Cultura

Goethe jamais se cansou de perseguir a felicidade, concebida como realização pessoal e, simultaneamente, inserção ativa no movimento da comunidade humana

Johann Wolfgang Goethe nasceu na cidade de Frankfurt/Main em 28 de agosto de 1749. Os 250 anos de seu nascimento foram comemorados no mundo inteiro. O Brasil também participou das comemorações.

Quando Goethe nasceu, sua cidade natal tinha apenas 30 mil habitantes. A Alemanha não tinha unidade política, estava estilhaçada em mais de duzentas áreas administrativamente autônomas. Comparado à situação da França e da Inglaterra, o quadro em que viviam os alemães era de atraso, de periferia. As condições periféricas, provincianas, entretanto, não impediram o escritor de observar atentamente os movimentos da cultura européia. E foi com base nessa observação - no esforço para compreender sua experiência particular no âmbito mais amplo da história na qual essa experiência estava inserida - que Goethe veio a criar o conceito de "literatura mundial".

Sem abrir mão de seu enraizamento na cultura alemã, o escritor, desde cedo, mostrou-se capaz de captar e recriar literariamente sentimentos e preocupações que marcavam os horizontes da vida espiritual dos europeus, em geral, na segunda metade do século XVIII. E chegou a se abrir para um esforço de apreensão da riqueza das culturas orientais. (Num dos seus poemas se lê: "Quem de si mesmo é bem consciente e/ estende aos outros seus cuidados/ sabe que Oriente e Ocidente/ não podem mais ser separados")

A partir de um de seus primeiros livros - Os sofrimentos do jovem Werther (1774) -, Goethe se tornou uma celebridade. O livro foi publicado anonimamente, mas o autor acabou sendo identificado e vivamente aplaudido (ou asperamente condenado) por uma verdadeira multidão de leitores. Por meio de uma correspondência fictícia, Goethe reconstituía o drama de um jovem que se apaixonava por uma moça e, diante da impossibilidade de viver com ela, se suicidava. O romance epistolar foi interpretado por muitos como uma ilustração do conflito entre o sentimento exacerbado da paixão e a racionalidade que deveria prevalecer na vida prática. Na realidade, era a expressão de um choque entre duas "razões" que estão instaladas dentro de cada pessoa, nas condições históricas criadas pela hegemonia burguesa: a "razão" da busca apaixonada da felicidade individual e a "razão" do cálculo que precisa orientar a inserção de cada um na coletividade.

O filósofo e crítico Georg Lukács, num livro sobre Goethe e sua época, chama a nossa atenção para a importância do tema do amor na obra do autor do Werther. O amor, na esfera da vida privada, é uma manifestação excepcionalmente poderosa da necessidade da dimensão comunitária na vida dos indivíduos. Sem o amor, a existência da pessoa permanece dramaticamente incompleta: cada ser humano precisa não só se desenvolver por si mesmo, exercitando sua autonomia, como precisa também realizar valores da comunidade humana a que pertence.

O amor é a forma mais radical de "ir ao outro", de se reconhecer, intimamente, num ser humano diferente. E é nesse sentido que o poeta Goethe questiona o conselho socrático: "Conhece-te a ti mesmo". Quem ama (e Goethe se apaixonou muitas vezes) não tem a pretensão de se instalar no autoconhecimento, porque vive intensamente a aventura de sair de si e mergulhar na alteridade. Vale a pena lembrar, a propósito, dois versos nos quais o poeta diz: "Conhece-te a ti mesmo! - Para que me serve isso, enfim?/ Se pudesse conhecer-me, logo eu saía de mim".

Contudo, a aventura do amor é extremamente dificultada na sociedade burguesa. Na medida que gira em torno do mercado, a sociedade impõe aos sentimentos dos indivíduos os critérios quantificadores, a mensurabilidade que caracteriza a movimentação das mercadorias, com seus preços, suas cifras, sua tradução em dinheiro. O próprio amor passa a ser medido, avaliado em porcentagens (do tipo "estou 60% apaixonado", "te amo 25%"). E, quando o ímpeto da paixão é tão vigoroso que ultrapassa a possibilidade do cálculo, as conseqüências são catastróficas, como se viu no caso do Werther.

Já famoso, Goethe assumiu um cargo importante na corte do duque de Weimar. Combinava, então, atitudes respeitosas de cortesão, sempre marcadas por uma evidente cautela política (uma constante preocupação com a "preservação da ordem"), e um comportamento espontâneo, às vezes brincalhão e informal. Nessa época, o poeta chegou a escrever: "Quem faz acordo com os príncipes/ mais cedo ou mais tarde terá sucesso,/ quem procura se entender com a plebe/ perderá seu tempo". Antes de formularmos nossa avaliação a respeito dessa linha de conduta, devemos lembrar que a censura alemã era implacável e a produção cultural sofria os efeitos de um severo controle e de uma dura repressão. O próprio Goethe diria, mais tarde: "ser escritor na Alemanha significa ser mártir".

No presente caso, o escritor tinha múltiplas habilidades: equilibrava-se sobre pernas de pau, tocava flauta e violoncelo, era ceramista, desenhava, fazia gravuras, praticava equitação, dançava bem, falava francês, inglês e italiano, tinha algum conhecimento de outros idiomas (como o latim, o hebraico e a escrita árabe), porém era suficientemente lúcido para se reconhecer um amador pouco constante no cultivo desses talentos. Alimentou algumas pretensões na esfera científica: estudou direito, química, arquitetura, entomologia, anatomia, mineralogia, ótica, acústica e botânica. Porém, sua área de plena realização profissional era, sem dúvida, a da literatura em língua alemã.

Sua curiosidade intelectual era insaciável. Lia tudo, desde a Bíblia até o Corão, passando por Shakespeare, Byron, Manzoni, Homero, Victor Hugo, Calderón, Giordano Bruno, o poeta persa Hafiz, Espinosa, Kant e outros. Ao longo de sua vida, teve oportunidade de entrar em contato com figuras como os filósofos Schelling, Fichte, Schopenhauer e Hegel (que o visitou várias vezes), ou como os poetas Schiller (com quem manteve assídua correspondência durante 11 anos), Adam Mickiewicz, Heine e Hölderlin, ou como os compositores Beethoven e Félix Mendelssohn-Bartholdy, ou como os escritores Walter Scott, Carlyle, Thakeray, Herder, Alexander e Wilhelm Humboldt, Jacob e Wilhelm Grimm.

É difícil encontrar naquela época alguém que tivesse um quadro de referências tão amplo e tão rico entre os intelectuais europeus. A originalidade de Goethe, contudo, não estava na sua erudição, e sim na sua criatividade. As obras mostravam o que o autor tinha para dizer: lançavam uma luz indireta mas muito reveladora sobre o que o conselheiro do Ducado de Weimar preferia não falar pessoalmente.

Sua convicção veio a ser formulada uma vez como um princípio: as obras literárias que escrevia deveriam, segundo ele, contribuir para a nossa compreensão de como se articulam na história humana a liberdade e a necessidade, o individual e o coletivo. Deveriam, então, contribuir para a busca do "ponto no qual o que é próprio do nosso eu e o que é livre na nossa vontade se encontram com o movimento necessário do todo".

Esse ponto parece ter sido ao menos vislumbrado na peça Fausto, em cuja redação o autor trabalhou durante muitos anos. O enredo é conhecido: depois de ter dedicado praticamente toda a sua vida à ciência, o dr. Fausto tem a sensação de ter desperdiçado sua existência e se dispõe a vender sua alma ao demônio em troca de um momento de intensa felicidade, do qual ele pudesse dizer que gostaria que durasse para sempre. Mefistófeles (familiarmente, Mefisto), agente do Príncipe das Trevas, se dispõe a atender ao pedido.

A peça - que começou a ser escrita em 1773 e só foi concluída em 1831- gira em torno de uma espécie de duelo entre Fausto e Mefisto, que não deixa de ser, em certo sentido, também um duelo de Fausto consigo mesmo.

O representante do demônio, humanizado, é um brilhante argumentador, que explora a decepção do seu interlocutor com o caráter abstrato da teoria, advertindo-o de que "cinzenta é toda teoria/ e verde é a esplendorosa árvore da vida". O cientista desiludido, contudo, não parece se impressionar demasiadamente com a retórica e prefere os atos às palavras (por isso se dispõe a corrigir o Velho Testamento e, em vez de "No princípio era o Verbo", sustenta que "no começo era a Ação").

Fausto pede, então, a Mefisto que use seus poderes para seduzir a jovem, linda e virtuosa Margarida. Consumada a sedução, Fausto ainda não se dá por plenamente satisfeito e continua suas andanças pelo mundo. Até que, já velho e cego, decide mandar drenarem um pântano para ajudar algumas pessoas a se instalarem no local. Imaginando a vida feliz da comunidade que passaria a viver ali, o ancião declara que gostaria que aquele instante se eternizasse e, em seguida, morre. Mefisto, que lhe havia proporcionado tantos momentos de intenso prazer, não entende o que havia acontecido e reflete: "Coitado! Queria preservar justamente esse último momento, tão pobre e tão vazio". No entanto, o que ocorria era a experiência que levava Fausto a se sentir integrado, amorosamente, a um movimento que envolvia outras criaturas e ia além dele, superando os horizontes do seu individualismo. Graças a essa descoberta, que o tornava efetivamente capaz de amar, Fausto pode ter a sua alma salva (Mefisto se sentiu logrado!), por intercessão de Margarida, a moça que ele havia seduzido e que se apaixonara por ele.

O tema do amor está presente o tempo todo não só no Fausto e no Werther como em inúmeras outras obras de Goethe. Podemos encontrá-lo, obviamente, na volumosa e fascinante obra lírica do poeta. Além disso, ele está no centro das andanças e peripécias romanescas do Wilhelm Meister, o inquieto jovem que é loucamente amado por Mignon e acaba se casando com Natalie. Está no coração da peça Stella (que um crítico conservador hostil classificou como uma "escola de poligamia") e está na própria estruturado romance As afinidades eletivas (1809), que narra como o casal Eduard e Charlotte entra em crise, como Eduard se apaixona pela sobrinha de sua mulher e como Charlotte se apaixona por um capitão, amigo do seu marido.

O amor, tal como Goethe o concebe, comporta formas degradadas e degradantes, porém permite ao ser humano elevar-se a um nível sublime, no qual o homem ultrapassa as fronteiras da sua mera individualidade. E a força do amor é estritamente terrena: nele, o que há de divino é rigorosamente humano; a transcendência é imanente. Goethe é um cristão que - como observou José Guilherme Merquior - não acredita, de modo algum, no pecado original. Quando a alma de Fausto sobe ao céu, em meio a uma parafernália celestial, os anjos que povoam a cena não impedem que o leitor/ espectador perceba que o cientista escapou do demônio por força de um amor cem por cento terreno: o amor de Margarida.

E é esse amor humano que entra inevitavelmente em choque com as normas instituídas tanto pelos aristocratas como pelos burgueses; entra em choque aliás, com os próprios princípios do conservadorismo. Como combinar a paixão amorosa - que irrompe nas pessoas de maneira incontrolável - com a estabilidade do casamento, com uma sólida organização familiar, pilar da sociedade burguesa, em cujos valores Goethe evidentemente acreditava - e não podia deixar de acreditar?

Goethe nunca deixou de defender, na literatura e na vida, a legitimidade do amor. Em Weimar, ele namorava uma moça de origem humilde, Christianne Vulpius, que fazia flores de pano para ganhar a vida. Enquanto eram amantes, a corte não via nada demais na ligação. Após sua viagem à Itália (de 1786 a 1788), porém, Goethe passou a viver maritalmente com Christianne, e afinal casou-se com ela, em 1808. Isso lhe valeu os incômodos de uma surda campanha por parte de setores aristocráticos, que não o perdoavam por sua "lascívia", por sua "luxúria", por sua "libertinagem" ou por seu "mau gosto".

Mais tarde, já viúvo, com 74 anos de idade, Goethe se apaixonou por Ulrike von Lewetzov, uma jovem de 18 anos, filha de um casal de amigos bem mais moços que ele. Sem se deixar intimidar pela pressão da opinião pública ou pelo estigma do "ridículo", sem fazer concessões a convenções aristocráticas ou burguesas, sem moldar seu comportamento de acordo com o que se esperava da "compostura" de um "velho escritor consagrado", de um "monumento nacional", Goethe pediu Ulrike em casamento. E, quando ela recusou, polidamente, o autor do Fausto, frustrado em seu amor, sofreu muito e escreveu magníficos poemas.

Até sua morte, em 22 de março de 1832, Goethe jamais se cansou de perseguir a felicidade, concebida como realização pessoal e, simultaneamente, inserção ativa no movimento da humanidade, da comunidade humana. Num temperamento conciliador, num súdito nada revolucionário, esse terá sido o traço "subversivo" que confere maior vitalidade à sua personalidade e aos seus escritos.

Foi por sua permanente disposição para assumir o amor, cora suas peculiares desmesuras, que ele questionou tanto o formalismo rigidamente hierárquico da ideologia feudal como o utilitarismo intrínseco e a lógica abusivamente quantificadora, calculista, da ideologia burguesa.

O preço pago por essa opção foi alto. Muitas e dolorosas decepções lhe foram impostas. Mas o poeta, já na sua juventude, respondia a um crítico reafirmando sua enorme capacidade de sempre recomeçar a caminhada justa, por mais rudes que pudessem ser os golpes que a interrompessem. Numa lição importante, que nós hoje não podemos deixar de recordar, Goethe escreveu: "Querias, por acaso,/ que eu odiasse a vida/ e fosse para o deserto/ porque nem todos os sonhos/ em flor deram certo?".

Leandro Konder é professor no Departamento de Educação da PUC-RJ