Nacional

Nas eleições desse ano, é prudente a continuidade da frente de partidos de esquerda, de preferência, até, ampliando seu espectro, sem concessões de princípios e fugindo à tentação da "terceira via"

Na história do jornalismo brasileiro, há duas manchetes que, pela capacidade de síntese de retratarem os fatos reportados, mereceriam figurar em todos os livros-texto dos cursos de comunicação. Cerebralmente lapidadas, porque à época a criação era cerceada por uma diagramação pouco flexível, carente dos atuais programas informatizados, os dois títulos primorosos não se prestam apenas ao deleite nostálgico dos cultores do bom jornalismo.

Transpostas para a atualidade, ajustadas a novas circunstâncias e personagens, as duas manchetes conservam o princípio ativo de décadas atrás: uma ironia corrosiva condensada uma e outra somadas - em não mais que 35 caracteres (ou "toques", no jargão jornalístico).

A primeira delas, se não falha a memória, é da lavra de um redator do Jornal do Brasil, em resposta a um desafio de colegas da redação. Provocado, ele perpetrou o que todos julgavam impossível: redigiu, em três linhas de três toques, uma bombástica "chamada" (título de primeira página, destacando matéria interna).

JK:
FMI
NÃO

 

A segunda, cometida à época das obras faraônicas dos governos militares (tanto vale para a Transamazônica como para a Ponte Rio-Niterói), criticava o superfaturamento com uma mordacidade módica em palavras: "A metade já custou o dobro", dizia no alto da página antes de desfiar as cifras mirabolantes e o avançar das obras nem tanto.

Parafraseando-as para a atualidade, ficariam assim

FH:

FMI

SIM

sem necessidade de maiores comentários, haja visto o alinhamento automático às políticas do Fundo, numa servidão que perdura inclusive quando alguns economistas da instituição, convenientemente, parecem abjurar as convicções do ideário dominante.

Quanto aos custos do governo FH, ainda não tendo chegado à metade do segundo mandato, superam em demasia os das malsinadas obras. Pelo que se pagou nos primeiros cinco anos, dá para imaginar quanto custarão os três que ainda faltam. Pode-se dizer que a metade custou bem mais que o dobro. Só uma referência: a comemoração, pelas autoridades, dos cinco anos de Real, em julho último: 10,3 milhões de desempregados e mais 12,3 na mesma condição, embora ocultos nas cifras do trabalho precário.

A rápida digressão faz sentido, pois, imaginando-se FH um novo JK - é certo que ao avesso em popularidade e em rompantes anti-FMI -, tanto mais se prolongue sua política, tanto mais sobrelevarão os sacrifícios nacionais. Obra do destino, talvez, mas boa parte do primeiro mandato centrou-se, segundo o discurso oficial, no chamado "custo Brasil", que esteve para a nossa economia como estiveram o curupira, a mula-sem-cabeça ou o saci-pererê para os jecas nos cafundós.

Porém, diferentemente das assombrações, cuja existência ainda não foi comprovada, o "custo" do atraso, que seria vencido com as "reformas", prestes a se concluírem segundo FH, avoluma-se às nossas vistas.

Estrepitoso, o "custo" aparece estampado nas cifras bilionárias das dívidas interna e externa, que suplantam a metade do PIB. Ou na criminosa exploração do trabalho infantil, alvo do puxão de orelhas do presidente Clinton em Seattle. Mais globalmente, desponta no quadro crescente de exclusão, fazendo crer que "a população brasileira é absolutamente dispensável para o capitalismo brasileiro", para usar a aguda observação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, também um expert em FH.

Pode parecer exagero falar tanto de FH, logo agora que o narcotráfico monopoliza as atenções. Ou que a farra das privatizações (a privataria, como se diz) cobra seu preço junto a setores da população outrora deslumbrados e hoje indignados com a simultânea deterioração da qualidade e elevação das tarifas de serviços públicos.

Há razões de sobra, contudo, para que, na virada do milênio (quando o PT comemora 20 anos), uma observação ligeira do momento valorize a figura de FH, personificando o bloco de forças que se apossou do Brasil na última década.

Afinal, desde o início do ano que findou, FH esteve na alça de mira. Por causa da crise cambial, dos escândalos ministeriais, da dupla troca na presidência do Banco Central, ou pelo temor de a inflação recrudescer.

A sensação de fim de governo foi tal que ensejou a proposta de convocação antecipada de eleições, num artigo de Tarso Genro ("Por novas eleições presidenciais", Folha de S. Paulo, 25/01/99). Em seguida, o mesmo Tarso, em 16/05, também na Folha perguntava: "Será que não é hora de anunciar à sociedade que temos um presidente cada vez mais ilegítimo, um governo cada vez mais ilegal, uma relação Estado-corporações financeiras cada vez mais corrompida? Em janeiro eu não o dissera, só me preparava para isso. Agora, porém, creio que a revolta será menor: será que não basta de FHC?" ("A hora do iguana", pág. 3).

Entre o basta e o fora da palavra-de-ordem que ganhou as ruas consumiram-se horas em debates acalorados antes e durante o que deveria ter sido o 2º Congresso Nacional do PT, passando pelas maiores manifestações populares de protesto realizadas em período recente, como foi o caso da Marcha dos 100 Mil a Brasília. São quase imperceptíveis, sutis, as diferenças entre uma e outra. Pura semântica.

Mais difícil, contudo, é capturar o elo mais fraco da corrente que prende FH ao governo, derrotando sua política, batendo seus candidatos nas eleições municipais e, quem sabe até, abreviando seu mandato pelos meios previstos na Constituição.

O fato, porém, é que o descontentamento popular ainda aparece represado, sob a forma de apatia misturada com impotência, que as sondagens dos institutos não captam em toda magnitude e complexidade. No fundo, no fundo parece reinar o sentimento de que não há alternativas ao que aí está.

Até porque, tendo feito o que quis no primeiro governo, sem que a oposição conseguisse barrar o pior, fica a impressão de que faltam forças para alterar o rumo das coisas, ou, pior, fica a crença na impossibilidade de outro projeto: é o círculo de ferro do pensamento único. Que é uma espécie de não pensamento, pois esgota-se em si mesmo.

O próprio FH, em seu cinismo torpe, descreve bem a situação, em recente entrevista à revista Veja (22/12/99), ao confessar que "no começo do ano tive a sensação de que tudo o que havíamos construído poderia ir para o espaço". Para depois constatar, num fatalismo conveniente, o que o voluntarismo muitas vezes nos faz ignorar: "Eu acho que, apesar de ter havido alguns estremecimentos, represento o projeto hegemônico".

Para mantê-lo, o presidente-sociólogo imprimiu a seu governo um nítido conteúdo de direita. A ponto de o presidente da Internacional Socialista, o ex-premiê da França, Pierre Mauroy, haver vetado o ingresso do PSDB na entidade sob esta alegação. De fato, é um governo da direita e dos milionários este do PSDB-PFL, que impõe, desigualmente, enormes sacrifícios à sociedade para sustentar uma estabilidade monetária calcada no desemprego, em juros de agiota e numa abertura selvagem às importações.

Tão seguro parece estar a respeito da ausência de alternativas, seja no seu campo, seja na oposição, que FH diz-se disposto a botar o governo no "piloto automático" que não haverá problemas.

No imediato, ele administra as seqüelas da crise na Aeronáutica, onde remanescem alguns resquícios de hostilidade à criação de uma agência civil; tenta restringir o alcance do projeto de contenção das medidas provisórias em que é recordista e busca equacionar as votações das chamadas reformas para entrar de cabeça no ano eleitoral.

Evidente, entretanto, que entre seu discurso e a vida real há um descompasso enorme. Por exemplo, as escaramuças entre os partidos aliados e, mesmo, entre lideranças de um mesmo partido da base governista, como é o caso do PFL, no qual Bornhausen e ACM conduzem facções de concepção e interesses discrepantes - sobre a conjuntura e a estratégia (a composição do bloco no poder e a sucessão).

As estreitas ligações do governo com o grande capital, sobretudo a manifesta preferência pelos grupos financeiros, geram atritos e desentendimentos em setores do empresariado - patentes no debate da reforma tributária e nas escolhas de política econômica. A mudança de rota do BNDES, a cautela em posicionar-se a respeito da criação da AmBev e a indefinição sobre o destino da lntelig (empresa espelho da Embratel, cujo capital é controlado pelo mesmo grupo que detém 25% do capital da outra) são exemplos expressivos da saia justa em que FH está metido há algum tempo.

Incomodado, ele insiste em seu estilo tradicional: adia as soluções enquanto desqualifica os opositores. Mesmo os eventuais. Há pouco, investiu novamente contra a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), chamando-a de "atrasada", certamente porque seu presidente, Horácio Lafer Piva, deixou de calar diante da abertura desmesurada da economia local, que vem abatendo inúmeras empresas de sua base, numa espécie de seleção natural típica do neoliberalismo.

Seguro de que as elites apostaram todas as fichas nele, ainda assim FH tem uma carta na manga. Embora esconda o jogo, apressando-se em anunciar a volta aos livros que nos mandou esquecer um dia, o presidente sonha com o parlamentarismo. Se o caldo ameaçar entornar, a emenda para um novo plebiscito entra em pauta. E não se acuse de golpismo (esta palavra que faz tremer muitos de nós quando a oposição tensiona os limites da ordene vigente), pois o povo será chamado a opinar, embora seja descaradamente inconstitucional a nova tentativa de mudar o regime de governo.

Se é este o quadro do início do novo milênio, ano de eleições municipais em cidades com as finanças arrasadas pela política econômica oficial, pelo rompimento do pacto federativo e pela ausência de uma política urbana nacional, como deverão se comportar as oposições?

De saída, duas considerações para simplificar. Primeiro, parece óbvio ser prudente a continuidade da frente de partidos de esquerda que vem atuando no plano nacional. De preferência, até, ampliando seu espectro, sem concessões de princípios, mas tendo claro que uma plataforma de combate à concentração de renda e de riqueza, de rejeição à política excludente do atual modelo, pode ser capaz de engrossar o bloco oposicionista e torná-lo vitorioso na disputa eleitoral.

Depois, mas não por último nem desvinculado do ponto anterior, fugir à tentação da "terceira via", a chamada "retórica do medo", como bem a definiu o cientista político Adam Przetvorski. As eleições recentes no Chile falam por si sobre a inconveniência de pasteurizar o discurso ou de tentar ganhar rebaixando o programa, confundindo-se com o adversário.

Há um vasto campo de experiências inovadoras desenvolvidas pela esquerda em diversas prefeituras do país e do exterior. É a partir delas que devemos apresentar nossos projetos eleitorais, ajustando-os, por meio da crítica, a cada realidade particular. Sem cair no localismo, nem nas abstrações doutrinárias, vincular os exemplos e as propostas municipais/regionais à necessidade de promover transformações estruturais.

Nas condições atuais, em que as forças em presença estão desequilibradas, a ofensiva contra o "projeto hegemônico" que hoje FH representa passa pela disputa dos meios de comunicação, que moldam as idéias e o comportamento da população, e pelos governos municipais, onde as pessoas vivem. Assim, paralelamente à luta pela democratização da mídia, cabe à oposição, por meio do exemplo na condução de Políticas públicas de vasto alcance democrático, social e cultural, credenciar-se como alternativa.

Por isso, a campanha eleitoral, nossas plataformas, programas e governos, para sacudirem a modorra e a mesmice que FH tenta nos impingir terão de incorporar, além do diagnóstico de caos generalizado, o otimismo e a esperança que o neoliberalismo é incapaz de transmitir. Ou seja, para além do orçamento participativo, da renda mínima, da transparência, da inversão de prioridades, da reforma agrária, das alianças, nossas candidaturas terão de fazer uma crítica radical da ordem simbólica e cultural do sistema que domina o país.

Sem isto, será complicado motivar o eleitor em nossa direção. Mais complexo ainda atraí-lo para governar conosco e ser parceiro permanente em grandes empreitadas.

Rui Falcão é jornalista, membro do Conselho de Redação de TD

2002: o PT diante da esfinge

Já se tornou lugar comum dizer que as eleições municipais são um imenso trampolim para ganhar a Presidência da República. Sobretudo uma vitória nas capitais, particularmente São Paulo, seria meio caminho andado para chegar ao Palácio do Planalto.

Independente de não haver uma relação direta (basta lembrar que Lula perdeu feio em São Paulo em 1989, quando o PT estava na Prefeitura), conquistar São Paulo e outras grandes cidades é um trunfo considerável para o jogo da sucessão presidencial.

Este, por sinal, foi bastante antecipado desta vez. Não apenas porque o inferno astral de FH precipitou a disputa em seu próprio campo (ACM, Tasso Jereissati, José Serra, Mário Covas e outros menos ousados), mas porque as oposições se encorajaram a sair a campo.

Entusiasmado com o resultado da última eleição, Ciro Gomes deu a largada. Uma bateria de conferências, lançamento de livros, o súbito e descontrolado crescimento do seu PPS deram-lhe mídia suficiente para propor uma articulação nacional de onde sairia o futuro candidato. Não fosse a inclusão do governo no pacto (pouco divulgada, aliás), a frente de oposições poderia até pautar-se pela sugestão do ex-tucano.

Apesar do sotaque presente no linguajar ríspido que o aproxima de um ex-presidente nordestino, Ciro Gomes é de Pindamonhangaba, mas tem pouca base em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. Ademais, dizem os críticos, o país não precisa de um novo Collor...

Com grande desenvoltura lançou-se também o governador do Rio, Anthony Garotinho, embalado por uma administração que vem sendo elogiada e com bom trânsito em Brasília. Governando em parceria com o PT, embora em permanente conflito, Garotinho incompatibilizou-se com Brizola, a principal liderança do partido que lhe daria legenda. Por isso, se quiser mesmo candidatar-se em 2002, além de outras credenciais, pode começar a buscar outro partido - a menos que se recomponha com Brizola.

No PT, o dilema da última eleição continua: Lula é ou não candidato? O 2º Congresso preferiu não tocar no assunto. As lideranças nacionais falam em público o que, às vezes, não repetem em particular. Há campanhas na agulha a espera de uma palavra do presidente de honra...

A dúvida, no caso, é compreensível. Ela assola o próprio Lula, indeciso diante de ceder a seus desejos e desincumbir-se das responsabilidades que carrega. Para além das considerações de ordem histórica quando se trata do Lula, há ainda questões de ordem pragmática. Entre elas, as preocupações com as eleições parlamentares e de governadores, sempre atreladas a um patamar eleitoral inicial assegurado pelo prestígio de nossa liderança maior.

Antes de pensar em outros nomes, teme-se, também, pelos riscos de fracionamento, implícitos numa prévia nacional pela indicação do sucessor.

O fragor da campanha deste ano não aconselha um debate acerca do tema, que exige tempo e ponderação. Mas a preocupação com o assunto deve ocupar-nos a todos. Sem o que, ficaremos perplexos e imobilizados na hora de uma decisão.

Como já disse o filósofo tcheco Vilém Flusser, que lecionou em São Paulo até sua morte em 1991, "a dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé ou pode significar o começo de uma outra... Em dose moderada, estimula o pensamento. Em dose excessiva, paralisa toda atividade mental". RF