"Não se pode prever eventos futuros com precisão, uma vez que também não é possível medir precisamente o estado presente do universo"
(Stephen Hawking, Uma breve história do tempo)
O título "2001: O Brasil no espaço"1 evoca, de forma direta, o filme em que Stanley Kubrick projetou, nos anos 60, sua visão poética do futuro do homem no espaço cósmico. Naquele momento, 2001 era apenas uma referência gregoriana, longínqua e simbólica. De fato, a imaginação de Kubrick trabalha com a idéia newtoniana de um universo cujo espaço não é fixo e cujo tempo, depois da teoria geral da relatividade, não era mais absoluto. Sua nave espacial tinha um rumo pré-definido controlado por Hal, um computador panóptico que se rebela, é desligado e deixa nas mãos dos homens o comando do seu próprio destino no espaço. A analogia é sugestiva e provocadora. Com a diferença de que o ano 2001 já pertence à conjuntura histórica imediata. Mas se o início do segundo milênio já está ao alcance dos nossos olhos, ao contrário de Kubrick não dispomos de uma teoria equivalente à da relatividade sobre o espaço e o tempo histórico do universo em expansão do poder e da riqueza mundiais, onde se desenvolve, há quinhentos anos, a odisséia do sistema econômico capitalista e dos seus Estados territoriais. Além do que, nossa pergunta não tem natureza poética e envolve o futuro de um povo, de uma Nação e de um Estado chamado Brasil. Campo do conhecimento em que se manifesta de maneira ainda mais radical a impotência de que nos fala Hawking para prever cientificamente o futuro. No campo da história econômica e política, ele aparece ainda mais incerto e obscuro porque nunca consegue se desfazer completamente das amarras criadas pelos interesses, pelas visões ideológicas e pelas impressões e surpresas mais recentes, os flashes e a superfície mais visível do tempo imediato e de sua leitura impressionista.
Fernand Braudel foi quem melhor desenvolveu a idéia de que todo acontecimento histórico pertence simultaneamente a pelo menos três tempos distintos: o episódico, o conjuntural e o da "longa duração", que dá aos demais seu sentido último. O tempo conjuntural tem uma dinâmica cíclica, enquanto as estruturas da longue durée possuem uma vida tão longa que atravessam uma infinidade de gerações, estabelecendo as coordenadas que definem, em última instância, os espaços geográficos, econômicos e culturais em que vive a espécie humana. "Para o observador social, este tempo é primordial, posto que ainda mais significativos que as estruturas profundas da vida são os seus pontos de ruptura, a sua brusca ou lenta deterioração..." (Braudel, 1972, p. 53).
Ruptura e transformações
O "tempo longo" do universo em que o Brasil constituiu-se como Estado-nação é o mesmo da modernidade capitalista européia e da expansão imperial dos seus Estados territoriais, mas seu futuro imediato, no contexto internacional, ocorrerá dentro de um tempo conjuntural que foi inaugurado com o fim da Segunda Guerra Mundial, passando por um "ponto de ruptura" decisivo que começou no fim da década de 60. Entre 1968 e 73, ocorreu um verdadeiro cluster de decisões e acontecimentos, cujas conseqüências mais duradouras acabaram mudando a face do sistema capitalista e as coordenadas em que se dará, neste novo século, a disputa entre povos, Estados e nações pelo poder e a riqueza mundiais. É o momento em que se somam e multiplicam a escalada dos conflitos sociais nos países centrais; a vitória de várias lutas de libertação nacional na periferia da "ordem americana"; e a "indisciplina" dos capitais privados em fuga na direção do euromercado de dólares, com o questionamento da política internacional norte-americana por parte de seus principais aliados europeus e asiáticos. Foram estes fatos e a resposta a estes desafios que estão na origem das mudanças responsáveis por esta "segunda grande transformação" da ordem capitalista que se cristalizou nos últimos 25 anos do século XX. De forma extremamente simplificada, elas podem ser agrupadas em sete campos ou dimensões fundamentais:
- a primeira, e talvez mais visível, ocorreu no campo geopolítico mundial. A derrota militar norte-americana no sudeste asiático foi seu ponto de partida. Mas sua trajetória passou por uma sucessão de fracassos políticos e militares que levaram o mundo acadêmico e a imprensa mundiais a falar, nos anos 70, de uma "crise da hegemonia americana". Na década seguinte, contudo, a grande ofensiva ideológica anticomunista e a corrida tecnológico-militar da administração Reagan culminaram com o fim da URSS e da Guerra Fria, seguidas de uma monopolização do poder político-militar que vem redesenhando os espaços e as hierarquias mundiais sob a égide de uma espécie original de "império anglo-saxão".
- a segunda, que foi condição da ofensiva geopolítica, ocorreu no campo político-ideológico. Suas raízes remontam à "década rebelde" mas adquiriram musculatura enquanto o pensamento conservador diagnosticava, nos anos 70, o problema da ingovernabilidade democrática e propunha o fim das políticas keynesianas e de bem-estar social. As primeiras manifestações desta restauração conservadora ocorreram nos Estados Unidos, na administração Nixon, mas só se disseminaram pelo mundo depois das vitórias eleitorais de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, provocando uma convergência no campo das idéias e das políticas econômicas que consagrou em pouco tempo a nova hegemonia mundial, chamada de "pensamento único" neoliberal.
- a terceira grande transformação ocorreu no campo econômico, mais precisamente na área monetário-financeira, na qual se concentra o núcleo duro do que veio a se chamar globalização. Suas origens também remontam aos anos 60 e ao início do processo de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em Bretton Woods. Sua expansão, contudo, só ocorreu nos anos 80 e foi obra das políticas desregulacionistas que foram iniciadas pelos governos anglo-saxões e se universalizaram, nos países centrais, como conseqüência da sua competição pelos capitais financeiros off shore; e nos países periféricos, como decorrência de sua crise externa e como imposição das políticas de ajuste patrocinadas pelos seus credores e governos dos países centrais. Como produto final nasce, nos anos 90, uma finança mundial privada e desregulada, por cujas veias circula e se acumula uma riqueza rentista que já está na ordem de 3 a 4 trilhões de dólares por dia.
- a quarta grande mudança responde pelo nome de "revolução tecnológica", cujas invenções e descobertas fundamentais ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, mas cuja utilização econômica só ocorreu a partir da crise dos anos 70. Os resultados, sobretudo no campo da microeletrônica, dos computadores e da telecomunicação afetaram diretamente a extensão, o custo e a velocidade da circulação das informações, facilitando a integração em tempo real de todos os mercados financeiros e provocando alterações produtivas e gerenciais que têm permitido aumentos de produtividade e lucratividade, sobretudo depois de 1990, a custas, em grande medida, de uma redução gigantesca dos postos de trabalho.
- a quinta transformação vem ocorrendo no campo do trabalho ou do emprego. Depois de 25 anos de alto crescimento sustentado e baixos índices de desemprego, a crise dos anos 70, seguida das políticas deflacionistas e das mudanças tecnológicas, provocou uma desaceleração do crescimento e uma reestruturação produtiva que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, do ponto de vista do número de empregos, de sua remuneração, da sua organização sindical e dos direitos sociais e trabalhistas. Em poucos anos cai vertiginosamente o número do operariado fabril clássico e cresce o universo do trabalho precarizado, subcontratado, terceirizado etc. A participação salarial na renda nacional também cai em quase todo o mundo, e o desemprego estrutural global somado ao trabalho precarizado já atingiu, no final deste século, a casa do 1 bilhão de trabalhadores, ou 1/3 da População Economicamente Ativa mundial.
- sexta transformação ocorreu no espaço da periferia capitalista e representou uma mudança radical da estratégia seguida pelos seus principais Estados, desde a Segunda Guerra, com o objetivo de promover seu desenvolvimento econômico. Esta grande mudança de estratégia foi mais um resultado da crise econômica mundial que se alastrou a partir dos países centrais, desde o fim do sistema de Bretton Woods, e atingiu as principais economias periféricas que enfrentaram, nos anos 80, como conseqüência, uma crise generalizada de balanço de pagamentos. Crise que os obrigou a submeterem-se às políticas de ajuste de corte neoliberal impostas pelos credores, organismos internacionais e governos centrais, em troca da renegociação de suas dívidas e do retorno ao sistema financeiro internacional. De forma mais ou menos generalizada, estes países, depois de uma década, aparecem, no final dos anos 90, como um universo relativamente homogêneo do ponto de vista de suas políticas econômicas e de sua forma de inserção desregulada e subordinada às finanças privadas internacionais.
- é esta uniformidade que cria a impressão de que esteja ocorrendo também uma fragilização generalizada dos Estados nacionais e de que esta seja mais uma das mudanças irreversíveis deste final de século. Trata-se contudo de uma verdade apenas parcial. O número de Estados nacionais aumentou nestes últimos 25 anos e o que ocorreu no campo da soberania foi um aumento da distância entre o poder e a riqueza dos Estados do "núcleo central" do sistema e os da sua periferia.
Quase todos os analistas estão hoje de acordo, com pequenas variações, que estas foram as principais transformações que, neste último quarto de século, alteraram a geopolítica e a geoeconomia do mundo tal como foi organizado depois da Segunda Guerra, sob a égide da competição interestatal entre os EUA e a URSS. As grandes divergências não estão neste ponto, estão na forma em que cada um interpreta o movimento mais geral, hierarquizando suas determinações e extraindo diferentes conseqüências propositivas. De um lado, alinham-se os liberais e marxistas que subscrevem a interpretação hegemônica e privilegiam os aspectos econômicos desta segunda "grande transformação" do século XX. Para eles, trata-se de uma conseqüência necessária e inapelável das transformações tecnológicas que, somadas à expansão dos mercados, derrubaram as fronteiras territoriais e sucatearam os projetos econômicos nacionais promovendo uma redução obrigatória e virtuosa da soberania dos Estados. A partir daí, a própria globalização econômica e a força dos mercados promoveriam também uma homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento, por meio do livre comércio e da completa liberdade de circulação dos capitais privados. Esta homogeneização, por fim, acabaria conduzindo a humanidade na direção de um governo global, uma paz perpétua e uma "democracia cosmopolita", como propõe o sociólogo inglês David Held.
Do nosso ponto de vista, esta visão hegemônica tem um forte viés ideológico e no fundo reproduz, no que tem de essencial, a velha utopia liberal que desde o século XVIII vem anunciando e propondo, reiteradamente, este mesmo objetivo terminal para a "economia de mercado": um mercado global desvencilhado dos problemas impostos pelos particularismos nacionais e os protecionismos estatais. O problema é que esta utopia vem sendo reiteradamente negada pelos caminhos reais da história econômica e política do capitalismo, e parece cada vez mais distante do que vem ocorrendo, de fato, nestes últimos 25 anos de história. Para nós, o fenômeno da globalização econômica é inseparável das transformações políticas e ideológicas e das conseqüências sociais deste período. Ela não é uma imposição tecnológica, nem tampouco apenas um fenômeno puramente econômico, envolvendo novas formas de dominação social e política que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de determinados interesses, tanto no plano internacional quanto no espaço dos Estados nacionais. Nesse sentido, nossa visão da ruptura e das transformações que se desdobram a partir dos anos 70 corresponde a uma visão ou teoria mais ampla sobre a dinâmica do capitalismo histórico e sobre as suas permanências e regularidades, que atravessam os pontos de ruptura, mantendo-se vigentes, na expressão de Braudel, como "leis estruturais e de longo prazo do sistema". Estruturas e regularidades que incluem um movimento simultâneo e interrelacionado de acumulação de poder e riqueza, alavancado a um só tempo pela competição interestatal e pelas relações de dominação entre os poderes dominantes e os grupos sociais e países subordinados. Desde a constituição do capitalismo como um sistema econômico global e nacional a um só tempo, e da constituição dos Estados territoriais, houve certas regras constantes de relacionamento entre os Estados e destes com seus capitais privados. Considera-se, normalmente, que o capital sempre teve uma vocação à globalidade que seria permanentemente contida pelos poderes territoriais ou pela "mesquinharia" dos Estados. Mas esta não é uma visão fiel aos fatos e à história. Desde suas origens, os Estados territoriais e os capitais demonstraram a mesma vocação compulsiva e competitiva ao império e à globalidade. Foi assim na primeira onda colonial européia – entre 1500 e a derrota francesa na disputa com a Inglaterra pelo domínio comercial da Índia, na metade do século XVIII –, como também na segunda grande onda colonial inaugurada, uma vez mais, na Índia, na metade do século XIX. É interessante observar, com Karl Polanyi, que é nesta mesma hora que se consolidam, também, o primeiro sistema monetário internacional e a crença na eficácia dos mercados auto-regulados. É o mesmo momento, aliás, em que assumimos nossa condição de periferia deste sistema econômico e geopolítico organizado, inicialmente, em torno à hegemonia inglesa.