Cultura

Entrevista com Antônio Nóbrega

O que ele é? Dançarino, músico, ator, mímico? Quem sabe, porções misturadas de tudo isso! Ele se define como um "camelô das artes , mas se vê, antes de tudo, como músico e dançarino.

Nascido em Recife, ainda menino Antônio Nóbrega acompanhava as andanças do pai médico pelo interior. Foram os primeiros contatos com um mundo que um dia iria enfeitiçá-lo.

Começou a estudar violino com 12 anos. Por que violino? Porque a professora viável, D. Belinha, ensinava violino. Até então, nenhum sinal de pendores artísticos dignos de nota. E só com o catalão Luiz Soler, seu professor por dez anos, é que começou a se adestrar nos segredos da melhor técnica violinística. Nessa época, com as irmãs, freqüentava a Escola de Belas Artes.

Com 18 anos, já tocando em orquestras, foi convidado por Ariano Suassuna para integrar o Quinteto Armorial. A partir daí, a música clássica e o repertório MPB que tocava com as irmãs deram lugar a uma outra música baseada na música popular nordestina. O Quinteto Armorial, com sonoridade ao mesmo tempo requintada e acessível, protagonizará uma pequena revolução na música brasileira. Ao longo dos anos 70, ensaios, apresentações, turnês pelo Brasil e exterior e gravações de discos farão a nova rotina de Antônio Nóbrega.

O aprendizado de outras linguagens, a dança principalmente, começa nessa época, junto às mesmas fontes populares de onde vinha a música, sistematicamente pesquisadas. Essa nova fase acentua-se com o fim do Quinteto Armorial. A carreira solo rendeu, desde então, espetáculos como Brincante, O reino do meio-dia, Figural, Na pancada do Ganzá, Madeira que cupim não rói, Sol a pino, alguns gravados em CD. No Teatro-Escola Brincante, criado em São Paulo, com Rosane Almeida, esposa e atriz, recebe com freqüência um público cada vez mais amplo e fiel, do mesmo modo que em suas apresentações país a fora. O sucesso na Bienal de Dança de Lyon, em 1996, e no Festival de Teatro de Avignon confirma o que já acontecia no Brasil.

Você está começando espetáculo novo?
Na verdade é uma aula-espetáculo, o Sol a pino, elaborada durante os últimos cinco anos, pelo menos. Convites me eram feitos para que dissertasse sobre a linha do meu trabalho, referências, fontes de inspiração, a cultura popular. Fui organizando unia espécie de conferência-espetacular. Mas o caráter de espetáculo se sobrepunha à conferência. São cantos e danças que entremeio com informações sobre o meu envolvimento com os fazedores desses cantos, seus brincantes, até reflexões sobre a cultura popular, a brasileira, a chamada cultura universal e as relações entre elas. Apresentei Sol a pino em vários lugares do Brasil e só agora vou fazer aqui em São Paulo.

Quando estudava com Luiz Soler, qual era o repertório?
O violino só é ensinado no conservatório por meio da chamada música erudita. Nisso ele é diferente da flauta, do violão, que você pode estudar para tocar apenas música flamenga ou choro. O aprendizado da técnica de qualquer instrumento depende muito do repertório a que você vai se dedicar. No violino, assim deveria ser.

Eu cheguei a estudar um concerto de Mozart e a trabalhar o de Mendelssohn, que abre as portas para os concertos românticos. Os três grandes concertos românticos de violino são os de Brahms, Tchaikovski e Beethoven, todos em ré maior. O de Mendelssohn, em mi menor, traz dificuldades que preparam para os outros três, mas não saí do primeiro movimento. A minha intimidade maior era com Bach. Estudei um concerto seu para dois violinos e outro em mi maior, que até hoje guardo como peças de meu repertório.

E o trabalho que fazia com suas irmãs?
Tocávamos música popular urbana que escutávamos nas rádios, de Chico Buarque aos Beatles. Tocávamos em festas, nos apresentamos na TV. Tínhamos uma formação clássica, mas só eu e a Eugênia, que é flautista, permanecermos músicos. A partir dos 18 anos tudo isso foi se dissolvendo.

Foi um momento de crise? Ela surgiu antes de você conhecer Ariano Suassuna?
Foi uma crise sem dor nem conflito. O Ariano me convidou para tocar violino e rabeca, fazer um tipo de música que eu não tinha o hábito de tocar, mas que logo me cativou, despertando em mim um enorme interesse.

Em que consistia esse novo repertório?
No começo, o Armorial era formado por viola, violão, flauta e violino, depois colocamos o marimbau e virou quinteto. O repertório inicial, da autoria de Antônio José Madureira, coordenador do grupo, grande compositor e violonista, era inspirado no amplo universo da cultura musical popular nordestina.

Quais as características das composições do Madureira para o Quinteto Armorial?
Primeiro, era música instrumental, e a formação do quarteto era também muito característica. Não um quarteto de cordas tradicional, nem na formação nem no tipo de música. A sonoridade, por si só, fazia uma grande diferença. E a música era de caráter sobretudo modal e, ao contrário da nossa música urbana, que valoriza muito a harmonia, estava mais inserida nos cânones da música do sertão, mais austera. As primeiras foram Repente, Toré, Revoada. Foi com elas que fui batizado no Armorial. Portanto a sonoridade, o modalismo e o ritmo traziam grande diferença em relação a tudo que eu conhecia.

Como foi seu aprendizado desse novo estilo?
Aquela música me obrigava a uni modo de interpretação também diferente. Eu não poderia usar da mesma técnica interpretativa, dos mesmos procedimentos, apogiaturas, vibratos ou acentuações utilizadas, por exemplo, no concerto de Mendelssohn. Era outra linguagem, com o acento rítmico forte típico da música popular brasileira.

Como vocês lidaram com o ritmo?
Utilizamos vários instrumentos de percussão: bombo, ganzá, pandeiro, reco-reco etc. E, por meio do contraponto, encontramos um parentesco da nossa música com a música barroca.

Mas a música barroca não é modal...
Não é, mas quando começamos a incursionar pelo universo da música não-modal, nos pareceu que havia esse parentesco. Percebíamos que o choro se aproximava muito da música barroca. Tanto é que posteriormente, até para provar essa semelhança, gravei o primeiro movimento de um concerto de Bach, com pandeiro, cavaquinho, acordeão etc. O violão de sete cordas lembra muito o baixo contínuo da música barroca.

Mas o mais importante é que eu queria tocar meu violino com as acentuações próprias daquela música, tal como o violinista cigano, hindu, árabe ou judeu fazem em relação à música deles. Era preciso colocar o instrumento a serviço de uma nova linguagem musical.

Como chegar a este resultado?
Fui estudar o rabequeiro, o tocador de rabeca. Visto pelo violinista, ele tem grandes limitações técnicas, a começar pela maneira de segurar o instrumento, no ombro e não no queixo. Assim, pode cantar enquanto toca, mas perde a mobilidade da mão esquerda no braço do instrumento, já que ela, além de tocar, sustenta o violino. Quando seguro o instrumento corri o queixo, ganho mobilidade, a mão fica solta, mais livre para tocar. O rabequeiro, em compensação, está profundamente ligado ao chão coletivo da nossa música. Por isso adota certos procedimentos muito próprios da cultura em que se insere.

A música é um grande atestado da alma de um povo, da maneira de ser, de andar, de falar, até mesmo a língua tem uma musicalidade própria, e o artista que toca reflete essa musicalidade. O mesmo pode ser dito das outras linguagens artísticas. As nossas danças também devem expressar a nossa maneira de ser. Não importa se o rabequeiro tem uma técnica limitada, o fato é que ele toca numa comunhão profunda com o espírito do seu povo.

No caso da música popular, este espírito se manifesta principalmente na síncopa, que é o tempo forte estar sempre fora do chão. Se bato oito semicolcheias numa música européia (demonstra, sapateando), mantenho o acento rítmico distribuído por igual. Nós temos a tendência a fazer esse desenho irregular, com outras acentuações, o tempo forte no ar, e não no chão.

Segundo Mário de Andrade, a síncopa define o caráter da música popular brasileira. Ele pendurou uma espécie de nacionalismo em cima da síncopa. É uma questão muito discutida, e não é só quanto à nossa música, mas também à de Cuba, ao jazz, à música popular urbana dos lugares onde o europeu foi modificado pelo africano.
A síncopa nos foi dada sobretudo pela música e dança dos negros, que são regidas pelo princípio feminino, enquanto a música européia é regida pelo princípio masculino. Não posso me distanciar desses dois princípios, eles clareiam muito o meu entendimento de cultura popular e mesmo do ser Brasil.

O que você entende por princípios masculino e feminino?
Mais do que defini-los, eu os compreendo como princípios que se complementam e se opõem. É como se, dentro da nossa cultura, tivéssemos a possibilidade de unir esses princípios. Na Europa, esta união esteve presente na música barroca, por exemplo, mas, com o classicismo, se enfraqueceu. O romantismo tentou retomar esse espírito de união, mas de uma forma hipertrofiada. Tanto é que danço facilmente uma música de Bach, por exemplo. O meu corpo cede aos impulsos da música barroca, mas só com alguma dificuldade é que cede aos impulsos da música clássica.

Você identifica a síncopa com o princípio feminino?
Identifico sim, em oposição ao masculino, ao primado do rigor, da forma geométrica, da visão cartesiana do mundo. Poderíamos chamá-los de princípios apolíneo e dionisíaco talvez.

A improvisação também está dentro do princípio feminino?
Acredito que o espírito de improvisação esteja mais de acordo com o princípio feminino. Mas isso tudo são afirmações gerais guiadas principalmente pela intuição.

Você não corre o risco de cair na velha história de que o racional é masculino e o não-racional é feminino, de que a mulher não teria aptidão para o cartesiano, o rigoroso?
Acredito que guardamos em nós as duas características, a masculina e a feminina, sejamos homens ou mulheres. Mas é claro que o homem interage mais por meio do princípio masculino e a mulher do feminino. Até no atirar uma pedra você vê a diferença de procedimento (levanta-se para demonstrar), quando a mulher joga é mais sutil, enquanto o homem é mais brusco. Essas distintas qualidades de movimento também se refletem na dança.

O que o motivou na sua primeira conversa com Ariano Suassuna?
Não foi uma catequese intelectual, não! Eu tinha 18 anos, ele me viu tocando violino num concerto em Recife e me convidou para integrar o Quinteto Armorial. Houve, sim, muita empatia de minha parte pelo que ele falava, propunha. Os ensaios eram realizados em sua casa, para onde acorriam outros músicos, escritores, poetas, artistas plásticos. Às vezes vinha Brennand, Miguel dos Santos, Marcos Accioli, o que dava uma conversalhada boa danada. Nós tocávamos e conversávamos, num misto de ensaio e sarau. Aquilo, para um jovem de 18 anos interessado em cultura, era uma oportunidade raríssima.

Vamos voltar ao estudo do rabequeiro?
Então, fui conhecer os músicos populares tomado por um desejo arrebatador de aprender aqueles cantos, aqueles toques e danças. Fui ver e escutar não só o rabequeiro, mas o tocador de pífaro, o tocador de viola, o de marimbau etc.

E foi saindo do violino para a rabeca?
Não, fui alternando. Na rabeca toco coisas mais simples, os recursos dela são limitados para uma música mais elaborada. Recriação popular do violino, a rabeca é um instrumento tosco, fabricado pelo próprio músico, que muitas vezes está de dia no campo e de noite vai tocar. Este homem constrói o instrumento com base num conhecimento empírico e com a madeira que está mais próxima.

Já o violino é uma rabeca refinada, oferece mais possibilidades para o músico tocar e compor. Um momento decisivo de sua evolução ocorreu em Cremona (Itália), com Antonio Stradivarius, Guarnieri, del Gesù. Mas mesmo após esses grandes mestres luthiers o violino ainda se modificou. A barra harmônica e o braço se modificaram para atender ao novo repertório composto para ele. A substituição do ambiente palaciano pela sala de concerto exigiu maior volume sonoro. O arco, que era côncavo, tornou-se ligeiramente convexo, a trasteira ampliou-se para possibilitar as notas reais agudas do repertório romântico. Todo o instrumental da música barroca foi transformado, para dar origem aos instrumentos modernos. O violino gastou uns três ou quatro séculos para se tornar uma dessas maravilhas que o engenho humano criou. Todo de madeira, construído integralmente pelas mãos do homem que ao mesmo tempo é escultor, marceneiro, conhecedor das leis da acústica e às vezes músico.

O violino que eu toco é uma maravilha, feito por um luthier brasileiro, laureado em Cremona, Saulo Dantas Barreto, que ainda mora por lá. Dei-lhe o nome de Ingá, porque pedi ao Saulo que incrustasse nele reproduções dos desenhos rupestres da Pedra do Ingá. Além da sonoridade, ele oferece recursos tão grandes que seria um contra-senso substituí-lo por uma rabeca, pelo menos para tocar o tipo de música que me proponho. É como se eu pegasse um violão mal construído para tocar uma peça de Villa-Lobos. Quando você quer expressar uma música com a beleza e a verdade que lhe correspondem, você procura o instrumento ideal para isso.

Você obtém no violino uma sonoridade próxima da rabeca?
É isso que procuro, transpor para meu instrumento os procedimentos, os acentos rítmicos da música brasileira. O fundamental não é o instrumento, é o domínio da linguagem e da técnica apropriadas a ela, o tipo de apogiatura, o vibrato, o jogo do arco. Por intermédio do meu violino, procure expressar uma música brasileira, cuja maneira de tocar encontrei nos rabequeiros populares, que guardam todo o saber da tradição.

Por exemplo, estou interessado em tocar frevos e choros no violino, cuja trajetória é ao mesmo tempo rica e elitista. Foi um instrumento popular muito utilizado, mas a partir de certo momento ficou encastelado nas músicas sinfônica e de câmara. Raramente você vê por exemplo, um violinista tocador de choro. É o contrário do que ocorre com a flauta e o violão.

Eu pergunto, por que o violino não pode tocar um frevo, um choro? Essa é uma das minhas maiores tarefas nesse momento. Apesar da agenda puxada, procuro estudar violino pelo menos duas horas por dia. São dois os desafios maiores que me apaixonam, a dança e o violino. Me acho até na obrigação de colaborar na diversificação do repertório do violinista brasileiro, sugerindo-lhe tocar música brasileira de qualquer gênero, mas de qualidade.

E não pense que não é necessário ter boa técnica para tocar um choro no violino. A vida é um buraco, de Pixinguinha, por exemplo, exige certo domínio do instrumento. E seria equivocado tocar um choro ou um frevo no violino com o sotaque da música que se toca na orquestra sinfônica. Se quero tocar choro, tenho que escutar choro, ver como aquela música se articula, como é o seu fraseado, o seu ritmo, e fazer isso no violino. Do contrário, vai ficar postiço, artificial.

Como se deu a passagem para outras linguagens, como a dança?
Ainda hoje não sei porque a dança me seduziu tanto. Guardo em mim certa composição do humor, uma inclinação pelo picaresco, que aliás está muito presente no meu trabalho. Eu me afeiçoei sobretudo a uma figura do Bumba-meu-boi, o mateus, espécie de palhaço. Eu via aquelas mungangas e trejeitos que eles faziam, especialmente o Mateus Guariba. Porque existe o gênero de figura, o mateus, e os nomes que o personalizam, o Mateus Cravo do Dia, o Mateus Fulô da Noite, o Mateus Guariba etc. Estudei os mateus, os puxantes dos Cabocolinhos, os dançadores de maracatu. Via um passista de frevo fazendo aqueles movimentos e rue dava uma vontade danada de aprender o que ele fazia. Aí fui aprendendo, aprendendo...

Tudo a partir da música, do violino?
O violino foi a ponte, o portal.

Para fazer pesquisa, você viaja, vai aos lugares?
Comecei pelo Recife. Tinha um mestre de bumba-meu-boi chamado Capitão Antonio Pereira, porque essa era a sua função no Brinquedo. Teve urna época em que eu ia a sua casa três, quatro vezes por semana. Ia até ao mangue aprender a fazer as figuras. Ia buscar cipó de jacupiranga, botar na água, tirar, colocar para secar, botar na água novamente, e fazer a armação do boi. Depois pegava um desses sacos de carregar açúcar, cobria a armação e pintava. Aprendi a fazer de tudo, até a esculpir as cabeças das figuras, de mulungu, uma madeira mole. No carnaval, acompanhava a saída dos grupos, era quando eu mais aprendia, com os passistas. O passista é aquele que dança o frevo, e só atua no período do carnaval.

Nessa ocasião você já montava espetáculos?
Não, só aprendia. Viajei inúmeras vezes pela região de Juazeiro e Crato, no Ceará, para ver reisados, que gosto muito de acompanhar. Certa vez ouvi uma cantiga de um figurante, numa jornada de reisado, que dizia o seguinte:

"Viva São Paulo/Viva Santa Catarina/Viva a França, viva Minas/Viva Penedo e Japão/Viva o Maranhão/Capital do estrangeiro/Vou brigar o ano inteiro/A favor dessa nação."

Essa toada me acompanhou durante muito tempo. Há dois anos fiz uma música baseada ipsis litteris na melodia dela. Substituí aqueles versos por outros, recriei a toada e fiz uma cantiga que recebeu o nome de Chegança.

"Sou Pataxó/Sou Xavante, Cariri/ lanomami, sou Tupi/Guarani, sou Carajá/Sou Pancaruru/Carijó, Tupinajé/Potiguar, sou Caeté/Ful-ni-ô, Tupinambá."

A música ficou animada pelo ritmo dos Cabocolinhos, um auto popular que se utiliza da preaca (mostra um instrumento parecido com arco e flecha), para acentuar o ritmo. Fala-se em fusão e eu fiz até uma interfusão, entre ritmo de Cabocolinho, toada de Reisado e estrofes que se chamam de carretilhas (uma estrofe de quatro versos, uma de quatro sílabas e três de sete). O Brasil é de uma imensa riqueza musical. Se fala tanto em fusão e nos esquecemos que há uma fusão muito mais verdadeira que nós ainda não realizamos.

Há quem ache sua voz meio paródica, distanciada do texto, ao contrário do nosso cantor de canções, cuja voz está a serviço da expressividade da letra. Você concorda?
Quando a música pede eu me utilizo do espírito paródico, como no Coco da lagartixa, por exemplo, cujo texto tem uma dose forte de humor. Em outras, pelo menos deliberadamente, não me utilizo.

A mesma qualidade que busquei no violino busquei na voz. Assim como estudei violino, estudei canto lírico, com a professora Arlinda Rocha, a mais respeitada de Recife. Surpresa, ela me perguntou: "Por que você quer estudar canto lírico?" Respondi: "Porque para bem cantar as minhas canções e os cantos populares necessito de uma técnica vocal que me possibilite bem cantá-las." Portanto, sempre tive um pé no estudo da técnica, chamada de erudita, e outro no aprendizado da cultura do povo.

O problema é que a técnica do canto lírico está ligada ao repertório clássico, ao tipo de impostação necessário para se cantar o chamado canto lírico. Eu não queria cantar isso (canta Chegança como um tenor lírico), queria isso (canta um martelo agalopado à maneira dos cantadores nordestinos), corri uma boa qualidade de emissão e sem danificar a voz. E para isso precisava conhecer meu aparelho fonador, dominar o diafragma, saber abaixar a glote, tudo que a técnica do canto lírico pode me ensinar.

O que tem no seu canto do canto popular?
São os mesmos componentes que estão presentes no tocador de rabeca, por exemplo: tipo de acentuação, de vibrato no final da nota, a síncopa no meio do verso. Meu professor de violino, no Recife, dizia: "Vocês, estudantes de violino, não conseguem livrar-se desse acento no início da frase". Era verdade, a gente fazia um esforço danado para começar de outra maneira. Depois vi que isso era projeção da nossa maneira de ser, de falar, impregnando o nosso jeito de tocar. No canto acontece a mesma coisa, e são esses procedimentos que procuro afirmar continuamente.

O Tonheta é o Pedro Malasartes, o João Grilo? Como você construiu esse personagem?
O Tonheta nasceu, em grande medida, do meu encontro com o Mateus Guariba, do Bumba-meu-boi. Aliás, do boi Misterioso de Afogados do Mestre Capitão Antonio Pereira. Ele tem um pé nos mateus e o outro na tradição cômica universal. Eu assisti muito aos filmes de Chaplin, Cantinflas, Oscarito, e esses são mestres pra toda vida. E pelo lado literário, na literatura picaresca popular brasileira: Pedro Malasartes, João Grilo, João Quengo, Camões e outros. Na literatura popular, Camões é personagem picaresco.

Trabalhei com um parceiro excelente, Bráulio Tavares. Ele escrevia comigo as histórias para o Tonheta. Dediquei bons anos de minha vida a criar para ele uma espécie de epopéia picaresca cujos episódios estão basicamente distribuídos em Brincante e Segundas Estórias. Criei uma espécie de universo mítico constituído pelo Tonheta e dois saltimbancos, João Sidurino e sua partner Rosalina de Jesus, representada por minha mulher, Rosane.

O João Sidurino é uma figura meio sonhosa, vive tomado pela idéia de contar a história de Tonheta, cujos episódios não pára de escrevinhar. Um dia tem vontade de representar essa figura pelas feiras e praças do país. Para ele, o Tonheta é tão vivo como se existisse existindo. Como Sidurino e Rosalina eram pobres artistas populares, sem recursos sequer para pedir a colaboração de outros artistas, valem-se exclusivamente dos seus próprios meios: voz, habilidades circenses, execução da rabeca, do pandeiro e da dança. Com esses recursos mínimos, contamos vários episódios da vida de Tonheta distribuídos nos dois espetáculos. Há a idéia até de fazer um filme sobre ele, e provavelmente o realizarei com meu amigo e diretor Luís Fernando Carvalho.

Quanto ao nome do personagem, João Sidurino, a história é a seguinte: ao ler em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, aquele trecho em que o Riobaldo assume a chefia e faz uma espécie de revista do bando, eu tive a idéia. Riobaldo olha para cada jagunço e faz um breve comentário sobre cada um deles. Quando passa por um tal de Sidurino, fala: aquele que alegrava a gente. Não me lembro direito se o comentário é exatamente esse. Dei a esse nome um sentido mítico (aquele que conta, que canta), lhe antepus o João, que é um nome forte, e assim nasceu o nome do personagem, João Sidurino.

Vamos falar do Figural, como você elaborou aqueles personagens?
Primeiro, a história do nome Figural. Uma vez eu estava lá no Juazeiro e, ao acompanhar um reisado, ouvi o mestre dizer para um companheiro: "vai lá e pega o figural". Ele se referia às figuras, às máscaras que faziam parte do reisado. Achei tão sonoro aquele nome que disse para mim que aquele seria o nome do espetáculo que já começava a esboçar. O Figural é uma reunião de personagens criados a partir da codificação de uma linguagem gestual e corporal que há muito venho elaborando.

Quando comecei a me interessar pelas danças populares, vi que meu corpo poderia ser o laboratório de uma boa experiência. Durante vários anos me dediquei a estudar o frevo, o maracatu, o cabocolinho, o coco, o cavalo marinho etc. Ao longo dos anos, articulando e justapondo passos, procedimentos e manobras coreográficas, fui codificando uma espécie de linguagem gestual e corporal brasileira com a qual me expresso e crio os meus personagens.

O frevo é um caldeirão de passos maravilhosos, a capoeira é outro, o cabocolinho e o maracatu também. Nós temos nas mãos a possibilidade de, com um vocabulário desse quilate, criar coreografias maravilhosas. O que me faltava era descobrir uma técnica, uma maneira de dar amplidão, digamos assim, de universalizar e fortalecer essa linguagem.

E os personagens do Figural?
Quando eu escutava uma música, por suas características melódicas, harmônicas ou rítmicas, ela me suscitava determinado personagem. Ao dançá-la lentamente, ela ia me entregando o personagem, a figura. Outro procedimento foi o de compor músicas sugeridas por determinado personagem. Comecei a compor e pedi ao Madureira que também compusesse. Desse encontro do espírito da música como espírito da dança fui esculpindo figuras, cujos gestos, posturas e movimentos são aqueles que aprendi com os dançarinos populares.

Em Figural também utilizo a noção do arquétipo, essa representação simbólica comum a todos os povos. Por exemplo, no imaginário japonês, o samurai é uma figura representativa do arquétipo do guerreiro, já na nossa cultura ela pode ser representada pela figura do cangaceiro. O Caboclo de Lança, do maracatu rural, espetáculo popular nordestino, que segura uma lança, se cobre com um manto e veste um matulão cheio de badalos, é também unia representação desse arquétipo.

Isso tudo suscitado por músicas?
São figuras bastante inspiradas pelo espírito da música. Corra exceção talvez do Tonheta, que ocupa quase a metade do tempo do espetáculo. Futuramente, quem sabe, poderei criar com esses personagens, dramas dançados, mas aí terei de ter ao meu lado um grupo de atores-bailarinos afinados com essa linguagem que venho buscando há muito tempo. Nesse momento a única pessoa que compartilha comigo inteiramente essa linguagem é a Rosane, com quem já criei vários espetáculos. Rosane tem se dedicado à dança brasileira com uma tenacidade muito grande.

O trabalho do grupo Corpo se aproxima do que você faz?
Não sei se o Corpo tem interesse em desenvolver um trabalho corporal exatamente na mesma linha do que penso, mas se eu tivesse de escolher um grupo brasileiro para contar a epopéia do jagunço Riobaldo, sem dúvida escolheria o Corpo. Como companhia, acho que atualmente é o conjunto coreográfico que mais vem se aproximando do que penso para a dança brasileira.

Nós temos uma literatura que ganhou o mundo, o mesmo corri as artes plásticas, com a música e com o cinema. Mas não temos uma dança com a mesma representatividade brasileira. Quer dizer, no povo essa dança vem se formando, mas veja nos jornais quantas Copélias, Lago dos Cisnes e Suíte Quebra Nozes encerram o ano letivo das companhias de danças do Brasil. De minha parte, prefiro em dezembro assistir a um pastoril ou a um cavalo marinho do que a qualquer um desses bailados. Independentemente do valor dos grandes artistas da dança clássica européia, não vai ser por meio dela que vamos construir a dança brasileira. Não é a linguagem mais apta para o Brasil expressar as suas singularidades e seu temperamento.

Sem uma formação clássica na música, você não teria chegado onde chegou. Não é a mesma coisa na dança?
Na dança deu-se o contrário do violino e do canto. O que procuro no violino é adquirir uma boa técnica para tocar bem frevo, choro, música modal brasileira. O que procuro por intermédio do canto lírico é conhecer bem o meu aparelho fonador com o mesmo objetivo. O que procuro, lendo e estudando as diversas danças clássicas do mundo, é ampliar e fortalecer a minha maneira brasileira de dançar.

Eu posso fazer isso na dança sem passar pela prática direta da dança clássica, que tem formas e princípios. Os princípios estão nela e em várias outras linguagens codificadas, como no kathakali, nas danças flamenga, balinesa etc. O bailarino brasileiro geralmente assimila da dança clássica o seu estereótipo. Falta-lhe compreender o que precisa ser assimilado e o que é irrelevante ou até mesmo nocivo. Não existe coisa mais antibrasileira do que o trabalho do torso na dança clássica. Nós somos também o povo da síncopa corporal. Esse sincopado se reflete em movimentos às vezes muito sutis, cuja técnica não será a dança clássica que nos dará.

Aquele jogo de quadril que o Corpo faz não é tipicamente brasileiro?
É, mas temos de ter cuidado para não fazermos do quadril o estereótipo da dança brasileira. Há um balanço interno, que não se traduz só com o quadril e que é muito mais rico. Igualmente o trabalho do rosto, da mão, para o bailarino brasileiro, tem que ser muito mais valorizado. Veja o que um dançarino de kathakali hindu faz com as mãos, com o rosto. Nós temos uma visão quase unicamente eurocêntrica e americanófila da dança. Se tivéssemos oportunidade de estudar um pouco o kathakali, por exemplo, teríamos muito mais a aprender com essa linguagem de dança-teatro do que com a dança clássica européia.

Por que você se mudou para São Paulo?
Em Recife me era difícil viver integralmente de arte. Nós ainda dependemos de centros maiores de difusão cultural, como Rio de Janeiro ou São Paulo. Em Recife eu teria que conciliar o meu trabalho de artista com o de professor, servidor público, sei lá o quê. São Paulo e Rio me deram projeção nacional. Foram anos de muita luta também. Aqui tenho oportunidade de conhecer grandes músicos, assistir companhias de dança e de teatro do mundo inteiro. Se tivesse cavalo marinho e coco seria perfeito... Bem, no Brincante às vezes tem.

O que é o Teatro-Escola Brincante?
Isso é uma idéia minha e de Rosane, minha mulher. Nós queríamos um lugar para nos apresentarmos em São Paulo com inteira liberdade. Hoje digo, até com certa vaidade, que a maioria das casas de espetáculo de São Paulo me acolhe sem problemas. Mas na época, chegávamos do Rio de Janeiro, onde fazíamos um sucesso danado, e quando procurávamos uma sala era aquela dificuldade. Resolvemos então alugar esses dois galpões. Um deles transformamos em teatro, o outro numa sala para cursos, oficinas, exposições etc. Assim nasceu o Teatro-Escola Brincante, um pequeno espaço cultural cuja meta maior é ser um centro de referências da cultura brasileira.

É um espaço que nos sai caro, pois nunca tivemos uma subvenção regular, apenas circunstanciais ajudas da Philips, da Fundação Vitae, do Instituto Cultural Itaú e da Eternit.

Rosane está agora à frente do Brincante tentando trazer a colaboração de empresas e instituições com o objetivo de ampliar a sua atuação.

Qual sua avaliação do Movimento Armorial, do seu ideário, das críticas a um suposto radicalismo?
Fui diretamente ligado ao Movimento Armorial. De certa forma posso dizer que continuo a sê-lo. Não necessito, é claro, que me chamem de artista armorial, mas o meu trabalho é uma ampliação, no campo do teatro, da dança e da música, daquilo que eu fazia como músico do Quinteto Armorial. Algumas pessoas gostam de dizer que Ariano é radical. Mas estamos precisando de brasileiros radicais. Ariano é um homem de idéias e ideais firmes. Obstinado na convicção que tem delas e que luta por elas incessantemente. De minha parte, as compreendo e me identifico com elas.

Os Estados Unidos e o Brasil são os únicos países cujo mercado musical interno se nutre principalmente da sua própria música. No resto do mundo a música americana predomina.O que você nos diz da indústria cultural?
A música que escutamos maciçamente nas nossas rádios, seja brasileira ou americana, é de péssima qualidade. Eu começo a pensar que a presença do Mal no dia-a-dia das nossas vidas deve atender a alguma necessidade, que não compreendemos de todo, dada a força com que ele se insere no nosso cotidiano. Observemos como a maioria das músicas que tocam nas rádios, nos programas de televisão é danosa à nossa formação cultural, ao aprimoramento da nossa capacidade de pensar, à afinação da nossa sensibilidade. Devemos estar passando por mais uma Noite sombria, porque com tanta coisa bonita, profunda e ao mesmo tempo agradável que a aventura humana criou, nós termos de conviver com essa porcalhagem cultural toda que se estampa pelo mundo sem a menor cerimônia. Épa, mundo velho, tá escuro!

Em que a sua fase atual difere da época do Quinteto Armorial? O que você faz hoje é mais universal?
Não, o que faço hoje tem apenas maior abrangência. O fato de eu criar espetáculos em que dance, cante, represente, conte histórias, converse e até dance com o público, traz um componente de sedução que um espetáculo só de música instrumental normalmente não tem. E a música de Antonio José Madureira, tanto a que ele fez para o Quinteto Armorial como a que faz hoje, um dia vai obter o reconhecimento que ainda não lhe dão. A arte tem dessas coisas e num país meio desordenado como o Brasil...

Hoje você tem salas e bons dias à disposição em São Paulo?
Hoje, profissionalmente falando, sou mais procurado do que procuro. O que é bom, porque não tenho que correr atrás de apresentações, contratos etc. O meu embate é em outro território: o da criação. Seja criando um novo espetáculo, seja querendo tocar mais e melhor no meu violino, seja querendo me expressar de uma maneira mais plena por intermédio da dança. Esse é o meu bom combate. É nessa peleja que dissolvo meus dias e noites. Gostaria que essa dissolução fosse eterna, não parasse nunca.

Ozeas Duarte e Walnice Nogueira Galvão são membros do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate.