Estado funcionava como uma correia de transmissão entre a arrecadação fiscal dessa atividade e o empresariado. O apogeu dessa mecânica ocorreu entre 1973 e 1983, quando o preço do barril de óleo cru se quadruplicou. Mas essa vantagem conjuntural foi desperdiçada pelos empresários venezuelanos, que não aproveitaram a oportunidade para industrializar o país. Os abundantes recursos provenientes da exploração petrolífera foram utilizados para desenvolver uma fabulosa rede de corrupção e fundar uma economia essencialmente mercantil. Com quase 50% da renda estatal vinculada ao petróleo, a força da moeda local - com lastro nas reservas em dólares - fez da venda de mercadorias importadas a atividade com maior rentabilidade. As estatísticas oferecem números variados, mas entre 60% e 80% de tudo o que os venezuelanos comem ou vestem, por exemplo, vêm de fora.

Quando os preços do petróleo despencaram, a partir dos anos 80, a queda de seu aporte ao fisco venezuelano levou o modelo à bancarrota. Apenas na última década sua participação diminuiu de 18,3% do PIB, em 1991, para 3,9% em 1998. O Estado buscou compensar essas perdas com o aumento dos impostos, a desvalorização cambial e o endividamento público, além da emissão de moeda. A inflação deu um pinote de 7,4% anuais em 78 para 103% em 96, com uma média de 30% nesse intervalo. O serviço da dívida (pagamento de juros) passou a representar 30% do orçamento nacional. As elevadas taxas oferecidas para atrair investidores que financiassem o buraco nas contas estatais acabaram por estrangular de vez a economia. O PIB per capita, descontada a inflação, caiu quase 19% entre 78 e 98.

Outros dados são ainda mais expressivos da deterioriação social. Nos últimos 20 anos o salário real perdeu 48% do seu valor, provocando uma derrubada de 25% no consumo per capita. O nível de desemprego aberto subiu, no mesmo período, de 4,3% para 11,3%. O setor informal, que representava 31,6% da mão-de-obra contratada, pulou para 49,5%. A taxa de desocupação alcançou 22% dos jovens com menos de 24% e quase 26% das mulheres.

A ruína, porém, não foi para todos. O setor privado, historicamente beneficiado com a transferência da renda petroleira, passou a ser aquinhoado também com os juros pagos para os compradores de títulos públicos. Mais de US$ 30 bilhões. Mas os governos que antecederam Chávez apontaram sua artilharia financeira para outros bolsos. Os seguidos acordos do país com o Fundo Monetário Internacional estiveram orientados por medidas que garantissem a solvência do Estado diante dos credores. O reajuste das tarifas públicas, o corte das verbas sociais e a privatização de empresas estatais foram as armas mais demolidoras de um arsenal de empobrecimento.

No final dos anos 80, a dualidade nacional era uma ferida exposta. Dez por cento de uma população de 22 milhões de habitantes estavam incluídos na pátria do petróleo e das finanças. O seguimento de ponta dessa turma eram as empresas multinacionais, os grandes comerciantes, os banqueiros e os políticos a seu serviço. Os poucos empresários do setor não petroleiro sentavam à mesa na qualidade de parentes modestos, a quem os reis da festa não davam muita bola. Uma porção da classe média tinha entrada para o baile, por meio de empregos na tecnocracia pública e na PDVSA (Petróleo da Venezuela S.A., a Petrobrás venezuelana), além do exercício de profissões liberais clássicas. A principal fração da diminuta classe operária do país, formada pelos trabalhadores do petróleo, era convidada a dar um pulo na cozinha para aproveitar os restos da comilança.

A outra nação era um enorme acampamento. A capital e todas as principais cidades tinham sido transformadas em camelódromos a céu aberto. O comércio informal era o porto do desespero para uma multidão de desempregados, aposentados com pensões em atraso, jovens sem escola e mulheres com filho no colo. O encurtamento do dinheiro clientelista, aplicado nas províncias para manter os currais eletorais, tirava dessa galera miserável e sem perspectiva de trabalho até mesmo as migalhas que remuneravam o conformismo com sua exclusão do enclave petroleiro. O fluxo migratório para Caracas foi acelerado: as pessoas buscavam alguma tábua de salvação.

Se a soberba da pátria petroleira fossem menor, talvez seus dirigentes tivessem percebido que as pernas de seu sistema político estavam sendo serradas. Desde 23 de janeiro de 58, quando uma sublevação cívico-militar derrubou a ditadura do general Marcos Pérez Jimenez (1952-58), o país vivia sob as regras de uma democracia institucional. Logo nos primeiros meses, no entanto, o partido comunista foi afastado da Junta de Governo que havia assumido a direção do Estado. AS demais agremiações participantes – Ação Democrática (AD, social-democrata), Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei, social-cristã) e a União Republicana Democrática (URD, nacionalista) – assinaram o Pacto de Punto Fijo, cuja principal iniciativa foi estabelecer novas normas políticas e um programa mínimo de cooperação entre os partidos.

Essa resposta contava com o apoio dos setores militares mais conservadores, dos principais círculos empresariais e dos aliados norte-americanos. O objetivo era deter a mobilização social deflagrada nos últimos meses do governo militar e impedir que a oposição comunista assumisse um papel destacado no novo regime. Mas a colaboração entre os três partidos não completaria três anos. Quando o presidente da República eleito em 1958, Rômulo Betancourt (AD), apoiou o bloqueio comercial a Cuba, a URD rompeu com o acordo de convivência. O cantinho estava aberto para o domínio do bipartidarisnto, marcado pela alternância de governo entre AD e Copei durante quatro décadas.

As águas de dezembro ainda fazem suas vítimas na Venezuela. As estatísticas oficiais, imprecisas, falam de 30 mil mortos durante as borrascas que inundaram o país. O presidente Hugo Chávez, de uniforme militar, comandou pessoalmente muitas das operações de resgate. Uma noite, abatido pela tragédia, declarou à imprensa: "Deus perdoa sempre, os homens nem sempre, a natureza jamais." Suas palavras revelavam apenas parte da verdade. As chuvas escapam da vontade humana e continuam sem ter na ciência um inimigo à altura, mas a repartição dos dramas que provocam costuma responder a paradigmas absolutamente classistas.

As tempestades começaram no dia 15. As urnas acolhiam os votos do referendo sobre a nova Constituição quando os céus anunciaram os primeiros sinais da desgraça que viria. Até então havia alegria nas ruas, principalmente nos bairros pobres das grandes cidades. Mais de 70% dos eleitores tinham votado favoravelmente a um projeto de leis fundamentais que fulminava a ordem jurídica anterior. Uma pesquisa do diário El Universal amostrou a radiografia do sufrágio. O "não" à Carta Magna proposta pelos partidários de Chávez obteve maioria na classe média (56%) e na classe alta (82%). O "sim", ao contrário, foi avassalador na classe baixa (84%). Os pobres da Venezuela apresentaram uma fatura no valor dos direitos que lhes foram surrupiados nas últimas décadas. Mas a reviravolta política não veio a tempo de evitar a matança natural.

As cenas em Caracas foram o retrato do que se passou por outras regiões desde que o aguaceiro começara. Milhares de barracos de lata, cartão e madeira despencaram dos morros que circundam a cidade. Os moradores do Country Club e outras áreas ricas sofreram bem menos. Seu pânico maior foi o sentimento de cerco: aquela gente miserável que há um ano enxotava os políticos da oligarquia agora desabava com sua dor nas cercanias dos quarteirões arborizados e pontilhados por casas confortáveis. Os destroços da Venezuela saudita estavam no chão.

Durante os últimos quarenta anos o modelo de desenvolvimento econômico esteve atado à indústria do petróleo. O Estado funcionava como uma correia de transmissão entre a arrecadação fiscal dessa atividade e o empresariado. O apogeu dessa mecânica ocorreu entre 1973 e 1983, quando o preço do barril de óleo cru se quadruplicou. Mas essa vantagem conjuntural foi desperdiçada pelos empresários venezuelanos, que não aproveitaram a oportunidade para industrializar o país. Os abundantes recursos provenientes da exploração petrolífera foram utilizados para desenvolver uma fabulosa rede de corrupção e fundar uma economia essencialmente mercantil. Com quase 50% da renda estatal vinculada ao petróleo, a força da moeda local - com lastro nas reservas em dólares - fez da venda de mercadorias importadas a atividade com maior rentabilidade. As estatísticas oferecem números variados, mas entre 60% e 80% de tudo o que os venezuelanos comem ou vestem, por exemplo, vêm de fora.

Quando os preços do petróleo despencaram, a partir dos anos 80, a queda de seu aporte ao fisco venezuelano levou o modelo à bancarrota. Apenas na última década sua participação diminuiu de 18,3% do PIB, em 1991, para 3,9% em 1998. O Estado buscou compensar essas perdas com o aumento dos impostos, a desvalorização cambial e o endividamento público, além da emissão de moeda. A inflação deu um pinote de 7,4% anuais em 78 para 103% em 96, com uma média de 30% nesse intervalo. O serviço da dívida (pagamento de juros) passou a representar 30% do orçamento nacional. As elevadas taxas oferecidas para atrair investidores que financiassem o buraco nas contas estatais acabaram por estrangular de vez a economia. O PIB per capita, descontada a inflação, caiu quase 19% entre 78 e 98.

Outros dados são ainda mais expressivos da deterioriação social. Nos últimos 20 anos o salário real perdeu 48% do seu valor, provocando uma derrubada de 25% no consumo per capita. O nível de desemprego aberto subiu, no mesmo período, de 4,3% para 11,3%. O setor informal, que representava 31,6% da mão-de-obra contratada, pulou para 49,5%. A taxa de desocupação alcançou 22% dos jovens com menos de 24% e quase 26% das mulheres.

A ruína, porém, não foi para todos. O setor privado, historicamente beneficiado com a transferência da renda petroleira, passou a ser aquinhoado também com os juros pagos para os compradores de títulos públicos. Mais de US$ 30 bilhões. Mas os governos que antecederam Chávez apontaram sua artilharia financeira para outros bolsos. Os seguidos acordos do país com o Fundo Monetário Internacional estiveram orientados por medidas que garantissem a solvência do Estado diante dos credores. O reajuste das tarifas públicas, o corte das verbas sociais e a privatização de empresas estatais foram as armas mais demolidoras de um arsenal de empobrecimento.

No final dos anos 80, a dualidade nacional era uma ferida exposta. Dez por cento de uma população de 22 milhões de habitantes estavam incluídos na pátria do petróleo e das finanças. O seguimento de ponta dessa turma eram as empresas multinacionais, os grandes comerciantes, os banqueiros e os políticos a seu serviço. Os poucos empresários do setor não petroleiro sentavam à mesa na qualidade de parentes modestos, a quem os reis da festa não davam muita bola. Uma porção da classe média tinha entrada para o baile, por meio de empregos na tecnocracia pública e na PDVSA (Petróleo da Venezuela S.A., a Petrobrás venezuelana), além do exercício de profissões liberais clássicas. A principal fração da diminuta classe operária do país, formada pelos trabalhadores do petróleo, era convidada a dar um pulo na cozinha para aproveitar os restos da comilança.

A outra nação era um enorme acampamento. A capital e todas as principais cidades tinham sido transformadas em camelódromos a céu aberto. O comércio informal era o porto do desespero para uma multidão de desempregados, aposentados com pensões em atraso, jovens sem escola e mulheres com filho no colo. O encurtamento do dinheiro clientelista, aplicado nas províncias para manter os currais eletorais, tirava dessa galera miserável e sem perspectiva de trabalho até mesmo as migalhas que remuneravam o conformismo com sua exclusão do enclave petroleiro. O fluxo migratório para Caracas foi acelerado: as pessoas buscavam alguma tábua de salvação.

Se a soberba da pátria petroleira fossem menor, talvez seus dirigentes tivessem percebido que as pernas de seu sistema político estavam sendo serradas. Desde 23 de janeiro de 58, quando uma sublevação cívico-militar derrubou a ditadura do general Marcos Pérez Jimenez (1952-58), o país vivia sob as regras de uma democracia institucional. Logo nos primeiros meses, no entanto, o partido comunista foi afastado da Junta de Governo que havia assumido a direção do Estado. AS demais agremiações participantes – Ação Democrática (AD, social-democrata), Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei, social-cristã) e a União Republicana Democrática (URD, nacionalista) – assinaram o Pacto de Punto Fijo, cuja principal iniciativa foi estabelecer novas normas políticas e um programa mínimo de cooperação entre os partidos.

Essa resposta contava com o apoio dos setores militares mais conservadores, dos principais círculos empresariais e dos aliados norte-americanos. O objetivo era deter a mobilização social deflagrada nos últimos meses do governo militar e impedir que a oposição comunista assumisse um papel destacado no novo regime. Mas a colaboração entre os três partidos não completaria três anos. Quando o presidente da República eleito em 1958, Rômulo Betancourt (AD), apoiou o bloqueio comercial a Cuba, a URD rompeu com o acordo de convivência. O cantinho estava aberto para o domínio do bipartidarisnto, marcado pela alternância de governo entre AD e Copei durante quatro décadas.
A Constituição de 61 institucionalizou o mando conservador. Todos os juízes deveriam ser escolhidos pelo Congresso. Nenhuma promoção de oficiais superiores das forças armadas (de tenente-coronel para cima) poderia ser efetivada sem ratificação parlamentar. Por leis não escritas, a maioria dos empregos públicos estava reservada para os que tinham carteira de filiação em alguma das duas organizações ou padrinho influente. Mesmo os postos de trabalho na indústria e no comércio eram oferecidos levando em consideração uni critério partidista. A Central dos Trabalhadores Venezuelanos (CTV) é controlada pela AU desde o final dos anos 50, graças a um engenho de fraude e repressão: os filiados dissidentes são excluídos das listas de votação sindical e qualquer reclamação esbarra em uma justiça corrompida até a medula. A democracia venezuelana era bastante parecida com sua congênere mexicana, que um dia o escritor Octávio Paz chamou de "ditadura perfeita".

O grande problema desse sistema oligárquico, no entanto, era manter os excluídos da pátria petroleira em sua órbita. Por muito tempo a ampliação do gasto público permitiu melhorar os serviços prestados pelos estados e municípios, criando uma expectativa de prosperidade que amortizava a percepção da dualidade nacional. Os filhos das camadas mais pobres podiam almejar emprego na burocracia, crédito para a edificação de sua residência ou amparo gratuito para a saúde. Quando essa expectativa foi frustrada, com a queda da renda petroleira e a emergência de uma crise fiscal, a nação profunda revoltou-se contra o roteiro que lhe cabia.

A última esperança com o antigo regime foi durante o segundo mandato de Carlos Andrés Pérez (AD). O candidato adeco havia prometido reverter a política liberal de seu antecessor, o copeiano Luís Herrera Carapins, que havia negociado uma composição para a dívida externa do país que confiscava uma enorme parte da receita pública para esse destino. Pérez fez uma campanha prometendo rejeitar o acordo como FMI e devolver os venezuelanos aos bons tempos do petróleo valorizado. Massacrou seus adversários. Tomou posse em 2 de fevereiro de 89 com mais de 65% de apoio popular.

Vinte dias depois suas promessas tinham sido esquecidas: aceitou os termos do FMI, elevando o preço dos combustíveis e dos transportes públicos. O anúncio dessas medidas funcionou como um estopim. Caracas virou uma praça de guerra no dia 27. Uma rebelião popular, depois conhecida como Caracazo, se alastrou pelo país durante dois dias. O governo chamou o exército para reprimir os manifestantes. Mais de mil foram sumariamente fuzilados. Desde então começou a lenta agonia que levaria, quase dez anos depois, à eleição de Hugo Chávez.

Esse longo período foi marcado pela decadência do antigo regime sem que houvesse forças suficientes ou estratégias mais ousadas para impor uma outra alternativa de poder. A elétrica mobilização social iniciada em 89 foi ancorada em formas de articulação por bairro, descentralizadas e instáveis, com a debilidade natural provocada pela ausência de estruturas unitárias e permanentes. No interior da esquerda venezuelana, duramente derrotada em sua experiência guerrilheira nos anos 60, prevalecia uma posição de reformar o regime de dentro para fora, por meio de alianças que deslocassem alguns setores dos partidos tradicionais para uma perspectiva de mudanças. As duas principais agremiações progressistas, o Movimento ao Socialismo (MAS) e a Causa R, chegaram a participar do governo de Rafael Caldera, o velho fundador do Copei que, em 1993, voltou à Presidência da República prometendo a modernização do Estado. Sua gestão terminou alinhada com as surradas fórmulas do FMI sem que os grupos de esquerda que lhe davam apoio abandonassem o barco - ao contrário, seus chefes históricos apoiaram o candidato da direita, Enrique Salas Rõnter, na eleição presidencial vencida por Chávez em 1998.

A opção pela integração ao sistema político como seu braço reformador custou às correntes majoritárias da esquerda um forte abalo à sua credibilidade. Certos estamentos da sociedade, principalmente entre as camadas médias, viram nessa adesão um sopro renovador. Mas os pobres das cidades e do campo deram-lhes as costas e paulatinamente voltaram sua simpatia à geração de militares que lançou o país em clima de insurgência a partir de 92. No dia 4 de fevereiro daquele ano o então tenente-coronel Hugo Chávez comandou um levante contra o governo de Carlos Andrés Pérez. Apesar do fracasso militar, com a prisão dos líderes da sublevação, a vitória política foi estrondosa. Uma pesquisa do Ministério da Defesa, quatro meses depois, mostrou que 64,7% dos caraquenhos tinham uma imagem positiva do oficial insurgente, em uma população na qual oito em cada dez cidadãos afirmavam preferir a vida sob um regime democrático. A imprensa e as autoridades governamentais chamavam os rebeldes de "golpistas", mas as pessoas começavam a identificá-los com a luta contra o FMI, a miséria e a oligarquia.

Esse grupo de oficiais estava longe de seguir um figurino de desespero ou aventura. Desde o início dos anos 80 estabeleceu contatos com as tendências de esquerda que recusavam a assimilação institucional. Aos poucos formou uma organização clandestina, chamada Movimento Bolivariano Revolucionário (MBR), com uma rede molecular em todos os ramos das forças armadas. O nome remetia à Simón Bolívar, o general que comandou a luta dos povos andinos contra a dominação espanhola. O objetivo do movimento era organizar uma insurreição cívico-militar para derrubar o sistema. Apesar de seu fracasso operacional, a partir dali nasceu um novo núcleo político, que reorganizaria a geografia da esquerda, recomporia sua unidade e a levaria ao governo. Estava surgindo a força capaz de transformar a agonia do antigo regime em um processo de transformação.

A partir de 1995, um ano depois do indulto que colocou Chávez e seus companheiros em liberdade, o MBR começou a preparar-se para as eleições presidenciais de 1998. Mudou de nome, para Movimento V República (MVR), abrigou militantes civis em suas fileiras e dirigiu a criação do Pólo Patriótico- uma frente de todas as organizações e partidos de esquerda ou nacionalistas. O chefe dos insurgentes foi eleito presidente da República no dia 6 de dezembro, com quase 60% dos votos. Sua principal proposta: a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte que sepultasse o sistema apodrecido.

A idéia tinha diversas fontes. Uma delas vinha da comparação com a experiência vivida pelo Chile durante o governo da Unidade Popular, entre 1970 e 1973. O centro da estratégia de Salvador Allende e seus aliados era introduzir um conjunto de reformas econômicas e sociais, ao menos em uma primeira etapa, sem alterar a institucionalidade do Estado - sem resolver, portanto, a questão do poder. A derrota dessa política inspirou Chávez a propor um outro caminho, no qual o primeiro objetivo fosse varrer dos principais aparatos os principais representantes políticos e militares da oligarquia, modificando a essência e o controle das instituições. Depois de decidida a frente política deveria ser aberta a frente econômica, para que as possibilidades de resistência da pátria petroleira estivessem suficientemente reduzidas. A esse trabalho se dedicou o novo governo em seu primeiro ano.

A Venezuela de Chávez é um festival de democracia, se por esse termo entendermos o cumprimento do rito eleitoral ou as normas que regem o exercício do poder. Um referendo em abril convocou a Constituinte. O pleito para sua composição, em julho, deram ao Pólo Patriótico 121 das 128 cadeiras em disputa. Finalmente, antes da tempestade, em dezembro, o apoio popular à nova Carta. Os fundamentos da ordenação jurídica foram alterados. O preâmbulo da Constituição anuncia uma democracia que combina representação e intervenção direta. A Câmara dos Deputados e o Senado foram substituídos por uma Assembléia Nacional unicameral, eliminando o peso desproporcional das oligarquias regionais na câmara alta. Os juízes de primeira instância passaram a ser escolhidos pelo voto popular. Todos os ocupantes de cargos eletivos, depois de cumprida a metade de seus mandatos, podem ser destituídos por um referendo revogatório - um processo de impeachment de baixo para cima. O presidente terá seis anos de gestão, com direito a uma reeleição. Apesar do capítulo da ordem econômica não romper com o direito à propriedade, foi reforçada a exigência de função social e implantada uma carta de direitos à saúde, educação e seguridade social. O monopólio estatal do petróleo foi transformada em cláusula pétrea.

A próxima batalha terá lugar ainda no primeiro trimestre, quando eleições gerais indicarem, de vereador a presidente, os mandatários do novo regime. Estará encerrado o primeiro capítulo do que Chávez chama de "revolução pacífica e democrática". A oligarquia terá sido varrida dos principais comandos do Estado sem que um único tiro tivesse que ser disparado. A hora da verdade terá chegado para um país no qual o sistema político está sendo virado pelo avesso, mas o poder dos velhos grupos econômicos continua praticamente intacto. As mudanças atingirão a frente econômica e social, cora a fundação de outro modelo de desenvolvimento, ou os militares rebeldes acabarão como gerentes de unia variável recauchutada da receita aviada pelos centros financeiros mundiais? Essas são algumas das perguntas paradas no ar, que Chávez terá de responder antes que seus adversários se recuperem ou - o que é pior - o povo perca a paciência e comece a achar que tudo não passa de mais do mesmo.

Breno Altman é jornalista