Cultura

Ao distinguir "Oriente" e "Ocidente", Gramsci não só renovou a teoria marxista do Estado, como também criou um novo paradigma de revolução socialista, adequado ao "Ocidente", bastante diverso do modelo bolchevique

Ao contrário do que supõem os conservadores e alguns ex-marxistas hoje "arrependidos", o colapso do chamado "socialismo real" não significou o fim da reflexão que se inspira em Marx e na tradição marxista. Decerto, este colapso representou a crise terminal de uma específica leitura de Marx, o chamado "marxismo-leninisrno", que não passava na verdade de um hábil pseudônimo para stalinismo. Esta leitura serviu como ideologia de Estado para os regimes ditos "comunistas", os quais nada mais tinham a ver com as promessas de emancipação humana contidas na reflexão de Marx e dos verdadeiros marxistas.

O que se pode constatar hoje é que alguns autores marxistas, os menos comprometidos com aquela equivocada leitura, começaram até mesmo a ser lidos com maior atenção depois do fim do "socialismo real", precisamente no momento em que foi suprimida a grave hipoteca do chamado "marxismo-leninismo". Entre tais autores, cabe destacar os integrantes da Escola de Frankfurt (em particular Walter Benjamin), mas, sobretudo, Antonio Gramsci. Embora sejam certamente muito diferentes entre si, Benjamin e Gramsci nada têm a ver com o "marxismo-leninismo". Benjamin era politicamente um free-lancer. Gramsci, ao contrário, era ligado à Internacional Comunista, considerava-se um seguidor de Lenin, mas inaugura na verdade um modo novo de interpretar o marxismo, sobretudo na esfera da teoria política, bem diverso daquele oriundo da tradição bolchevique.

Em sua obra da maturidade, redigida nos cárceres fascistas, Gramsci elaborou alguns conceitos que renovaram profundamente a teoria marxista. Dois deles, em particular, merecem destaque: os conceitos dialeticamente articulados de "sociedade civil" e de "hegemonia". Foi principalmente graças a eles que o marxismo se tornou contemporâneo do século XX e, com toda probabilidade, também do século XXI. Gramsci percebeu que, sobretudo a partir de 1870, havia surgido uma nova esfera do ser social capitalista: o mundo das auto-organizações, do que ele chamou de "aparelhos privados de hegemonia". São os partidos de massa, os sindicatos, as diferentes associações, os movimentos sociais etc., tudo aquilo que resulta de uma crescente "socialização da política", ou seja, do ingresso na esfera pública de um número cada vez maior de novos sujeitos políticos individuais e coletivos.

Gramsci deu a essa nova esfera o nome de "sociedade civil". E insistiu em que tal esfera faz parte do Estado em sentido amplo, já que nela têm lugar evidentes relações de poder. A "sociedade civil", em Gramsci, é uma importante arena da luta de classes: a partir de seu surgimento, é sobretudo nela que as classes lutam para obter hegemonia, ou seja, direção política fundada no consenso, capacitando-se assim para a conquista e o exercício do poder governamental. A "sociedade civil" gramsciana nada tem a ver com essa coisa amorfa que hoje chamam de "terceiro setor", pretensamente situado para além do Estado e do mercado.

Ao descobrir essa nova esfera, ao dar-lhe um nome e ao definir seu espaço, Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. E é preciso sublinhar os dois adjetivos: nova, mas também marxista. A novidade introduzida por Gramsci consiste na percepção de que o Estado não é mais o simples "comitê executivo da burguesia", corno Marx e Engels afirmam no Manifesto Comunista de 1848 e Lenin e os bolcheviques repetem em suas obras. Mas a permanência de Gramsci no campo do marxismo é atestada pelo fato inequívoco de que ele continua a afirmar que todo Estado é um Estado de classe.

Decerto, depois do surgimento da "sociedade civil", o modo pelo qual é exercido o poder de classe se altera: o Estado se amplia, tornando-se mais complexo. Buscar hegemonia, lutar pelo consenso, tentar legitimar-se: tudo isso significa que o Estado deve agora levar em conta outros interesses que não os restritos da classe dominante. Com seus novos conceitos, Gramsci habilitou-se a entender o tipo de Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos, um Estado que Marx não pôde conhecer e que nada tinha a ver com a autocracia czarista com a qual Lenin se confrontou. Mas isso não impediu Gramsci de continuar afirmando que, em todo Estado, por mais complexo que seja, por mais interesses que seja obrigado a levar em conta em sua atuação, permanece um "núcleo duro", aquele que define a sua natureza como agência de dominação da classe que detém a propriedade dos meios de produção.

Essa nova definição do Estado resulta de um outro conceito central na obra de Gramsci: aquele que distingue, no seio do capitalismo, entre formações sociais "orientais" e "ocidentais". Para Gramsci, no que ele chama de "Oriente" (pensando sobretudo na Rússia czarista), o Estado em sentido estrito é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa. Já no que chama de "Ocidente" (pensando aqui na Europa Central e Ocidental e nos Estados Unidos), há um equilíbrio entre as duas esferas. Foi a partir dessa distinção que Gramsci não só renovou a teoria marxista do Estado, mas também se empenhou em criar um novo paradigma de revolução socialista, adequado precisamente ao "Ocidente", bastante diverso daquele proposto e praticado pelos bolcheviques. Este último, em sua opinião, seria válido apenas para sociedades "orientais", bem como para aquelas que ele chama de sociedades "coloniais" ou "semicoloniais".

Coloca-se claramente uma questão: em qual desses dois "tipos" de sociedade se situa o Brasil? Decerto, o Brasil foi claramente "oriental" durante o Império e a República Velha. Mas, sobretudo a partir de 30, com interrupções, com avanços e recuos, conhecemos um processo de "ocidentalização", de crescimento e complexificação da sociedade civil. Já somos hoje uma sociedade "ocidental", na qual, portanto, malgrado tudo, há uma "relação equilibrada" entre Estado e sociedade civil. Malgrado tudo porque, sem dúvida, somos um "Ocidente" periférico e tardio, o que implica a permanência entre nós de vastas zonas tipicamente "orientais". Mas esse era também o caso da Itália nos anos 30 - e Gramsci não hesitou, por isso, em considerá-la corno parte do "Ocidente".

A correta caracterização da sociedade brasileira tem claras implicações na definição das tarefas que se colocam às forças de esquerda no Brasil de hoje. Se efetivamente somos sobretudo "Ocidente", não mais podemos conceber um caminho exeqüível para o socialismo a partir do que ainda existe em nós de "orientalidade": essa é uma tentação à qual ainda sucumbem alguns setores minoritários da esquerda, que parecem não ter aprendido a lição do fracasso da chamada "esquerda armada" nos anos 60 e 70. O caminho brasileiro para o socialismo deve respeitar essa nossa "ocidentalidade", ou seja, deve basear-se numa paciente batalha pela hegemonia, pela conquista de espaços na sociedade civil, como condição prévia para a efetiva conquista do poder governamental. Embora a expressão não seja de Gramsci, esse caminho "ocidental" para o socialismo pode ser chamado de "reformismo revolucionário".

Foram muitas as leituras de Gramsci no Brasil. Além de influenciar inúmeras pesquisas em múltiplas áreas universitárias (da teoria política à pedagogia, da sociologia à crítica literária, da filosofia ao serviço social), Gramsci continua a determinar a orientação de muitos debates políticos entre nós. Do PSTU ao PPS, passando pelas várias correntes internas do PT, Gramsci é uma referência essencial para boa parte da esquerda e da chamada centro-esquerda brasileiras. E não só da esquerda ou da centro-esquerda: até mesmo o presidente Cardoso, há cerca de um ano, numa entrevista à revista Veja, usou hipocritamente Gramsci para justificar suas posições políticas neoliberais.

Embora os Cadernos do cárcere possuam uma articulação interna sistemática, a sua forma de apresentação é claramente fragmentária: isso parece permitir múltiplas interpretações, como se a obra de Gramsci fosse uma "obra aberta". Não creio que o seja: Gramsci era um comunista, refletiu sobre as condições da revolução socialista no que ele chamou de "Ocidente", propondo uma estratégia diversa daquela dos bolcheviques na Rússia de 1917. Mas o fato de que sua interpretação provoque acesos debates, que tanto o PSTU quanto o presidente Cardoso possam citá-lo com aprovação, parece-me uma prova de que é preciso relê-lo com atenção. Nada melhor para isso do que uma nova edição crítica de sua obra entre nós. Uma edição que o apresente sem prévias hipotecas interpretativas.

Republicar e rediscutir Gramsci no Brasil tornou-se assim uma demanda real. A batalha ideológica em nosso país assumiu recentemente um rumo paradoxal. Precisamente no momento em que parece começar a ruir a hegemonia do "pensamento único", do pensamento neoliberal, importantes personalidades da esquerda resolveram colocar em discussão a opção pelo socialismo. Precisamente no momento em que o capitalismo, no mundo e em nosso país, manifesta claramente a sua incapacidade de solucionar minimamente os problemas da humanidade - os constantes problemas da liberdade, da igualdade e da fraternidade-, essas personalidades de esquerda parecem querer recusar liminarmente a única alternativa exeqüível à barbárie em que estamos envolvidos: a luta pela construção de uma ordem social socialista.

Essa renúncia a uma efetiva alternativa ao capitalismo baseia-se, muitas vezes, na falsa idéia de que haveria identidade entre socialismo e ditadura, entre socialismo e estatismo, ou que o socialismo seria concebido pelo marxismo como uma fatalidade inexorável. Ora, os que assim argumentam certamente não leram nem Marx nem Gramsci: ao contrário, acreditaram ter aprendido marxismo por intermédio dos esquemáticos folhetos de Mao Tse-Tung ou dos pífios manuais publicados em massa pela extinta "Academia de Ciências da União Soviética".

Para Gramsci, ao contrário dessas falsas "fontes", o socialismo é definido como uma "sociedade regulada", na qual os mecanismos coercitivos do Estado strictu sensu devem ser progressivamente absorvidos pelos aparelhos consensuais da "sociedade civil". Para ele, portanto, todas as coerções heterônomas e alienadas, sejam elas resultantes do mercado ou da burocracia, devem ser substituídas progressivamente por relações fundadas num contrato livremente decidido entre os "produtores associados", fundado naquilo que ele chamou de "consenso". Além disso, Gramsci sempre criticou as leituras fatalistas do marxismo, que previam uma marcha inexorável para o socialismo: chamou-as de narcóticos, afirmando claramente que elas impediam o pleno exercício de uma vontade coletiva autônoma e criadora. Para o autor dos Cadernos do cárcere, o socialismo é obra dos homens. Não é uma necessidade objetiva, no sentido de que seria determinado de modo fatalista pelas "condições materiais"; mas é uma necessidade subjetiva, no sentido de que só por intermédio de sua realização os homens podem efetivamente cumprir as promessas de emancipação contidas na modernidade.

No cárcere fascista, de resto, Gramsci se opôs duramente às propostas de socialismo formuladas e implementadas por Stalin. Mas nunca abandonou a sua convicção juvenil de que a Revolução de Outubro abrira uma nova etapa na luta da humanidade contra a exploração e a alienação. Ele sabia que essa luta era difícil e complexa, que o capitalismo dispunha de inumeráveis recursos, entre os quais os dispositivos postos em prática pelo que ele chamou de "americanismo". Mas jamais renunciou a travara luta pelo comunismo, por aquilo que definiu sob a pressão da censura carcerária - como "sociedade regulada". Por tudo isso, a máxima que adotou como inspiração para sua reflexão e sua ação mantém toda sua atualidade: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Então, por que Gramsci? Porque, precisamente ao nos ensinar a compreender o capitalismo do século XX, ele nos indicou também a necessidade de lutar contra ele. O que significa que é bastante clara a tarefa que ele nos legou: a de reinventar um socialismo adequado ao século XXI.

Carlos Nelson Coutinho é professor de Teoria Política na UFRJ e membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate. Autor de Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, entre outros livros