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A presença militar americana no conflito colombiano e em países vizinhos, com a exceção do Brasil e da Venezuela de Hugo Chávez, já é significativa

"Saltou-me, afinal, a comoção que eu não sentira. A própria superfície lisa e barrenta era mui outra. Porque o que se abria às vistas desatadas, naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas, lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênesis."
Euclides da Cunha, sobre a Amazônia.

"O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia".
Al Gore, vice-presidente dos Estados Unidos.

"Minha pátria não é florão nem ostenta lábaro não. Minha pátria é o grande rio secular que corre terra, bebe nuvem e urina mar."
Vinicius de Moraes

Entre os dias 30 de setembro e 4 de outubro de 1999, o Exército Brasileiro promoveu uma visita de parlamentares a diferentes guarnições militares na Amazônia Ocidental. O comandante do Exército, general Gleuber Vieira, esteve na manhã de 30 de setembro na Base Aérea de Brasília para se despedir do grupo de parlamentares.

Ele não se estendeu muito sobre os objetivos da missão, limitou-se a nos desejar boa viagem e nos embarcou num velho Avro, turbo-hélice da FAB, rumo ao capítulo inédito e contemporâneo do gênesis percebido por Euclides da Cunha em um de seus belos delírios retóricos. O avião, segundo Márcio Moreira Alves, presente na aventura, serviu ao presidente Juscelino Kubitschek e é muito seguro, apesar de lento. Desenvolve uma velocidade inferior à de certos carros da fórmula um.

A comitiva era eclética. Mas sem dúvida foi escolhida com critério. O Exército é lógico e positivista. O deputado Elton Rhonet (PPB/RO), ligado à garimpagem, a deputada Vanessa Graziontini (PC do B/AM), ligada à universidade, e o senador Gilberto Mestrinho (PMDB/AM), ligado ao boto tucuxi, são da região. O deputado Arnaldo Madeira (PSDB/SP) é líder do governo na Câmara, o deputado José Genoíno é líder do PT, eu fui na condição de assessor de Genoíno, meu velho companheiro de outras aventuras amazônicas pelo Bico do Papagaio e pelo sul do Pará nos primórdios do PT, quando ajudamos a tirar da prisão o Padre Josimo Tavares, posteriormente assassinado por pistoleiros, e Lourdes Goi, agente pastoral da CPT engajada na luta pela reforma agrária.

A bancada da segurança estava representada pelo senador Romeu Tuma (PFL/SP) e a dos consumidores pelo deputado Celso Russomanno (PPB/SP). O deputado Aldo Rabelo (PCdoB/SP) também estava lá, defendendo o idioma. O deputado Fernando Coruja (PDT/SC) e o senador Cacildo Maldaner (PMDB/SC) representavam os barrigas verdes.

O primeiro pouso do velho Avro foi em Cachimbo, localidade do sul do Pará, fronteira com o Mato Grosso. Lá, uma vez, na época da ditadura, foram feitos grandes buracos que seriam destinados a testar a bomba atômica brasileira. O projeto não foi adiante. No aeroporto, fomos recebidos por praças que nos serviram cafés e refrigerantes e que nos informaram que viviam em Brasília, mas que passavam períodos em Cachimbo, por um salário um pouco melhor, e colaborando com o Ibama na proteção da fauna e da flora.

Depois de sete horas de vôo, desembarcarmos em Manaus, onde fomos recebidos pelo general Lessa, comandante militar da Amazônia, responsável pela defesa de uma área que equivale a 56% do território nacional, contando para tanto com modestíssimo contingente de 25 mil homens.

A tecnologia empregada pelo militares para mostrar aos visitante suas instalações, concepções de defesa e belezas da região é sem dúvida do origem soviética. Tudo é feito con muita pressa. De modo que visitante, com uma sensação de absoluta liberdade, vê tudo que o cicerone quer que ele veja, mas num ritmo que não lhe dá tempo para indagações inconvenientes, perplexidades metafísicas, ou para contato com o povo. Esta técnica, que funcionava tão bem nos frios russos, foi perfeitamente adaptada aos calores tropicais.

A cobiça

O primeiro compromisso da comitiva, na manhã de 1º de outubro, foi assistir a um desfile na sede do Comando Militar da Amazônia. A tropa pareceu bem treinada, com moral alto e com espírito marcial, como gostam de sublinhar os militares.

Em seguida, fomos conduzidos a um auditório para assistir a uma palestra pronunciada pelo general Lessa. O tema era a cobiça internacional sobre a Amazônia e a estratégia de defesa do território. Com uma lógica inquestionável o general mostra como, depois do fim da guerra fria, a Amazônia passou a se situar no centro dos principais conflitos potenciais.

Os conflitos não se dão mais no sentido Leste-Oeste, eles tendem a assumir una configuração Norte-Sul. As Forças Armadas argentinas, na guerra das Malvinas, tiveram a oportunidade de perceber quem são os aliados preferenciais dos Estados Unidos. A Amazônia coleciona as pré-condições para virar sede de tais conflitos. Faz fronteira com países produtores de droga e por seu território transita a cocaína que abastece os Estados Unidos e a Europa.

Além disso, a presença de povos indígenas, as riquezas minerais, a quantidade de água doce disponível, a presença de guerrilhas na fronteira colombiana e a diversidade de um ecossistema que é uma espécie de escândalo botânico, contribuem para colocar a Amazônia no centro das atenções.

Registro que a presença militar americana no conflito colombiano e em países vizinhos, com a exceção do Brasil e da Venezuela de Hugo Chávez, já é significativa. Até agora a diplomacia brasileira se negou a atender aos apelos americanos para participar de uma intervenção militar na Colômbia. Tampouco tem sido permitida a presença de tropas americanas em treinamentos militares na Amazônia brasileira, para grande desgosto do Pentágono. Oficiais brasileiros torcem discretamente para que os americanos intervenham mais abertamente na Colômbia. Acham que eles estariam entrando em um novo atoleiro vietnamita.

As bandeiras de preservação da natureza e da defesa dos povos indígenas - insiste o general Lessa - servem de argumento para colocar em dúvida a soberania brasileira sobre a Amazônia. Aí ele se refere a uma impressionante coleção de frases de autoridades estrangeiras que negam a soberania brasileira.

Al Gore, vice-presidente dos Estados Unidos, por exemplo, sustentou em 1989: "Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós". Propósitos semelhantes, lembra o general Lessa, foram emitidos por personalidades como Margareth Thatcher, John Major, François Mitterrand e Mikhail Gorbatchev.

Para o general Lessa, quando um primeiro-ministro, como John Major, afirma sobre a Amazônia que "as nações desenvolvidas devem estender os domínios da lei ao que é comum de todos do mundo. As campanhas de ecologistas internacionais a que estamos assistindo, o passado e o presente sobre a região amazônica estão deixando a fase propagandística para dar início a uma fase operativa, que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região", significa que o Estado Maior inglês já tem pelo menos um esboço de plano de ocupação da região.

Talvez por dever de ofício, o general Lessa não pôde tirar a conclusão óbvia de que a defesa conseqüente da Amazônia, como território brasileiro, requer necessariamente a ruptura com o modelo neoliberal e uma presença mais firme do Estado na região, como promotor do desenvolvimento econômico e social.

Mas, bravatas à parte, não deixa de ser curioso o zelo ocidental pela preservação ecológica na Amazônia. Sobretudo quando se considera que a degradação das condições ambientais, em outras regiões do país, ocorre sem que ninguém proteste, ou que estes protetores da Amazônia vivem em países que contribuem com a maior parte da poluição do planeta. A Inglaterra, por exemplo, detém taxas nada invejáveis de câncer nas áreas vizinhas de suas velhas usinas nucleares.

O zelo pelos índios também é suspeito. Não só porque não se verifica o mesmo zelo com as populações famintas da África, por exemplo, como também quando se considera que o general George Custer, faturado pelos índios na batalha de Little Bighorn, e até muito pouco tempo desfrutando da condição de herói, não nasceu no Brasil. Aqui, quem adquiriu fama no relacionamento com os índios foi o marechal Rondon, que nunca promoveu campanhas de extermínio.

Aliás, o humor escrachado do jornal Casseta e Planeta recriou livremente o ambiente em que o marechal Rondon teria pronunciado sua frase mais célebre. Segundo o Casseta, numa clareira da selva amazônica, estavam todos sentados em roda fumando um charuto de maconha quando, depois de uma longa curtição, o cacique entregou a pontinha do charuto ao marechal e disse: "Mata". Ao que Rondon respondeu: "Morrer se for preciso, matar nunca". Era sob este lema que ele se relacionava com os índios. Já o general George Custer achava que índio bom era índio morto.

Guerrilha

Feito o diagnóstico, o general Lessa não se fez de rogado para estabelecer qual deve ser a tática para se defender de um ataque militar vindo do Norte. Já que o Brasil não tem conflitos territoriais com os países fronteiriços, o ataque só poderia vir dos Estados Unidos ou da Europa, isto está subentendido.

Supondo que Rio e São Paulo não se renderiam de imediato, o Exército da Amazônia se transformaria numa força guerrilheira. Esperando que a Marinha fosse capaz de dificultar ao máximo o avanço inimigo pelo rio, o Exército, consciente das limitações da FAB, que não conseguiria manter o Sivam no ar por muito tempo, e que não tem capacidade para opor uma resistência eficaz a um ataque aéreo, abandonaria as cidades e se internaria na selva, passando a hostilizar o inimigo por meio de táticas de guerrilha, explorando seu conhecimento do terreno e a provável hostilidade da população ao invasor.

Mas o general Lessa acha que este cenário não está no horizonte imediato. Talvez possa se concretizar em duas ou três gerações. Até lá temos que nos preparar, inclusive travando a guerra das comunicações, que está sendo perdida pelo Brasil. Qualquer criança do hemisfério Norte sabe hoje que aqui se depreda a natureza, se elimina índios e se convive com o tráfico. E esta massificação mistificadora não se interessa em distinguir grupos, tendências e classes envolvidas no processo.

Prevenção

Sem dúvida há mistificação sobre a devastação da Amazônia. Em verdade, o Brasil deveria receber prêmio pela preservação dos índios e do ambiente amazônico. Em outras mãos aquilo já teria sido completamente destruído. Nosso débil capitalismo não conseguiu cumprir esta tarefa.

Dito isto, é preciso registrar que o PT não concilia nem pode conciliar com a devastação. Chico Mendes deu a vida por esta causa. Quem colocou o incêndio de Roraima nas manchetes internacionais, em 1998, foi Lula, que visitou a região para observar os estragos e denunciar a negligência do governo FHC. O governo petista de Brasília enviou homens e material para combater o incêndio. Foi o deputado Paulo Rocha (PT/PA) quem primeiro chamou a atenção para a possibilidade de grandes incêndios no sul da Amazônia durante 1999. Quando os incêndios previstos se verificaram, José Genoíno demonstrou que o governo FHC não havia utilizado nem 10% dos recursos previstos no Orçamento da União para preveni-los.

Paisagem

Depois da conferência do general Lessa, fizemos um sobrevôo de helicóptero sobre o arquipélago de Anavilhanas, rio Rio Negro, no imediato noroeste de Manaus. É uma exuberância espantosa, que só pode dar razão aos delírios de Euclides da Cunha e de outros que nasceram ou viveram na Amazônia, como Márcio Souza, que criou um personagem inglês que achava que o teatro Amazonas é obra de extraterrestres.

Os helicópteros, de última geração, foram adquiridos nos Estados Unidos para equipar o contingente brasileiro que atuou na cordilheira de Condor para garantir a paz entre Peru e Equador. Um oficial fez questão de ressaltar a independência de atuação da representação do Exército no episódio, recusando sistematicamente as ordens do Comando Sul do Exército Americano e reportando-se à diplomacia dos países envolvidos.

Depois do sobrevôo de Anavilhanas, fizemos uma travessia do Rio Negro em barcas construídas pelo Exército em Manaus. São embarcações rústicas, leves e velozes, capazes de navegar em igarapés de pequena profundidade, transportando material e um grupo de combate.

Vizinhos

Há cerca de três anos as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) fizeram um ataque a uma guarnição brasileira na Serra do Traíra, região da Cabeça do Cachorro. Mataram três soldados e saquearam o posto. Segundo os militares, estavam em busca de alimentos.

Hoje, acreditam oficiais do Exército, a guerrilha, que continua precisando muito de alimentos, está voltada para Bogotá, preocupada em administrar o território que controla e que, em certa medida, foi reconhecido pelo governo colombiano, e empenhada numa negociação de paz que tem tudo para ser difícil. Parece lógico que a guerrilha não queira problemas com o Exército brasileiro num momento em que nossa diplomacia resiste a pressões americanas que visam envolver o país numa intervenção militar.

O outro vizinho é a Venezuela. Depois da posse de Hugo Chávez, a Venezuela passou a reconhecer oficialmente as Farc como força beligerante, que é o objetivo diplomático da guerrilha. O gesto só não é mais espetacular porque o próprio governo colombiano, na medida que negocia publicamente com as Farc, admite este reconhecimento.

Em Brasília também existe um embaixador informal das Farc. Ele já foi até recebido em audiência pelo deputado Arthur Virgílio (PSDB/AM), líder do governo no Congresso Nacional, e pelo governador Mário Covas. Aliás, certa vez em Brasília, pedi explicações ao adjunto do embaixador sobre o ataque das Farc ao posto da Serra do Traíra. Muito sorridente, ele me disse que isto era coisa do passado, que o objetivo agora era Bogotá. Aproveitou para dizer que também uma coluna das Farc encontrou-se com um pelotão de militares brasileiros 80 quilômetros dentro da Colômbia e que, após um contato feito por meio de índios, as duas tropas se reuniram num almoço de confraternização. Não sei se isso realmente ocorreu.

Fronteira

Dia 2 de outubro nos deslocamos para Tabatinga, no Alto Solimões, separada de Letícia, capital do departamento colombiano do Amazonas, por uma rua. Aí, o orgulho dos militares é o hospital, que serve não apenas à guarnição, mas também à população civil, aos indígenas da nação ticuna e mesmo a estrangeiros, principalmente peruanos. Há também uma escola profissionalizante mantida pelo Exército.

À tarde, fizemos um vôo de aproximadamente 300 quilômetros rumo ao norte, até Vila Bittancourt, em frente à Colômbia, às margens do Rio Japurá. A maior glória desta guarnição foi ter hospedado, por uma noite, o então presidente José Sarney. A visita está registrada em monumento. Nestas guarnições isoladas a reclamação é contra o abandono do Projeto Calha Norte por parte dos ministérios civis.

No fim da tarde voltamos a Tabatinga e fizemos uma rápida visita a Letícia. Cumprindo um acordo antigo, os militares brasileiros entraram desarmados no território da Colômbia. À noite, depois do jantar, assistimos a uma apresentação de dança e canto locais de muito bom gosto.

No dia 3 de outubro, partimos para São Gabriel da Cachoeira, na Cabeça do Cachorro. O atual prefeito da cidade foi eleito pelo PT. Mas se desfiliou, alegando que o partido não o deixava governar, o que parece improvável. Os petistas locais descobriram José Genoíno assim que ele chegou ao quartel. Convidado a comparecer à convenção municipal, que estava sendo realizada naquele dia, Genoíno se afastou da comitiva, acompanhado por mim, por 20 minutos, tempo suficiente para pronunciar o breve discurso para os filiados e dar um volta pela cidade. Foi aí que fomos apresentados a uma igreja e a um convento, plantados há duzentos anos naqueles ermos. Segundo uma lenda local, Che Guevara se hospedou naquele convento. Recebemos também reclamações contra o corte de verbas militares, que reduzem a oferta de emprego na região.

De São Gabriel voamos para Maturacá, região do Pico da Neblina, fronteira com a Venezuela. A guarnição é vizinha de duas aldeias yanomamis. Lá fomos recebidos por dois chefes tribais portando bastões de general, presente do general Traumaturgo, ex-comandante militar da Amazônia, conforme informaram com orgulho os caciques.

O tempo nublado e a precariedade da pista encurtaram nossa estadia em Maturacá. Não cumprimos a última parte do programa, uma visita às aldeias yanomamis. Com isso deixamos de saborear uma especialidade da culinária destes índios, um creme de banana temperado com a cinza dos mortos.

Em seguida nos deslocamos para Manaus e no dia seguinte para Brasília. Havíamos visitado, com muita pressa, as extremidades do Brasil e visto coisas e ângulos pouco comuns de nossa vida social e política.

Athos Pereira é chefe de gabinete da liderança do PT na Câmara dos Deputados