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"Não se pode prever eventos futuros com precisão, uma vez que também não é possível medir precisamente o estado presente do universo"
(Stephen Hawking, Uma breve história do tempo)
O título "2001: O Brasil no espaço"1 evoca, de forma direta, o filme em que Stanley Kubrick projetou, nos anos 60, sua visão poética do futuro do homem no espaço cósmico. Naquele momento, 2001 era apenas uma referência gregoriana, longínqua e simbólica. De fato, a imaginação de Kubrick trabalha com a idéia newtoniana de um universo cujo espaço não é fixo e cujo tempo, depois da teoria geral da relatividade, não era mais absoluto. Sua nave espacial tinha um rumo pré-definido controlado por Hal, um computador panóptico que se rebela, é desligado e deixa nas mãos dos homens o comando do seu próprio destino no espaço. A analogia é sugestiva e provocadora. Com a diferença de que o ano 2001 já pertence à conjuntura histórica imediata. Mas se o início do segundo milênio já está ao alcance dos nossos olhos, ao contrário de Kubrick não dispomos de uma teoria equivalente à da relatividade sobre o espaço e o tempo histórico do universo em expansão do poder e da riqueza mundiais, onde se desenvolve, há quinhentos anos, a odisséia do sistema econômico capitalista e dos seus Estados territoriais. Além do que, nossa pergunta não tem natureza poética e envolve o futuro de um povo, de uma Nação e de um Estado chamado Brasil. Campo do conhecimento em que se manifesta de maneira ainda mais radical a impotência de que nos fala Hawking para prever cientificamente o futuro. No campo da história econômica e política, ele aparece ainda mais incerto e obscuro porque nunca consegue se desfazer completamente das amarras criadas pelos interesses, pelas visões ideológicas e pelas impressões e surpresas mais recentes, os flashes e a superfície mais visível do tempo imediato e de sua leitura impressionista.
Fernand Braudel foi quem melhor desenvolveu a idéia de que todo acontecimento histórico pertence simultaneamente a pelo menos três tempos distintos: o episódico, o conjuntural e o da "longa duração", que dá aos demais seu sentido último. O tempo conjuntural tem uma dinâmica cíclica, enquanto as estruturas da longue durée possuem uma vida tão longa que atravessam uma infinidade de gerações, estabelecendo as coordenadas que definem, em última instância, os espaços geográficos, econômicos e culturais em que vive a espécie humana. "Para o observador social, este tempo é primordial, posto que ainda mais significativos que as estruturas profundas da vida são os seus pontos de ruptura, a sua brusca ou lenta deterioração..." (Braudel, 1972, p. 53).
Ruptura e transformações
O "tempo longo" do universo em que o Brasil constituiu-se como Estado-nação é o mesmo da modernidade capitalista européia e da expansão imperial dos seus Estados territoriais, mas seu futuro imediato, no contexto internacional, ocorrerá dentro de um tempo conjuntural que foi inaugurado com o fim da Segunda Guerra Mundial, passando por um "ponto de ruptura" decisivo que começou no fim da década de 60. Entre 1968 e 73, ocorreu um verdadeiro cluster de decisões e acontecimentos, cujas conseqüências mais duradouras acabaram mudando a face do sistema capitalista e as coordenadas em que se dará, neste novo século, a disputa entre povos, Estados e nações pelo poder e a riqueza mundiais. É o momento em que se somam e multiplicam a escalada dos conflitos sociais nos países centrais; a vitória de várias lutas de libertação nacional na periferia da "ordem americana"; e a "indisciplina" dos capitais privados em fuga na direção do euromercado de dólares, com o questionamento da política internacional norte-americana por parte de seus principais aliados europeus e asiáticos. Foram estes fatos e a resposta a estes desafios que estão na origem das mudanças responsáveis por esta "segunda grande transformação" da ordem capitalista que se cristalizou nos últimos 25 anos do século XX. De forma extremamente simplificada, elas podem ser agrupadas em sete campos ou dimensões fundamentais:
- a primeira, e talvez mais visível, ocorreu no campo geopolítico mundial. A derrota militar norte-americana no sudeste asiático foi seu ponto de partida. Mas sua trajetória passou por uma sucessão de fracassos políticos e militares que levaram o mundo acadêmico e a imprensa mundiais a falar, nos anos 70, de uma "crise da hegemonia americana". Na década seguinte, contudo, a grande ofensiva ideológica anticomunista e a corrida tecnológico-militar da administração Reagan culminaram com o fim da URSS e da Guerra Fria, seguidas de uma monopolização do poder político-militar que vem redesenhando os espaços e as hierarquias mundiais sob a égide de uma espécie original de "império anglo-saxão".
- a segunda, que foi condição da ofensiva geopolítica, ocorreu no campo político-ideológico. Suas raízes remontam à "década rebelde" mas adquiriram musculatura enquanto o pensamento conservador diagnosticava, nos anos 70, o problema da ingovernabilidade democrática e propunha o fim das políticas keynesianas e de bem-estar social. As primeiras manifestações desta restauração conservadora ocorreram nos Estados Unidos, na administração Nixon, mas só se disseminaram pelo mundo depois das vitórias eleitorais de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, provocando uma convergência no campo das idéias e das políticas econômicas que consagrou em pouco tempo a nova hegemonia mundial, chamada de "pensamento único" neoliberal.
- a terceira grande transformação ocorreu no campo econômico, mais precisamente na área monetário-financeira, na qual se concentra o núcleo duro do que veio a se chamar globalização. Suas origens também remontam aos anos 60 e ao início do processo de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em Bretton Woods. Sua expansão, contudo, só ocorreu nos anos 80 e foi obra das políticas desregulacionistas que foram iniciadas pelos governos anglo-saxões e se universalizaram, nos países centrais, como conseqüência da sua competição pelos capitais financeiros off shore; e nos países periféricos, como decorrência de sua crise externa e como imposição das políticas de ajuste patrocinadas pelos seus credores e governos dos países centrais. Como produto final nasce, nos anos 90, uma finança mundial privada e desregulada, por cujas veias circula e se acumula uma riqueza rentista que já está na ordem de 3 a 4 trilhões de dólares por dia.
- a quarta grande mudança responde pelo nome de "revolução tecnológica", cujas invenções e descobertas fundamentais ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, mas cuja utilização econômica só ocorreu a partir da crise dos anos 70. Os resultados, sobretudo no campo da microeletrônica, dos computadores e da telecomunicação afetaram diretamente a extensão, o custo e a velocidade da circulação das informações, facilitando a integração em tempo real de todos os mercados financeiros e provocando alterações produtivas e gerenciais que têm permitido aumentos de produtividade e lucratividade, sobretudo depois de 1990, a custas, em grande medida, de uma redução gigantesca dos postos de trabalho.
- a quinta transformação vem ocorrendo no campo do trabalho ou do emprego. Depois de 25 anos de alto crescimento sustentado e baixos índices de desemprego, a crise dos anos 70, seguida das políticas deflacionistas e das mudanças tecnológicas, provocou uma desaceleração do crescimento e uma reestruturação produtiva que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, do ponto de vista do número de empregos, de sua remuneração, da sua organização sindical e dos direitos sociais e trabalhistas. Em poucos anos cai vertiginosamente o número do operariado fabril clássico e cresce o universo do trabalho precarizado, subcontratado, terceirizado etc. A participação salarial na renda nacional também cai em quase todo o mundo, e o desemprego estrutural global somado ao trabalho precarizado já atingiu, no final deste século, a casa do 1 bilhão de trabalhadores, ou 1/3 da População Economicamente Ativa mundial.
- sexta transformação ocorreu no espaço da periferia capitalista e representou uma mudança radical da estratégia seguida pelos seus principais Estados, desde a Segunda Guerra, com o objetivo de promover seu desenvolvimento econômico. Esta grande mudança de estratégia foi mais um resultado da crise econômica mundial que se alastrou a partir dos países centrais, desde o fim do sistema de Bretton Woods, e atingiu as principais economias periféricas que enfrentaram, nos anos 80, como conseqüência, uma crise generalizada de balanço de pagamentos. Crise que os obrigou a submeterem-se às políticas de ajuste de corte neoliberal impostas pelos credores, organismos internacionais e governos centrais, em troca da renegociação de suas dívidas e do retorno ao sistema financeiro internacional. De forma mais ou menos generalizada, estes países, depois de uma década, aparecem, no final dos anos 90, como um universo relativamente homogêneo do ponto de vista de suas políticas econômicas e de sua forma de inserção desregulada e subordinada às finanças privadas internacionais.
- é esta uniformidade que cria a impressão de que esteja ocorrendo também uma fragilização generalizada dos Estados nacionais e de que esta seja mais uma das mudanças irreversíveis deste final de século. Trata-se contudo de uma verdade apenas parcial. O número de Estados nacionais aumentou nestes últimos 25 anos e o que ocorreu no campo da soberania foi um aumento da distância entre o poder e a riqueza dos Estados do "núcleo central" do sistema e os da sua periferia.
Quase todos os analistas estão hoje de acordo, com pequenas variações, que estas foram as principais transformações que, neste último quarto de século, alteraram a geopolítica e a geoeconomia do mundo tal como foi organizado depois da Segunda Guerra, sob a égide da competição interestatal entre os EUA e a URSS. As grandes divergências não estão neste ponto, estão na forma em que cada um interpreta o movimento mais geral, hierarquizando suas determinações e extraindo diferentes conseqüências propositivas. De um lado, alinham-se os liberais e marxistas que subscrevem a interpretação hegemônica e privilegiam os aspectos econômicos desta segunda "grande transformação" do século XX. Para eles, trata-se de uma conseqüência necessária e inapelável das transformações tecnológicas que, somadas à expansão dos mercados, derrubaram as fronteiras territoriais e sucatearam os projetos econômicos nacionais promovendo uma redução obrigatória e virtuosa da soberania dos Estados. A partir daí, a própria globalização econômica e a força dos mercados promoveriam também uma homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento, por meio do livre comércio e da completa liberdade de circulação dos capitais privados. Esta homogeneização, por fim, acabaria conduzindo a humanidade na direção de um governo global, uma paz perpétua e uma "democracia cosmopolita", como propõe o sociólogo inglês David Held.
Do nosso ponto de vista, esta visão hegemônica tem um forte viés ideológico e no fundo reproduz, no que tem de essencial, a velha utopia liberal que desde o século XVIII vem anunciando e propondo, reiteradamente, este mesmo objetivo terminal para a "economia de mercado": um mercado global desvencilhado dos problemas impostos pelos particularismos nacionais e os protecionismos estatais. O problema é que esta utopia vem sendo reiteradamente negada pelos caminhos reais da história econômica e política do capitalismo, e parece cada vez mais distante do que vem ocorrendo, de fato, nestes últimos 25 anos de história. Para nós, o fenômeno da globalização econômica é inseparável das transformações políticas e ideológicas e das conseqüências sociais deste período. Ela não é uma imposição tecnológica, nem tampouco apenas um fenômeno puramente econômico, envolvendo novas formas de dominação social e política que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de determinados interesses, tanto no plano internacional quanto no espaço dos Estados nacionais. Nesse sentido, nossa visão da ruptura e das transformações que se desdobram a partir dos anos 70 corresponde a uma visão ou teoria mais ampla sobre a dinâmica do capitalismo histórico e sobre as suas permanências e regularidades, que atravessam os pontos de ruptura, mantendo-se vigentes, na expressão de Braudel, como "leis estruturais e de longo prazo do sistema". Estruturas e regularidades que incluem um movimento simultâneo e interrelacionado de acumulação de poder e riqueza, alavancado a um só tempo pela competição interestatal e pelas relações de dominação entre os poderes dominantes e os grupos sociais e países subordinados. Desde a constituição do capitalismo como um sistema econômico global e nacional a um só tempo, e da constituição dos Estados territoriais, houve certas regras constantes de relacionamento entre os Estados e destes com seus capitais privados. Considera-se, normalmente, que o capital sempre teve uma vocação à globalidade que seria permanentemente contida pelos poderes territoriais ou pela "mesquinharia" dos Estados. Mas esta não é uma visão fiel aos fatos e à história. Desde suas origens, os Estados territoriais e os capitais demonstraram a mesma vocação compulsiva e competitiva ao império e à globalidade. Foi assim na primeira onda colonial européia – entre 1500 e a derrota francesa na disputa com a Inglaterra pelo domínio comercial da Índia, na metade do século XVIII –, como também na segunda grande onda colonial inaugurada, uma vez mais, na Índia, na metade do século XIX. É interessante observar, com Karl Polanyi, que é nesta mesma hora que se consolidam, também, o primeiro sistema monetário internacional e a crença na eficácia dos mercados auto-regulados. É o mesmo momento, aliás, em que assumimos nossa condição de periferia deste sistema econômico e geopolítico organizado, inicialmente, em torno à hegemonia inglesa.
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Neste sentido, nosso entendimento da grande transformação deste final de século não apenas supõe uma visão estrutural da modernidade capitalista diferente do economicismo, seja liberal ou marxista, como tem uma visão igualmente distinta do ciclo ou conjuntura em que se inscrevem estas mudanças. Elas são produto de uma estratégia política e financeira explícita imposta ao mundo, desde o início dos anos 80, a partir do seu eixo anglo-saxão, mas cujas raízes remontam, muito mais atrás, às lutas de interesse e às discussões que redesenharam o cenário mundial depois da Segunda Guerra.
Estratégia, ciclo e tendências
Não há quem não conheça o discurso proferido por Winston Churchill, dia 5 de março de 1946, nos EUA, quando formulou as bases ideológicas e estratégicas da Guerra Fria. Ele já não era primeiro-ministro da Inglaterra, mas mantinha a autoridade moral e política que lhe permitiu enterrar o espírito de Yalta e o projeto mundial de Roosevelt, propondo uma nova estratégia de poder que foi consagrada pela Doutrina Truman e levou à bipolarização ideológica e militar do mundo até 1991. Mas não são muitos os que prestaram atenção a outra passagem menos conhecida do mesmo discurso de Churchill, em que ele propunha uma aliança preferencial, a única capaz de reorganizar e pacificar o mundo, ao afirmar que "nem a prevenção da guerra nem o crescimento contínuo da organização mundial serão conquistados sem a organização fraterna dos povos de língua inglesa". Uma semana depois, no dia 15 de março, Stalin respondeu ao ex-primeiro-ministro inglês dizendo, numa entrevista ao Pravda, que "Churchill e seus amigos na Inglaterra e EUA apresentaram um ultimato às nações que não falam inglês: aceitem voluntariamente o nosso domínio e tudo estará bem; de outro modo, a guerra será inevitável".
Olhando retrospectivamente, não é difícil perceber que Stalin captou o essencial, o projeto de mais longo prazo que Churchill propunha aos americanos, escudado no sucesso da primeira bomba atômica lançada sobre Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945. De fato, tratava-se de um ultimato, análogo ao que alguns governantes ouviram da parte de Bill Clinton e Tony Blair na reunião dos cinco chefes de Estado realizada em Florença, em novembro de 1999, só que agora numa outra linguagem e escudado no poder estrutural das finanças anglo-saxãs: "em caso de desobediência, não haverá guerra, mas o castigo dos mercados será inevitável".
O paradoxal nesta história é que foi a escalada belicosa da Guerra Fria, iniciada por Churchill e Truman, que bloqueou os interesses da banca e das finanças, na década de 40. E, ao contrário, foi a escalada dos interesses financeiros anglo-saxões que deu a contribuição decisiva à vitória na Segunda Guerra Fria, iniciada por Reagan e Thatcher, na década de 80. Tudo isto pode parecer muito confuso, mas na verdade trata-se do fio condutor capaz de explicar a forma e a extensão da vitória do poder das armas e das finanças anglo-saxãs depois da queda do Muro de Berlim.
Entre 1942 e 44, nas discussões que culminaram nos acordos de Bretton Woods, acabaram prevalecendo algumas das idéias centrais das representações inglesa e norte-americana, lideradas por Lord Keynes e Harry Dexter White, respaldadas, em última instância, pelo poder e pelo projeto global de Roosevelt. Nestas discussões, entretanto, não estiveram ausentes os representantes dos bancos e das finanças em geral e sua defesa intransigente, não apenas do livre-comércio, mas também da livre circulação de capitais e da plena conversibilidade imediata de todas as moedas, num retorno às regras que vigoraram entre 1870 e 1930, sob hegemonia inconteste das "altas finanças" inglesas. Mas foram derrotadas transitoriamente pela tese de Keynes de que esta liberalização imediata impediria o funcionamento eficaz de políticas econômicas capazes de atenderem objetivos nacionais, como vieram a ser a construção do Welfare state, nos países europeus, ou o desenvolvimentismo na periferia latino-americana. Apesar disto, Truman, depois de morte de Roosevelt em 1945, substituiu o secretário do Tesouro Henry Morgenthau, que sustentara as posições de White e Keynes e devolveu de fato o poder aos bancos, entre 1945 e 47, quando houve uma tentativa de acelerar a liberalização dos mercados de capitais e a completa conversibilidade das moedas, responsáveis pela crise cambial européia de 1947, provocada pela escassez de dólares que haviam emigrado em direção ao mercado norte-americano. Foi esta crise que, somada à vitória dos "falcões" no campo da política externa americana, trouxe de volta as teses keynesianas e permitiu a implementação do Plano Marshall, como uma resposta imediata e inicial à ameaça eleitoral comunista em vários países europeus. Foi assim que nasceu essa estranha aliança de interesses que sustentou, simultaneamente, a Guerra Fria e as políticas keynesianas dos new dealers americanos e europeus. Mas assim como o projeto liberal dos mercados monetários e financeiros auto-regulados não esteve ausente de Bretton Woods, da mesma forma manteve-se ativo na defesa de suas posições e na crítica ao keynesianismo durante toda a chamada era de ouro do capitalismo.
É neste sentido que se pode afirmar que o fim da Guerra Fria também foi o fim do último suporte de Bretton Woods. Mas antes disto os governos de Reagan e Thatcher já haviam trocado os sinais da aliança original, conseguindo o que parecia improvável: juntar os falcões da Guerra Fria com os interesses financeiros de Wall Street e da City de Londres, inaugurando a era das políticas monetaristas e desregulacionistas que alavancaram o fenômeno da globalização financeira. É por isto que a globalização não foi obra exclusiva dos mercados ou do progresso tecnológico: ela foi impulsionada por uma crença ideológica e nasceu como irmã siamesa de uma estratégia geopolítica que culminou com a queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética. Stalin só se enganara numa coisa: não foi necessário o recurso à guerra para a vitória da coalizão de forças que trouxe de volta ao poder as mesmas "altas finanças" de que nos fala Karl Polanyi e que dominaram o mundo entre 1870 e 1930.
É neste sentido, aliás, que muitos falam num retorno, neste final de século, aos trilhos da "civilização liberal" do século XIX. Mas este aparente retorno não deve ser confundido com uma simples volta atrás. Sobretudo as relações entre o império e o atual sistema monetário internacional – "dólar flexível" – são completamente diferentes das relações que a Inglaterra manteve com o sistema do padrão-ouro. O novo sistema permite aos EUA, em particular, funcionar como uma espécie de "império hidráulico" capaz de sugar riqueza financeira por meio do manejo de sua moeda, que não obedece a nenhum outro padrão de referência que não seja o próprio poder norte-americano.
Entretanto, o próprio núcleo central do sistema interestatal de gestão política do capitalismo está em processo de reestruturação. Embora seus Estados-membros sejam os mesmos desde a segunda metade do século XIX, o mais provável é que nas primeiras décadas do século XXI ele sofra uma profunda transformação com a unificação européia e a entrada da China no grupo das grandes potências. Esta transição deve reativar no médio prazo a lei da complementariedade e competição que move as relações do núcleo central do sistema e desenha as janelas de oportunidades de suas periferias. O mais provável é que esta transição seja muito lenta e se dê na forma de uma longa guerra de posições, comerciais e financeiras, como já se pode ver no impasse em que encalhou a Rodada do Milênio, que deveria haver começado em dezembro de 1999, em Seattle.
Qual o lugar dos Estados periféricos, como o Brasil, dentro desta ordem em transição? Com toda certeza se manterão na condição de periferia do sistema e por isto seguirão condicionados aos seus ciclos. Mas também nestes países, depois das reformas liberais, o que se assiste hoje é uma espécie de retorno ao passado, e de novo, ao século XIX. É como se estivessem mais próximos de sua inserção mundial em 1890 do que da posição que alcançaram durante a sua "fase desenvolvimentista" na segunda metade do século XX. O novo sistema monetário internacional "dólar flexível" funciona para eles como um simulacro do padrão ouro, submetendo-os novamente, depois de um longo período de relativa autonomia, às mesmas regras que o padrão-ouro impôs à periferia, do ponto de vista de suas exigências draconianas de equilíbrio monetário e fiscal com a conseqüente perda de capacidade de autodefinir seus próprios objetivos nacionais. Por isso, neste final de século voltaram a estreitar-se seus caminhos e suas possibilidades de desenvolvimento. É como se, tal como no final do século XIX, lhes restassem duas alternativas: a que foi seguida com sucesso pelos chamados "capitalismos tardios", como foi o caso da Alemanha e do Japão, ou a que foi seguida, também com sucesso, pelos domínios ingleses, como Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Esses últimos territórios sempre tiveram um estatuto especial dentro do império britânico: não tinham autonomia política ou monetária, mas tinham um governo local. Isso lhes permitiu a transformação numa espécie de territórios contínuos ou complementares, com acesso privilegiado aos investimentos britânicos. Hoje já não cabem dúvidas de que a utopia não declarada de alguns governantes latino-americanos é a de serem salvos pelo império, transformando-se em novos tipos de domínios norte-americanos. Um projeto praticamente impossível, porque os EUA não querem nem podem sustentá-lo. Em primeiro lugar, porque os domínios ingleses eram complementares à Inglaterra do ponto de vista econômico, o que não é o caso latino-americano em relação aos EUA. Abrir nichos, buscar a complementariedade comercial pode funcionar para um país do tamanho do Chile, mas não para um país como o Brasil, cuja estrutura produtiva e pauta de exportações são muito mais diversificadas, tendo, conseqüentemente, que enfrentar a competição e as barreiras que protegem os produtores norte-americanos. O estatuto dos domínios supunha uma integração positiva e muito estreita entre capitais e poder estatal, não só para ganhar, mas para perder. A Guerra Fria permitiu isso. Hoje os capitais americanos não têm nenhuma razão geopolítica que justifique apostar em lugares em que eles podem sofrer grandes perdas.
Em síntese, não é fácil encontrar na história outro momento em que a riqueza e o poder mundiais tenham se somado e concentrado de maneira tão gigantesca, como neste final de século. Nem há, na modernidade capitalista, outra época em que a distância entre as nações crescesse tão rapidamente como nestes últimos vinte anos. A economia americana cresce há nove anos sem parar; os europeus crescem muito menos e há menos tempo, enquanto o resto do mundo – com exceção da China – parece estatelado, ora entrando ora saindo de mais uma crise. Os números e os fatos são cada vez mais transparentes e chocantes, como denunciaram os informes anuais de 1999 da ONU, do Bird, da Unctad e até mesmo do FMI. O mesmo, e talvez até em maior escala, é o que se constata na distribuição do poder político e militar mundial, desde a Guerra do Golfo. Nas finanças, como nas armas, o que se assiste neste final de milênio é a vitória de um projeto que articulou o poder político-militar e o capital financeiro dos países anglo-saxões e os projetou sobre o mundo dando origem a um novo tipo de império, anglo-saxão e quase global.
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2001: o Brasil no tempo
O Brasil não ocupou uma posição relevante na geopolítica da Guerra Fria, mas durante todo o século XX manteve um alinhamento quase automático com a política internacional norte-americana, mantendo também a posição de principal sócio econômico dos EUA na periferia sul-americana. Immanuell Wallerstein o classifica entre os países que pertenceriam à "semiperiferia" do sistema, zona econômica e política que, por suas dimensões e dinamismo, ocupa, segundo ele, um papel decisivo na "despolarização" da ordem econômica e política internacional. Por isto, durante a Guerra Fria, mesmo sem ser incluído entre os países cujo "desenvolvimento a convite" foi fortemente apoiado pelo governo americano, o Brasil transformou-se no laboratório de uma estratégia associada pública e privada de desenvolvimento que contemplava todos os segmentos do capitalismo central. Graças a esta posição especial, foi menos sensível às flutuações econômicas e mudanças de rumo estratégico no ciclo posterior à Segunda Guerra.
No "período desenvolvimentista", o Brasil foi um dos poucos países subdesenvolvidos que conseguiu percorrer quase todos os passos previstos para o processo de industrialização retardatária, registrando uma das mais elevadas taxas médias de crescimento mundial. Por outro lado, quando ocorreu sua reversão neoliberal tardia, que começa no momento em que acaba a Guerra Fria, ela também seguiu uma velocidade e radicalidade muito grandes, e o Brasil acabou cumprindo em poucos anos uma agenda complexa que em outros países se arrastou por um período de tempo muito mais longo. A despeito da força e velocidade deste segundo movimento de liberalização, seus resultados econômicos e sociais foram decepcionantes. De maneira tal que no fim do século XX, depois de cinqüenta anos do clássico debate brasileiro entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin sobre a vocação econômica do Brasil, a disjuntiva que se recoloca parece ser, uma vez mais, entre desenvolvimentismo e liberalismo. O que nos obriga a relembrar alguns passos decisivos desta trajetória.
Logo depois da inflexão da política externa norte-americana, em 1947, e sobretudo depois da vitória da Revolução Chinesa e da Guerra da Coréia, o "desenvolvimentismo" transformou-se na resposta capitalista – tolerada pelos liberais – ao projeto socialista para os países subdesenvolvidos. Quase se poderia dizer, parafraseando John Williamson algumas décadas depois, que foi ali que se constituiu o primeiro Consenso de Washington, e ele era desenvolvimentista, apesar de que a ideologia da "estabilização" do FMI já fosse inquestionável.
Se olharmos esta mesma inflexão a partir do Brasil, perceberemos que o desenvolvimentismo brasileiro também nasceu de forma pragmática e foi capaz de aglutinar quase todos os segmentos das classes dominantes e suas elites. Normalmente, e quase naturalmente, são os setores mais dinâmicos, ou aqueles representados pelos setores industriais de ponta, que são colocados sob a luz dos refletores dos estudos de sociólogos e politólogos. No caso brasileiro, essa elite se concentrou em São Paulo em torno do complexo metal-mecânico que então surgia, tendo à frente a indústria automobilística. Essa era a fração mais "moderna" do capitalismo brasileiro e nascia associada ao capital multinacional. Entretanto, outras frações não menos importantes, mas talvez menos "modernas" do ponto de vista econômico e político também encontraram seu espaço dentro da "coalizão desenvolvimentista". De fato, naquele período, o desenvolvimento não foi só "intensivo" e concentrado em certos setores e espaços geográficos. Pelo contrário, veio acompanhado da expansão permanente das fronteiras agrícola e urbana, o que permitiu amplas possibilidades de ganhos patrimoniais. O próprio sistema de intermediação financeira, que acompanhou o crescimento da economia real, manteve-se nas mãos do capital nacional. Por outro lado, foi esse mesmo dinamismo e a permanente mobilidade da fronteira de ocupação capitalista que deu ao modelo uma enorme capacidade de amortecimento das tensões presentes num processo que foi ao mesmo tempo desigual e excludente.
A extensão da presença do Estado nesta estratégia de desenvolvimento criou a falsa idéia de um Estado forte ou "prussiano" que nunca existiu no Brasil. Na verdade, o que ocorreu foi o oposto: o Estado foi forte toda vez que se enfrentou com os interesses populares, mas foi sempre frágil quando teve que enfrentar e arbitrar os interesses heterogêneos do pacto em que se sustentou até a década de 80, particularmente quando se tratava de interesses internacionais. Enquanto as condições externas foram favoráveis e todos os setores puderam ganhar "fugindo para frente", conseguiu-se uma aliança sólida e permanente dos interesses particulares das regiões e dos grupos econômicos. No entanto, à medida que ficava claro que essa fase de ouro do capitalismo mundial, e por conseqüência das condições para o nosso crescimento, estavam se alterando drasticamente, as fraturas no bloco dominante ficaram cada vez mais visíveis. O mesmo se constata em outros países da América Latina onde, pouco a pouco, com pequenas defasagens a partir de 73, vai sendo revertida a hegemonia do pensamento desenvolvimentista do pós-guerra.
O golpe de misericórdia, entretanto, veio com o choque externo da subida das taxas de juros internacionais e do preço do petróleo, junto com a queda dos preços das commodities e a nossa exclusão do mercado financeiro internacional, após a moratória do México. Foram esses choques que provocaram um efeito em cadeia sobre o câmbio, a inflação, o endividamento interno, o crescimento econômico e finalmente a falência estatal. A causa principal da crise foi o corte do acesso ao financiamento externo, decisivo para uma economia como a brasileira que já era, desde os anos 60, altamente internacionalizada e globalizada.
Obviamente, o marco mais importante para a reversão total desse quadro foi o lançamento do Plano Real de estabilização monetária, em 1994. Mas o fato decisivo para o sucesso do programa de estabilização posterior foi o retorno do país ao mercado internacional de capitais, a partir de 1991, viabilizado pela renegociação da dívida e pela liberalização no controle dos fluxos de capital externo. Foi assim que o Brasil chegou à segunda metade dos anos 90 sob a égide de um pensamento e uma política de corte neoliberais, cuja aposta fundamental estava no acesso a mais um ciclo de inserção financeira internacional e crescimento acelerado.
Hoje sabemos que dessa vez a velha história não se repetiu e várias diferenças podem ser reunidas para tentar entender esse momento bem como as possibilidades que nos esperam no futuro próximo. Passada uma década, generaliza-se a convicção de que o recente ciclo de integração econômico-financeira das elites cosmopolitas parece ter destruído, quase integralmente, qualquer idéia de desenvolvimento mais autônomo ou nacional. A inviabilidade deste projeto de nossas elites internacionalizantes – que chamamos de "dominium" – é que coloca o Brasil, em 2001, frente a um impasse extremamente grave. Suas contradições e inconsistências internas não nos dão a menor esperança de alcançar taxas de crescimento econômico socialmente inclusivas, que poderiam devolver aos nosso governantes a capacidade de governar e, talvez, a legitimidade que perderam frente aos seus cidadãos.
Na verdade, o Brasil também acabou prisioneiro da vitória liberal-conservadora do final da década de 70, e subscreveu a estratégia dos países centrais, que transformaram a estabilidade monetária no objetivo prioritário dos seus governos e fizeram do monetarismo e do liberalismo a religião oficial da sua política econômica. Desde os anos 90, estas políticas monetárias restritivas, ancoradas no câmbio sobrevalorizado, tiveram um relativo sucesso no combate à inflação mas desencadearam ao mesmo tempo uma alta das taxas de juros que se transformou em peça essencial da acumulação rentista da riqueza privada e obstáculo intransponível ao seu crescimento. O problema é que estas mesmas taxas, permanentemente elevadas, além de induzirem uma desaceleração do crescimento econômico, também provocaram, de maneira simultânea, um desequilíbrio progressivo das contas públicas internas. Como as taxas de juros passaram a ser sistematicamente superiores às de inflação e de crescimento, se transformaram em fonte de expansão contínua dos desequilíbrios macroeconômicos que aprisionam e paralisam as políticas públicas.
Foi para sair deste impasse que as autoridades brasileiras recorreram ao endividamento e apostaram no investimento externo abundante gerando um "efeito bola de neve" que expande os déficits e as dívidas e pode chegar a ter um custo insustentável para gerar as divisas indispensáveis para pagar as contas. Uma situação, portanto, em que há excesso de liquidez mas não há solvência, porque o modelo não só não cresce como tampouco consegue aumentar suas exportações. Por isto, a alta das taxas de juros, independentemente de objetivos deflacionários, continua obedecendo à lógica de atrair capitais externos. Já faz tempo que ela se transformou em peça essencial do novo modo de acumulação da riqueza privada e do novo regime caracterizado por ciclos curtos de baixo crescimento, seguido de recessões periódicas. E o que se pode prever é um aumento contínuo destes desequilíbrios, sobretudo quando se tem claro que as altas taxas de juros têm sido acompanhadas de um aumento da dívida financeira responsável por uma insuficiência fiscal crônica, independente do tamanho da receita ou dos superávits primários que possam ser logrados conjunturalmente. Neste quadro, a perspectiva é de que os déficits cresçam na forma de uma "bola de neve" modificando a divisão da renda, continuamente, em favor dos rendimentos financeiros, e estrangulando os governos que aceitam e promovem sucessivos e inúteis ajustes orçamentários provocando uma crescente ingovernabilidade dos estados e de suas instâncias subnacionais de poder.
Em síntese, na entrada do novo milênio, o Brasil não é uma nave sem rumo. Pelo contrário, segue uma rota cada vez mais transparente. Sua meta última – a condição de dominium – parece inalcançável, e seu problema central é que se multiplica a riqueza privada ao mesmo tempo que se estreitam as oportunidades sociais do povo e da nação. Mas este não é um rumo inevitável imposto pelas "leis físicas" do universo em expansão da economia política global. Pelo contrário, como estamos no campo da história, é perfeitamente possível que o povo brasileiro desligue, algum dia, a memória de Hal, o grande computador, e neste caso, o rumo da "nave terrestre" chamada Brasil, depois de 2001, será completamente outro.
José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e da UERJ.
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