Política

Historiador marxista, autor, entre outras obras, de O escravismo colonial e Combate nas Trevas, fala de seu recente livro Marxismo sem utopia

 

O historiador marxista Jacob Gorender, autor, entre outras obras, de O escravismo colonial e Combate nas Trevas, nos fala de seu mais recente livro Marxismo sem utopia (São Paulo, Ática, 1999). Trata-se de um ambicioso esforço de, à luz da teoria e da prática marxistas ao longo de 150 anos, libertar o pensamento revolucionário daquelas concepções que representam uma ruptura incompleta de Marx com o socialismo utópico.

Você acaba de lançar o livro Marxismo sem utopia, que é uma análise dos desafios enfrentados pelo pensamento marxista na presente situação histórica. Qual é, na sua opinião, o lugar que a obra de Marx ocupa hoje?

A importância da contribuição de Marx ao pensamento moderno dificilmente pode ser contestada. Ele está na galeria de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, dos grandes pensadores que a humanidade já teve. Ele deu uma enorme contribuição ao conhecimento social, em especial à economia política (o que hoje se chama de ciência econômica), mas também à sociologia, ao que se denomina hoje ciência política, à teoria do Estado. E ainda, em primeiro lugar, a filosofia.

Mas se a contribuição de Marx me parece indiscutível e altíssima, o mesmo não se pode dizer do marxismo. É o marxismo como doutrina que hoje está em causa. O marxismo visava e visa fundamentar o objetivo socialista e abrange não só a obra de Marx como a de Engels e de seus sucessores - Lenin, Trotski, Bukharin, Gramsci, Kautsky, Lukács até pensadores mais recentes, como Marcuse e Althusser. Todos deram uma contribuição ao que se chama de marxismo.

Que o marxismo esteja em causa me parece bastante evidente. O mundo mudou muito neste século. A sociedade capitalista que hoje domina o planeta é muito diferente tanto com relação à época de Marx como com relação à primeira metade do século XX. Mudou também, notavelmente, a configuração da classe operária. Estes fatores questionam o marxismo como teoria que não avançou com as mutações da realidade histórica.

Há ainda outra questão: é impossível dissociar o marxismo do que aconteceu com a União Soviética e outros países que realizaram revoluções pretensamente socialistas. As transformações políticas, sociais e econômicas na União Soviética e nestes países foram fundamentadas com teses marxistas, por pessoas que se consideravam marxistas. Por mais que nos repugne, não é possível deixar de reconhecer que Stalin também era marxista, o que ele escreveu e fez se baseia no que considerava como marxismo. Não se pode, então, dissociar o marxismo desses fatos, que o desacreditaram diante da opinião mundial.
O que me propus a enfrentar foram alguns dos problemas que vieram com esse descrédito sofrido pelo marxismo.

Marx estabelece um campo teórico que hoje se encontra em crise. Sua obra é um esforço de repensar quais seriam as bases para voltar a dotar o marxismo de vitalidade, de condições para interpretar o mundo contemporâneo e projetar sua transformação rumo ao socialismo. Quais seriam os eixos dessa atualização do marxismo?

Esforçando-me por abordar tema tão complexo e procurando, no que foi possível, reportar-me ao que havia de mais recente, constatei que o eixo da abordagem devia ser o percurso incompleto de Marx e Engels da utopia para a ciência. Eles ficaram no meio do trajeto, não foram até o fim, embora se propusessem a isso. Substituir a utopia pela ciência é o objetivo declarado com todas as letras no Manifesto Comunista. Engels também abordou o projeto em uma parte do Anti-Dühring, que se transformou na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico. E o propósito de Marx, ao dedicar seus maiores esforços a elaborar O capital, foi dar uma base científica à idéia do socialismo, tirá-la daquelas construções quiméricas de Fourier, Saint-Simon, Proudhon, dos anarquistas etc., e assentá-la no que ele considerava um fundamento científico.

Trata-se, pois, de libertar a teoria de Marx do que existe de incompleto na sua ruptura com o utopismo. Algumas idéias muito importantes do ambiente utópico, que Marx encontrou já formado quando se desprendeu de Hegel e de Feuerbach, transferiram-se para a obra que pretendia fosse plenamente científica. Mas ele não conseguiu se libertar completamente de tais idéias. Seus melhores seguidores (Lenin, Gramsci, Lukács e outros) modificaram muita coisa, cada um deu sua contribuição, porém as teses utópicas perduraram.

Foi isso que procurei abordar de maneira sucinta no livro Marxismo sem utopia. Examinei os elos lógicos e históricos do pensamento de Marx e depois como isso foi tomando desvios à medida que era implementado com Kautsky, Lenin, Bukharin, Trotski etc. Cada um enfrentava obstáculos concretos e dava uma contribuição que, de certo modo, desviava da linha em que vinha a teoria, até este corpus teórico chegar aos nossos dias. Esta análise me permitiu tirar conclusões a respeito daquelas teses que deveriam ser filtradas, porque já não são compatíveis com os acontecimentos históricos e com as conclusões lógicas que se deve tirar da própria doutrina.

Duas dessas teses utópicas são a idéia de que o proletariado constitui-se num sujeito revolucionário imanente à história da humanidade e a de que existiria uma história dotada em si mesma de um sentido. Trata-se, pois, de uma crítica aos elementos deterministas e teleológicos presentes no pensamento marxista...

Eu queria, antes, colocar uma outra questão, fruto da minha percepção de algumas evoluções das ciências exatas dessa segunda metade do século XX. O que me levou à questão da indeterminação, da incerteza e da chamada teoria do caos, hoje bastante conhecida. Marx era dialético e não tinha uma concepção fatalista da história. A história era, também para ele, cheia de acasos; ele não considerava que tivesse um rumo prefixado, a ser desvendado pela teoria. Mas constatei que suas referências à indeterminação foram feitas sempre em textos menores e em cartas. Já O capital é uma fábrica de certezas sobre o advento do socialismo. Eu o li assim; ele me imbuiu desta certeza, quando era muito jovem, e de outra maneira seria incompreensível a minha militância. Quando Gramsci chamou a Revolução Russa de "revolução contra O capital" também estava refletindo interpretação idêntica da magna obra de Marx. Obra genial, sem dúvida, mas dirigida à produção da certeza de que o comunismo é inevitável.

Penso, por isso, que o elemento de incerteza e indeterminação na obra de Marx não é suficiente. Pode-se dizer que ele existe, mas é fraco. Não tem a força que tem "a determinação", "o inevitável", "a férrea necessidade", expressões do próprio Marx. Por isso me preocupei em escrever um capítulo especial sobre o assunto e voltar a ele várias vezes no curso da argumentação.

O capítulo "Sistema, estrutura e incerteza: o acaso e suas maravilhas"?

Exatamente. Eu me apoiei em cientistas como Ilya Prigogine, David Ruelle, Niels Bohr, Werner Heisenberg, Jacques Monod, e outros cientistas que trabalharam a questão. Claro que com os limites da minha fraca preparação nas ciências exatas. O pensamento desses cientistas é importantíssimo para o marxismo, que deve incorporar os paradigmas da indeterminação e do caos na sua concepção da história.

Manuel Sacristan e Daniel Bensaid apontaram a existência de uma tensão, na obra de Marx, entre uma visão positivista de ciência, dominante no século XIX, e uma visão dialética, o que ele chamava de ciência alemã contraposta à inglesa, na qual a análise da sociedade não está desligada da questão do sentido, não há a dualidade sujeito-objeto, as conseqüências da ação humana não são passíveis de pré-determinação. Esta tensão percorre o conjunto da obra de Marx. Se O capital tem todo este viés determinista, por outro lado, os textos escritos na década de 1840, em uma conjuntura revolucionária e que constituíram o marxismo como visão de mundo e sistema teórico, são muito mais marcados por esta visão dialética. Não seria, talvez, dar um peso desproporcional ao elemento determinista na visão de Marx enfatizar tanto o papel de O capital?

Eu jamais pensaria em depreciar esta obra. Ninguém estudou uma formação social de maneira tão completa, tão holística, como fez Marx em O capital. Não se trata de uma obra só de economia, mas nela existe a análise mais profunda da estrutura e da dinâmica da sociedade moderna. Mas o sentido dela, o que Marx quis e o que está realmente expresso na obra, foi produzir a certeza, primeiro, de que o capitalismo é um sistema profundamente explorador, opressivo e injusto para a grande maioria da sociedade e, depois, difundir a certeza de que isso pode ser superado e o será por uma sociedade socialista. Esta é a idéia que tenho a respeito d’O capital.

Obra que foi, sem dúvida, o fundamento do marxismo, dando ao movimento socialista certezas apoiadas no peso dos seus argumentos científicos: a sociedade burguesa não é harmônica, é dividida em classes antagônicas, há uma minoria que explora a grande maioria produtora da riqueza, o trabalho é a origem do capital, que se nutre da produção de mais-valia, da apropriação do sobreproduto do trabalho. Estas teses constituíram o fundamento do que se chama marxismo e continuam atuais.

Mas a questão que se segue das perguntas que você fez é que Marx tirou daí uma conclusão que não tem força lógica. O proletariado é a classe explorada específica do sistema capitalista, porém isso não significa que seja uma classe revolucionária, que também queira e possa se propor o objetivo de transformação socialista da sociedade, para tornar-se classe dominante. Tal conclusão não é uma conseqüência necessária. O proletariado pode ser uma classe explorada e ser, como afirmo, ontologicamente reformista.

Henry Maler diz que a utopia necessária compromete a utopia desejada; a promessa de que o socialismo virá de uma maneira inevitável acaba por comprometer a idéia de que trata de lutar pelo socialismo...

Isso sempre me atormentou. Se o socialismo é inevitável, se ele vem necessariamente das contradições objetivas, então que papel tem o meu sacrifício e o de tantos outros? Eu nunca consegui uma resposta teórica. Este livro é resultado de tormentos íntimos que vêm de muitos anos e que, de certo modo, fui postergando. Mas a história avançou de tal maneira que não pude mais postergar o enfrentamento destas questões.
Aí entra o elemento da incerteza, que é fundamental na prática, e a célebre frase de Gramsci, que coloquei até sem citá-lo: "de certo, só temos a luta, não seus resultados". Vamos ter que lutar, sim! O proletariado reformista luta, procurei frisar. Ele não é uma classe apática, passiva, que deixa cooptar. Ele é combativo, mas de modo reformista.

A idéia de reformismo ontológico causa certa surpresa, parece forte demais, é possível, mas não é nova. Creio, por exemplo, que Lenin, apoiando-se em Kautsky, atinou para isso quando disse que o proletariado espontaneamente só atinge a consciência sindical, que é a consciência reformista... A consciência revolucionária teria que ser introduzida de fora, por ser uma realização teórica da intelectualidade. Mas Lenin não concluiu daí que o proletariado seja uma classe, como afirmo, ontologicamente reformista, embora se trate de uma conclusão lógica necessária.

Com o Estado do bem-estar social, nos anos 50 e 60, proliferaram teses que afirmavam ser o proletariado uma classe cooptada pela burguesia. O Estado do bem-estar social tinha propiciado tamanhas prerrogativas e vantagens que a classe operária não tinha mais por que lutar pela transformação social radical. Naquela época me opus a tais teses, não conseguia aceitar que tivessem curso no Brasil. Hoje, devo modificar minha apreciação. Não é um problema só do Estado do bem-estar social, é um problema mais geral. Não é que o proletariado não seja combativo, torno a frisar, mas o impulso dele se dá no sentido de obter benefícios dentro do sistema capitalista e não fora dele. Sendo assim, o Estado do bem-estar social - o Welfare state - foi não só cooptação, mas conquista do proletariado, a mais alta por ele alcançada na história do capitalismo.

Como, então, explicar a Comuna de Paris e a Revolução Russa? A explicação está exatamente em que são dois fatos casuais, irrepetíveis. Duas conjunturas excepcionais de gravíssimas derrotas na guerra, daí decorrendo que o Estado burguês ficou impotente, esfacelado. No caso francês, os trabalhadores parisienses fizeram o que a burguesia ficou incapaz de fazer: tomaram o poder e passaram a administrar a cidade. No entanto, um episódio efêmero. O caso russo também veio com a conjunção de uma burguesia impotente e desprestigiada, uma derrota terrível na guerra (mesma situação da Comuna) e um partido talentoso, com gente de grande disposição e capaz de propor aquilo que a massa do povo russo, particularmente a enorme massa camponesa, queria vitalmente: a paz e a terra. Os bolcheviques decidiram lutar pelo que as massas queriam, o que lhes deu enorme prestígio. As conseqüências se desdobraram por setenta anos, até completar um ciclo histórico.

Não existe nenhum sujeito revolucionário imanente na sociedade, o que há são forças políticas que podem ser capazes de mudar a sociedade e que têm que levar em conta as contradições sociais. Mas estas forças são construções políticas e não dados "objetivos"...

Creio que esta é uma parte bastante polêmica do que escrevi em Marxismo sem utopia. Reconheço! Outra foi a proposição de abandonar a tese da ditadura do proletariado. O conceito de ditadura se presta a tantas confusões, que não vale a pena insistir nele. Sugiro que a transformação social pode ser obra de um bloco de assalariados sob a hegemonia dos assalariados intelectuais. Nos países capitalistas desenvolvidos, 75 a 90% da população vivem de salário. Mas este conjunto de assalariados é muito heterogêneo e o bloco, ao qual me refiro, deve ser delimitado àqueles assalariados que vivem somente do seu trabalho, sem auferir rendas de patrimônio.

Constatei o crescimento explosivo que está tendo o segmento dos assalariados intelectuais. A questão da intelectualidade se torna, então, mais ampla. Não é mais a intelligentsia, no sentido russo, não são somente os formadores de opinião - escritores, jornalistas, artistas, professores. Trata-se agora de gente que está inserida no processo direto da produção.

A produção capitalista exige hoje a participação de um número crescente de assalariados intelectuais. Dois setores são mais evidentes: primeiro, o de pesquisa e desenvolvimento, com a enorme expansão dos laboratórios e das instituições de pesquisa, tanto em universidades e entidades públicas, como nas grandes empresas privadas. Segundo, o trabalho propriamente intelectual, geralmente chamado de software, que tem um peso cada vez maior no processo direto da produção. Marx conseguiu decifrar o processo de organização do trabalho de seu tempo, mas este processo mudou muito desde então. A nova configuração da organização do trabalho deve ser tema da maior significação para a teoria socialista.

Lenin respondeu às contradições que o marxismo enfrentava na questão do sujeito revolucionário promovendo o agenciamento político do proletariado pelo partido. Seu livro aponta para uma revalorização da autonomia do político e, portanto, para o papel central das instituições políticas na constituição do sujeito revolucionário. Sob que forma se dá a organização do bloco histórico que você propõe?

Sem dúvida, a luta e a transformação sociais exigem agentes que sejam capazes de liderar essa luta. Eu não proponho nenhuma receita nem a adesão a algum partido existente. O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornaram o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado. Agora, como fazer, não tenho receita.

Quando o PT surgiu, criou a esperança de que produziria uma superação eficaz do modelo bolchevique e seria capaz de implementar uma nova prática revolucionária no Brasil.

Infelizmente, isto não se deu. O PT foi capaz de manter a esperança transformadora até a campanha de 1989, mas depois se desviou cada vez mais para um modelo francamente social-democrata. O que, em parte, é resultado de uma conjuntura mundial de refluxo da esquerda socialista e das idéias marxistas e a partir de 1990, conseqüência do início no Brasil do processo de reestruturação produtiva, que provocou um grande desemprego estrutural e uma crise ainda não sanada no movimento sindical. Tudo isto influi no PT. Se o partido se mostrar fiel a compromissos característicos da social-democracia combativa, que produziu o Estado de bem-estar social, será algo que podemos até mesmo considerar um ganho político. Mas se ele se vincular à atual social-democracia da terceira via, será realmente um desastre para o movimento socialista brasileiro.

Uma das teses centrais do utopismo de Marx, que seu livro critica, é a idéia do desaparecimento do Estado. Mas como pensar a construção de uma sociedade efetivamente democrática mantendo a dicotomia entre governantes e governados, que é justamente o que caracteriza o Estado?

Esta é também uma questão que me atormentou por muito tempo. Fui educado na idéia de que o Estado vai desaparecendo, não imediatamente como propunham os anarquistas, mas paulatinamente, após a tomada do poder pelo proletariado. Essa tese sempre foi para mim o que hoje chamam de "cláusulas pétreas", no caso da nossa Constituição. Mas a minha constatação é que em todas as sociedades em que houve uma revolução dita socialista, o Estado se fortaleceu tremendamente.

Nem Marx nem Engels escreveram que o desaparecimento do Estado significa o desaparecimento de qualquer administração central. Eles repetem a célebre tese de Saint-Simon, de que o governo dos homens será substituído pela administração das coisas. Sem dúvida, muita coisa que é hoje política - porque temos o governo dos homens - deixará de ser, porque se tornará meramente tecno-administrativa. Não serão eliminadas as funções técnicas e administrativas do Estado atual, mas só aquelas que dizem respeito à opressão política e social, à luta de classes.

Mas há outras questões novas e muito importantes no quadro atual, ignoradas por Marx e seus seguidores. Uma é a diferença de gerações. Hoje se vive em média 30 ou 40 anos mais do que na época de Marx e Engels, o que aumenta a diferença entre gerações. Há o problema dos idosos: o aparelho social, previdenciário e médico-sanitário não acompanhou o aumento na expectativa de vida. Temos, então, interesses diferenciados de gerações. Não se trata somente de uma questão administrativa. Ela envolve opções políticas. Temos também a ecologia: o que produzir, para quem produzir, em que medida. Novamente temos questões que exigem definição de prioridades. Isto significa política e conflitos. Não de classe, mas opções políticas. A própria idéia de que as forças produtivas não podem conhecer um desenvolvimento indefinido limita os recursos para resolver certas demandas. Marx só concebia um limite para as forças produtivas: o das relações de produção obsoletas. Uma vez eliminado este empecilho, as forças produtivas se desenvolveriam sem limites. Mas hoje sabemos que há limites ecológicos, recursos escassos, necessidade de preservar o meio ambiente etc. Esses fatos me levam à conclusão de que não há como se propor extinguir o Estado e as funções políticas.

Engels tem duas explicações sobre a origem do Estado: uma, segundo a qual o Estado surgiu para satisfazer certas funções e outra que surgiu da luta de classes. Se considerarmos válida a primeira explicação, pode-se conceber que certas funções serão permanentes e precisarão de um Estado político, o que soa como redundância. Daí eu afirmar que a extinção do Estado é uma tese anarquista, que Marx e Engels receberam e incorporaram a sua doutrina, ressalvando apenas que a extinção não poderia ser imediata, que teria de ser paulatina. Mas tal herança anarquista deve ser eliminada.

A mesma coisa com a famosa divisão do socialismo em duas etapas. Proponho que só deva existir aquilo que Marx chama a primeira etapa. A segunda etapa antevê um paraíso judaico-cristão. Não podemos pensar seriamente em uma sociedade em que todas as necessidades são sempre satisfeitas. Esta é uma concepção estática das necessidades. E sabemos que, dadas as limitações dos recursos acessíveis, certas necessidades não poderão ser satisfeitas para todos. Alguns poderão ter atendidas suas novas necessidades e outros precisarão esperar, porque haverá escassez.

Se existir poder político, existirão aqueles que vão exercer as atividades políticas de maneira mais permanente. Como pensar uma sociedade não-capitalista democrática e a relação, nela, entre governantes e governados? Como pensar o exercício do poder no socialismo e sua relação com a atividade política especializada?

Algumas idéias me parecem importantes. Uma delas é que nossa sociedade está muito mais aparelhada materialmente para o exercício da democracia direta do que qualquer outra do passado; as possibilidades de comunicação hoje são formidáveis. O problema é que os meios de comunicação constituem propriedade privada e estão centralizados em grandes organizações empresariais, o que restringe ou anula o seu aproveitamento democrático. Mas, uma vez socializados os meios de comunicação, penso que a democracia direta pode vir a ser uma realidade praticada sem hora marcada, a toda hora. O futuro dirá como isso vai ser feito.

Destaco ainda a existência de uma experiência de organização da sociedade civil bem maior que no passado, com uma multiplicidade de entidades, instituições, organizações maiores e menores em todos os meios sociais. Isso nos dá indicação do que pode ser, no futuro, a organização democrática da sociedade e a relação, também democrática, do Estado com a sociedade civil.

Outra questão que me parece importantíssima é a da garantia dos direitos individuais, do Estado de direito, como se diz hoje. O fato de os indivíduos terem certos direitos diante do Estado e diante da sociedade - que não se dissolvem nela - é algo fundamental. Este é um elemento da doutrina liberal que devemos incorporar em nossa visão e levar à prática,com muito mais conseqüência do que faz a sociedade burguesa.

É isto que vai dar concretude à democracia, que deve ser pluralista. O central para que a democracia exista é o direito à divergência; a maioria tem o direito de dirigir, mas a minoria deve ter a segurança de ser respeitada, se organizar, fazer proselitismo, expressar suas opiniões. Para mim, isso é o fundamental, condição sine qua non da democracia. Não devemos adotar uma visão formalista de que pelo fato de haver eleições periódicas, estamos numa democracia. Inúmeras eleições são pura farsa. Nos países ditos socialistas, 99% dos eleitores apoiavam o governo. Não dava para levar a sério. Nos países burgueses, uma infinidade de meios, em particular a força tremenda que a mídia tem hoje, é usada para manipular o pensamento das grandes massas no sentido de que seja favorável à burguesia. Não sou, evidentemente, contra a escolha dos dirigentes por via eleitoral democrática. Sou contra a conclusão de que pelo mero fato de que existem eleições, já temos democracia.
Carlos Nelson Coutinho, a quem eu prezo muito, afirma que a democracia é um valor universal. Estou de acordo com a tese. É um valor universal, não só para hoje, mas também para amanhã, no regime socialista. Mas ele estende a tese ao postular que a luta pela conquista do socialismo deve ser, igualmente, democrática. Aí eu já não posso concordar. Podemos conjecturar sobre uma transição democrática e pacífica para o socialismo. Mas se trata de uma perspectiva condicional. Depende de que o adversário respeite as regras do jogo.

A atividade política no quadro de superação do capitalismo pode também ser potencializada pelas transformações tecnológicas que promovam a redução substancial da jornada de trabalho e as condições para uma vida liberada da opressão...

A redução da jornada de trabalho é uma tendência histórica concreta. Há cem anos se trabalhava duas vezes mais do que hoje. A produtividade do trabalho aumentou enormemente. E não parece que essa tendência tenha chegado ao fim. Há os limites ecológicos, mas a tecnologia ainda tem muito chão para se desenvolver.

Mas por que a jornada de trabalho não está diminuindo agora? Porque o capital não quer e os trabalhadores não têm tido força para se contrapor às imposições do capital. Os trabalhadores estão na defensiva, sofrendo com o desemprego estrutural e todos os fenômenos da reestruturação capitalista. Os assalariados intelectuais ainda são elementos de legitimação da ordem existente, não passaram para o lado do socialismo, continuam, como classe, defendendo a ordem existente. Nestas condições, está difícil conseguir uma nova redução mundial da jornada de trabalho.

As possibilidades tecnológicas não levam, todavia, à eliminação do trabalho. Em alguma medida, sempre se trabalhará. Tudo aponta, porém, para uma situação em que o trabalho virá a ser um momento secundário na vida das pessoas. Hoje, o trabalho continua central, mas ele pode não ser central no futuro. E não é parte do objetivo do socialismo a idéia de que trabalhar "é o nosso destino e que isso é formidável". Isso não está certo. O trabalho continuará existindo, mas o tempo livre será muito mais extenso e dará novas possibilidades à realização humana - no campo das relações afetivas, da escolha de atividades culturais superiores, do aprendizado voluntário, do lazer não comercializado e degradado, mil e uma coisas que hoje só estão ao alcance de quem é rico.

O penúltimo capítulo do seu livro tem como título "Uma escolha a ser feita". Essa escolha é a do engajamento pela transformação da sociedade ou não, a aceitação ou não do sistema que está posto. A concepção que permeia o livro é uma crítica da história como progresso fatal, como destino inelutável, como algo com tendência inscrita ou necessidade inevitável...

Sem dúvida! Esforcei-me por superar essa concepção de história. A idéia de que o capitalismo vai ser inevitavelmente sucedido pelo socialismo não é sustentável. Eu apresento um argumento que pode parecer simplista, mas que não é: hoje os homens podem se auto-exterminar como espécie, o meio para isso existe! Houve infinitos massacres na história, mas nunca esta possibilidade de auto-extermínio total. Só por isso, devemos ser prudentes em nossas afirmações. É só retrospectivamente que há alguma coisa de lógico na seqüência de formações sociais. Supor o capitalismo antes do feudalismo não parece lógico, mas a verdade é que a seqüência institucionalizada nos famosos manuais marxistas-leninistas é cheia de exceções. Houve um modo de produção asiático, a escravidão só ocorreu em uma área restrita da bacia do Mediterrâneo e, modernamente, ressurgiu nas Américas. Tantas exceções fazem com que a tese geral não se sustente.

Você vê algum sentido de progresso na história humana?

Há quem diga que ocorreu progresso material, mas que, do ponto de vista ético, das relações propriamente humanas, houve até regressão. Penso que há aí uma lirificação do passado, das pequenas comunidades e das sociedades patriarcais. Não penso que o progresso seja inevitável nem que seja ilimitado. Creio que pode haver muitas regressões, porém que a humanidade tem conseguido avançar. Custou muito. Este século conheceu duas guerras mundiais terrivelmente destrutivas e desde então estamos a todo momento com alguma guerra local em curso. Mas foi possível avançar, ainda que a um custo tremendo. E o que aconteceu pelo menos nos dá a visão de um caminho que pode ser percorrido no sentido do socialismo, nos dá uma perspectiva de futuro. A história não se fechou, ao contrário do que disse Fukuyama, para citar um autor que já está fora das citações. Fukuyama, sim, fechou a história. Para ele, com o capitalismo liberal se atingiu o máximo. Mas a história não chegou ao fim, embora hoje o capitalismo domine o planeta.

A questão do mercado no marxismo também é objeto de um tratamento crítico na sua obra?

Sem dúvida. Quando se começou a falar em socialismo de mercado, com a perestroika, uma grande quantidade de obras passou a tratar do tema. Os chineses são explícitos na tese de que o que existe na China é um socialismo de mercado. Eu me lembro de que Mandel protestou contra esta tese, afirmou que mercado e organização socialista da produção não se coadunam, não é possível compatibilizar teoricamente uma coisa com a outra. Aí entra também uma experiência de planejamento central, que não deve ser desprezada. A experiência soviética é a primeira na história mundial de uma sociedade complexa, com as forças produtivas modernas, em que houve um projeto de planejamento centralizado, na verdade um planejamento total. Procurei examinar as questões principais desse planejamento, os impasses em que incorreu e que depois resultaram em um desastre não superado. Tentaram injetar elementos de livre iniciativa privada para atenuar a rigidez do planejamento, mas não adiantou.

Na minha opinião, uma vez constituído um poder socialista, com a dominação do bloco de assalariados sob a liderança dos assalariados intelectuais, em um Estado com objetivos socialistas, não se pode ir muito além do ponto a que chegou a própria economia da sociedade burguesa. Deve-se superar este ponto, avançar além do capital, como diz Mészáros, mas não pretender impor um projeto de planejamento total, como o que os dirigentes soviéticos pensaram efetivar. Na União Soviética, estatizaram toda a produção de bens de produção. E os bens de consumo adquiridos pela população ficaram submetidos a preços administrados. O mercado ali era ficção. Na agricultura, impôs-se a coletivização compulsória. Havia um espaço para a agricultura familiar, mas era marginal. O planejamento não só foi total, mas totalitário.
Penso que isso deve ser evitado, mesmo no caso de economias tão desenvolvidas como os Estados Unidos, o Japão ou a Alemanha. Lester Thurow escreve que as empresas multinacionais, ao contrário do que se pensa, não planejam sua perspectiva para vinte anos, mas sim para três a cinco anos. Isso é algo que o quitandeiro da esquina não pode fazer. Ora, três a cinco anos é praticamente o tempo dos planos qüinqüenais soviéticos. A socialização da produção já está avançada na própria sociedade capitalista, podemos dar alguns passos à frente, aumentar os prazos, mas não em excesso. Deve-se pensar em praticar um processo de tentativa e erro, porque senão vamos adotar de novo aquele tipo de planejamento soviético e caminhar, mais uma vez, para o desastre.

É neste ponto que entra a questão do mercado: o que ele é, quais são suas possibilidades. O mercado é a forma de divisão social do trabalho e da produção na economia mercantil simples e na economia capitalista. É um alocador de recursos, pelo jogo de oferta e procura, indica onde é que se deve investir, funcionando como mostrador de preços. Seus apologistas não levam em conta as crises cíclicas, as depressões, os desperdícios enormes que esta alocação implica e a tendência à centralização da produção, conduzindo à extorsão da população, que sofre com os preços dos cartéis e monopólios. Mas ainda não temos um mostrador alternativo melhor do que o mercado. Pode ser que, com os computadores, já se consiga inventar uma visibilidade dos preços, que não passe pelo mercado. Mas isso ainda não existe. Enquanto não houver um dispositivo alternativo, deveremos apelar em última instância para o mercado. Um mercado regulado pelo planejamento.

Uma série de obras de Marx e Engels e do marxismo faz uma contraposição entre um socialismo quimérico, utópico, projetos que não têm fundamentação nas condições de vida e em forças sociais, e o que seria um socialismo formulado a partir de uma análise científica da sociedade. No entanto, toda uma corrente de pensadores marxistas, desde Ernst Bloch, vai destacar que a esperança é um elemento constitutivo da condição humana e os seres humanos sempre projetam perspectivas de melhorias, o que, em escala da sociedade, são projetos utópicos, de realidades que não existem. Depois, parece-me necessário, ao apontar a luta por uma sociedade socialista, sermos mais precisos do que foram Marx e Engels ao descreverem as características desta sociedade, porque já temos um acúmulo de experiências, positivas e negativas. Podemos não chamar isso de utopia, mas trata-se de uma sociedade que ainda não existe e pode nunca existir, que queremos construir e que não é simplesmente uma projeção científica. Neste sentido, embora concorde com todo o seu trabalho de crítica dos elementos utópicos, no sentido de quiméricos, presentes no pensamento marxista, não me parece que possamos pensar uma política de transformação da sociedade sem o alimento da utopia...

Tenho ouvido o argumento que você coloca, de que não é possível viver e lutar sem utopia, de que abrir mão da utopia seria um conformismo tremendo. É preciso ter uma visão de algo que não existe hoje, que pode ser até fantasioso, porém que nos dá impulso e incentiva na luta social. Não desconheço este impulso que uma idéia utópica pode fornecer. Não pretendi, no meu livro, fazer uma exposição de tudo que já se falou sobre utopia. Nem sequer me referi a Karl Mannheim, com sua obra Ideologia e utopia. Mas coloco uma outra questão: a idéia de que precisamos encontrar motivadores socializantes é indispensável. Sem isso não há impulso transformador. Mas podemos dispensar a utopia. O nosso processo de luta sempre implicará tentativa e erro, correção do erro e nova tentativa. Poderemos, no entanto, avançar sem cair no realismo míope da engenharia social de Karl Popper. Rejeito a idéia de só inovar aquilo que puder ser revertido. Não, uma revolução produz também o irreversível. Mas coloco uma outra questão, levantada por adversários do marxismo, em particular Isaiah Berlin: os partidários de utopias, quando chegam ao poder, como aconteceu exatamente nos países ditos socialistas, querem que a sociedade se enquadre nas suas concepções e fazem delas um leito de Procusto. Se não se enquadra, então que se mutile o organismo para que caiba no leito. Isto é exatamente perigoso. Stalin foi o utopista do socialismo num só país, e Pol Pot praticou o genocídio em nome de uma sociedade igualitária absoluta. Essas utopias produziram as tragédias que conhecemos. A meu ver, podemos e devemos encontrar na própria realidade social os objetivos concretos, possíveis e viáveis, para transformá-la. A revolução socialista sempre implicará luta e sacrifícios, Porém não precisará terminar tragicamente, como aconteceu no século XX.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate