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Entrevista com Fernando Novais, um dos mais importantes historiadores brasileiros

Fernando Novais é um dos mais importantes historiadores brasileiros. Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial (Hucitec) é uma análise já clássica da formação nacional, articulando a colonização e a Independência com a dinâmica mundial do desenvolvimento do capitalismo. Recentemente, Novais organizou a História da vida privada no Brasil, lançada em quatro volumes (Companhia das Letras).

A comemoração dos quinhentos anos tem como referência a viagem de Pedro Álvares Cabral, conhecida como de descobrimento do Brasil, da mesma forma que a carta de Pero Vaz de Caminha ficou conhecida como a certidão de batismo do Brasil. As primeiras coisas a se discutir são, assim, a viagem de Cabral e a carta de Caminha.
A viagem de Cabral suscita, pelo menos, dois problemas: O primeiro, muito discutido, é que a tradição e a historiografia deram à sua viagem o nome de “descobrimento do Brasil”, o que envolve um claro eurocentrismo. Se os portugueses descobriram os tupiniquins, tupinambás etc., foram também descobertos pelos índios. Falar em descobrimento do Brasil, como em descobrimento da América, é a visão do vencedor. Isto tem sido muito discutido. Nos anos 50, o historiador mexicano Edmundo O’Gorman escreveu La invención de América, um belíssimo texto em que diz que não há descobrimento da América porque ela não existia; havia, sim, um território. A América foi inventada, não descoberta! O Brasil também teria que ser inventado. E certamente não foi Pedro Álvares Cabral quem inventou o Brasil, da mesma forma que a América não foi inventada por Colombo.

O desdobramento dessa idéia dá, por vezes, lugar a equívocos. Um deles se desenvolveu nos anos 60 e 70: se essa é a visão do vencedor, do colonialismo e do imperialismo, então a nossa história teria que ser escrita do ponto de vista contrário, isto é, do vencido, dos índios. Isso é um delírio, porque não podemos nos converter em índios. Esse revisionismo – procurar fazer história sem etnocentrismo – produziu algumas obras interessantes, como, por exemplo, os novos trabalhos sobre história da Igreja na América Latina, escritos na perspectiva da Teologia da Libertação. Mas se essa obra tem contribuições notáveis, tem também um viés complicado. A Teologia da Libertação diz, por exemplo, que a verdadeira catequese tem que preservar a cultura do índio. Eu perguntei num debate: “mas como vocês vão preservar a cultura do índio, se, nela, a religião é fundamental??” Aí os teólogos dessa corrente dizem: “Nós acreditamos que o cristianismo seja compatível com qualquer cultura”. Ora, isso é uma matéria de fé, que não pode ser demonstrada.

Por que os historiadores começaram a ter essa reação depois dos anos 50?
Os povos daqui eram iletrados, sua história era oral, eles não tinham registros escritos. O que temos de história são os escritos europeus, alguns melhores, outros piores. Frei Vicente do Salvador, por exemplo, que escreveu a primeira história do Brasil, é um grande historiador. Criada essa tradição, a história da reconstituição dos eventos se apresentou até o século XX como a história, simplesmente, e não como a história dos europeus. Ao se criticar essa concepção, a análise elaborada do ponto de vista dos índios passou a ser apresentada como uma outra história, a verdadeira. Ora, a visão dos índios se expressa nos estudos de etno-história. Acho que seria importante lembrar estudos como os de Wachtel sobre o Peru e de Padden sobre o México, que reconstituem a visão dos astecas ou dos incas com relação à conquista. Mas, mesmo ao tentar fazer isso, ele vê o processo por intermédio, no mais das vezes, do texto do conquistador, que é o registro disponível para pesquisar. Podemos, assim, entender como a visão do europeu foi apresentada como sendo a história tout court. Mas, o que seria história? A história seria algo que integrasse as duas visões, superando-as e ultrapassando-as, que explicasse por que os índios viviam desse jeito, por que os europeus viviam daquele jeito e dissesse como foi. Mas talvez isso seja impossível.

Gadamer diz que a constituição desse ponto de vista capaz de integrar culturas diferentes só pode ser resultado da vivência conjunta de duas culturas...
O problema é se é possível fazer isso no discurso. Pode até existir uma certa vivência, mas não verbalizada. Isso é muito difícil. Talvez só a arte possa fazê-lo.

Quando você diz que o ideal seria juntar a história do vencedor com a história do vencido, superar ambas e construir a história plena, e que isso talvez só seja possível na arte, lembrei que existem os casos de Garcilaso de la Vega, El Inca, no Peru, e de Hernán de Alvarado Tezozómoc, no México. Eram casos de primeira geração, de mãe nativa e pai espanhol. Foi uma primeira tentativa, que resultou em obras interessantíssimas.
Há alguns casos. Eu até diria que a partir dos anos 60 os historiadores em geral, mesmo quando fazem a crítica da história como a história dos vencidos, não o fazem para recair no etnocentrismo. Quero dizer que talvez isso seja impossível para determinados momentos da história. Se tomamos o Garcilaso, o que temos é a visão do conquistador, é a visão da conquista enxertada com a experiência do conquistado, que é descendente da primeira geração dos filhos das camadas altas submetidas no processo de conquista. Na realidade, ele acabou sendo aculturado, vê a cultura dos incas com uma certa exterioridade. É muito difícil.

A partir dessa visão, faz sentido se falar nos quinhentos anos?
O segundo aspecto, que curiosamente não foi muito discutido, é que essas designações, “descobrimento do Brasil”, “descobrimento da América”, não são só etnocêntricas, mas também anacrônicas. E para o historiador, o anacronismo é o pecado capital, aquele que não pode ser cometido. O anacronismo é fazer um discurso histórico, isto é, reconstituir um ou uma série de eventos ocorridos num determinado momento, numa determinada região, sem esquecer o que aconteceu depois. O historiador conhece isso, mas os protagonistas não. A tentação de imputar aos protagonistas o conhecimento do que veio depois é muito grande e aí o historiador cai no anacronismo. O problemático na idéia de “descobrimento do Brasil” é que o anacronismo está evidente.

O Brasil é um povo que constituiu uma nação que se organizou em Estado nacional. Isto existe desde o século XIX. Mas dizer que o Brasil foi descoberto em 1500 é atribuir a Cabral a fundação do Brasil, o que é um anacronismo evidente. Esquecer e lembrar não é decisão pessoal de ninguém; não esquecemos e nem lembramos o que queremos. Ao contrário, muitas vezes queremos esquecer uma coisa, mas não conseguimos; outras vezes, queremos lembrar outra coisa, e não lembramos. No limite, se absolutizamos isso, o historia­dor tem de procurar outro emprego.

Como não somos radicais, o que temos de fazer é, quando estamos escrevendo, colocar entre parênteses o que aconteceu depois e nos esforçarmos ao máximo para não reconstituir aquilo como se o outro soubesse o que aconteceu depois. Lucien Febvre falava a respeito das leituras do Rabelais: na França dos anos 30, lia-se Rabelais e começava-se a discutir se ele era ateu ou não – “mais uma glória da França do século XVI: já tínhamos um escritor que não acreditava em Deus”. Ele disse: “vocês estão lendo Rabelais, como se Rabelais tivesse lido Kant, Freud, Marx, Comte, Darwin, que vocês leram e ele não leu! Vocês têm que ver como ele foi lido pelos contemporâneos. Algum contemporâneo leu Rabelais e disse que ele era ateu? Não. Então, ele não podia ser ateu. Porque isso é anacronismo”. E conclui dizendo o mais importante: “o verdadeiro critério para avaliar o texto de um historiador é saber em que medida ele evitou o anacronismo. Quanto mais consegue evitar, melhor o texto de história, quanto menos consegue evitar, pior”.

Há, porém, um tipo de história em que o anacronismo é um problema mais grave. É quando o objeto do discurso historiográfico é a nação; aí o anacronismo é inevitável! Porque uma nação precisa de um passado para se legitimar. Vamos tomar uma historiografia de ponta, a francesa. Quando começa a história da França? Na Gália romana. Mas isso não tem, rigorosamente, nada a ver. O território da Gália romana estava destinado a ser a França? Seria como começar a história da Hungria com a província romana da Panônia...

Quais são os pressupostos do anacronismo em história?
É uma inversão na ordem, no recorte do objeto. Todo objeto histórico tem três recortes. Primeiro, o recorte lógico: qual é o assunto? do que se vai tratar? Segundo, o recorte cronológico: quando aconteceu? Terceiro, o recorte espacial: onde aconteceu?

Mas a seqüência deve seguir essa ordem, porque é o lógico que comanda. Não se pode inverter. Quando se recorta o território da nação e entende como história da nação tudo que se sabe que aconteceu dentro daquele território, o anacronismo é inevitável.

Começa-se a construir a historiografia brasileira em 1838, em plena Regência, quando o Estado nacional corre riscos e pode não se constituir por causa das revoltas separatistas. O que é que se cria então? O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. De que uma nação precisa? Território e passado. Já se fez o recorte da história, começando naturalmente por Cabral, porque é o que se conhecia, tinha tradição e documentação. Como os índios não tinham documentos escritos, não entravam na história. Com o passar do tempo, vêm as ciências sociais e dizem: “mas isso é muito reacionário, dizer que os índios não têm história”. Passa a entrar, então, tudo que soubermos dos índios brasileiros – isto é, índios residentes no Brasil –, outra loucura completa. Começa-se a procurar o que se sabe dos índios antes de Cabral... Nada disso é história do Brasil!

Quando o país foi colônia isso ainda é pior. Você pode evitar o anacronismo num país que se formou pela junção de feudos; é mais fácil evitar o anacronismo num país que era um feudo e virou monarquia, como Portugal. Mas numa colônia que vira nação, como entra a história da metrópole? A tendência do metropolitano é dizer que ele é o criador do país, e no caso do Brasil, que somos criação de Portugal. A questão do anacronismo em história nacional é uma desgraça; quando a nação foi colônia é uma desgraça maior, e entre as nações que foram colônia, nenhuma é tão complicada como o Brasil.

Há uma desproporção fantástica entre a pequenez da metrópole e a imensidão da colônia. Isso faz com que os portugueses, muito legitimamente, procurem entender por que é assim. Mas aí eles querem dizer que tinham uma vocação para navegadores, para descobrir o mundo, para semear nações. Dizem: “a colonização portuguesa é diferente das outras. As outras visavam à exploração. Nós não, nós somos criadores de nações..” O resultado disso é os portugueses quererem explicar a Independência do Brasil como um acidente de percurso – e há brasileiros que ainda engolem isso. Desaparece o caráter conflituoso da separação. É tudo “ajudado” pela própria história.

Dessa forma, quando se fala que a viagem do Cabral é o descobrimento do Brasil é preciso fazer as duas críticas, a crítica do etnocentrismo, que está na palavra “descobrimento”, e a crítica do anacronismo, que está na palavra “Brasil”. É essa distinção que as pessoas não percebem. É fazer a história da colônia como se ela estivesse destinada a se tornar uma nação. Ninguém descobriu ninguém e o Brasil só existiria muito depois.

Como o anacronismo se manifesta na história do Brasil?
Estuda-se, por exemplo, a história de Beckmann no Maranhão. Ele virou um herói nacional, antecessor de Tiradentes e coisas do tipo. Beckmann foi enforcado realmente, punido pela Coroa porque prendeu o governador e o mandou de volta para a metrópole. Mas quais eram suas reivindicações? Primeiro, reivindicava que a Coroa chamasse os jesuítas de volta para Portugal, porque eles atrapalhavam o uso dos índios, impedindo sua escravização. Segundo, como não se tinha índios para trabalhar, tinha-se que comprar escravos africanos. Mas só se podia comprar da Companhia de Comércio, que colocava o preço nas nuvens. Logo, as grandes reivindicações desse herói eram o direito de escravizar os índios e de comprar escravos africanos a preço baixo.

Quando e por que a colônia vai se transformando numa nação? Como a nação se gesta dentro da colônia? A Independência do Brasil foi um processo político de extrema complexidade, que não se resolve com anacronismo.

É por isso que um político como José Bonifácio é fantástico. Ele merece a designação de patriarca. Ele é obrigado a negar a colonização e, ao mesmo tempo, não pode deixar de reivindicá-la. Tem que negar a colonização para fundar a Nação, o Estado nacional, e reivindicar a colonização para assegurar o território e manter os escravos. Nega e reivindica a colonização para se legitimar. Fazer isso é uma coisa muito complicada. Não é por acaso que o presidente Fernando Henrique Cardoso, depois de se comparar a Getúlio, se comparou a Bonifácio. José Bonifácio também tinha de fazer a abertura do Brasil para o mundo, mas não podia querer, por exemplo, abolir a escravidão. José Bonifácio, como, aliás, Thomas Jefferson nos Estados Unidos, os dois patriarcas, têm textos claríssimos sobre isso.

Qual foi a grande dificuldade de Bonifácio?
Foi essa contradição: ter de negar a colonização e ao mesmo tempo reivindicá-la. A história é contraditória. Os portugueses são, sim, os criadores do Brasil, mas ao mesmo tempo o Brasil se formou contra eles. Nossa tendência, na história da Independência, é acentuar o segundo aspecto para afirmar, nossa identidade, aquilo em que somos diferentes, o que provoca o conflito. A dos historiadores portugueses é acentuar a continuidade. Eu fico danado quando vejo meus colegas historiadores embarcarem na onda da continuidade. Um dos princípios da escola da Nova História é a longa duração. Fazer a história da longa duração seria trabalhar aquilo que é mais significativo. Começa-se, então, a achar que a Independência, por exemplo, não é importante, porque é uma coisa muito rápida, que dura alguns anos, no máximo alguns decênios. Esse diálogo é interessante e precisa ser feito no transcurso dessas comemorações.

Mas o que significam as comemorações dos quinhentos anos?
Significam esse equívoco! Não quer dizer, por exemplo, que as viagens não foram importantes. O significado da via­gem de Cabral é o significado que ela teve nas viagens dos séculos XV e XVI. Essas viagens, em conjunto, foram uma mudança na história do mundo, porque retiraram as civilizações da insularidade. A partir daí elas se interpenetram de forma conflituosa, em um processo que só hoje parece adquirir todos os seus contornos. Quer dizer, a história moderna tem sentido para toda a humanidade. Já as histórias antiga e medieval só têm sentido para a Europa. É a partir do século XVI que começa a ter sentido falar de uma história universal. Não é por acaso que as primeiras histórias da humanidade, de caráter não-religioso, são as dos cronistas portugueses.

Quais são os cronistas do período colonial que melhor captaram essa realidade?
Eu reli recentemente a carta do Pero Vaz de Caminha para fazer um comentário para uma nova edição do texto. A carta é fantástica. Era um escrivão e, simultaneamente, um escritor. Normalmente os escrivães costumam ser o fim da picada como escritores, mas ele escrevia bem. E tinha uma percepção aguda do que acontecia. Quando ele começa a narrar os encontros – estou falando dos desencontros de culturas ­­–, cometendo conscientemente um anacronismo, eu afirmaria que há dois textos dialogando na sua carta: um é o “fetichismo da mercadoria”, de Karl Marx; outro é o “Ensaio sobre o dom”, do Marcel Mauss. É a lógica da mercadoria e a norma da dádiva. Os portugueses queriam trocar coisas com os índios. Os índios não entendiam a troca, você dá uma coisa para o outro, o outro lhe dá outra. O português queria dar um colar, ia atrás dos índios, quando eles se retiravam para as aldeias, com o colar. Daqui a pouco vinham dois índios, um de cada lado do português, e acenavam à caravela para que viessem buscar porque eles não queriam o colar e também não queriam que o sujeito ficasse lá. Que coisa impressionante! Pero Vaz de Caminha tinha assegurado seu lugar na história. Não é preciso ficar dando à carta o nome de certidão de nascimento ou de batismo do Brasil. O seu texto prescinde dessas designações anacrônicas.

Posteriormente, em 1627, Frei Vicente do Salvador escreveu a História da custódia do Brasil. É fantástica a sua visão! Ele conseguiu elaborar uma fórmula para definir a economia colonial: é uma produção simples de mercadorias com acumulação primitiva de capital comercial autônomo. Tudo isso está na obra de Frei Vicente, quando ele diz: “ficavam agarrados ao litoral como caranguejos. E se ensinassem os papagaios a falar, o que primeiro lhes ensinariam seria: ‘papagaio real pera Portugal’”, e acrescenta: “porque tudo querem para lá”. Isso em negrito. Acumulação primitiva de capital comercial autônomo! Não é que a produção seja feita para lá; é para acumular lá.

O que é curioso, é que o Frei Vicente tenha, em 1627, essa visão de conjunto, essa visão profunda que posteriormente regride na historiografia do Brasil. Frei Vicente é muito mais agudo na sua compreensão, ele tem muito mais percepção da colonização e da estrutura da colônia do que, por exemplo, o historiador Sebastião da Rocha Pita que, em 1720, escreveu a História da América Portuguesa. No fim do século XVIII, quando está começando a se gestar uma certa consciência nacional, todos os cronistas fazem história regional: Frei Gaspar da Madre de Deus, em São Paulo; Accioly na Bahia; Pizarro, Baltazar da Silva Lisboa, no Rio de Janeiro etc. Quando não havia essa consciência nacional, Frei Vicente fala como se houvesse, percebe que ela está latente.

Quando se pode falar e qual é o sentido de se falar em nação brasileira? Qual é o lugar que ocupa, na formação nacional, o processo colonial?
A própria idéia de sistema colonial é uma forma de evitar o anacronismo. Quando iniciei meus estudos sobre o sistema colonial ainda não tinha muita clareza a respeito disso, mas nos meus últimos trabalhos sobre o tema já estava bastante consciente desta questão, formulando o problema a partir dos três recortes na ordem certa – o lógico, o cronológico e, depois, o espacial.

Quando fazemos história do Brasil temos o recorte lógico: o Brasil. O que é o Brasil? É um povo, que se constitui em uma nação, que se organiza como um Estado. História do Brasil é contar como isso aconteceu. E o primeiro elemento é que isso aconteceu no bojo de um fenômeno chamado colonização. Portanto, o recorte correto do ponto de vista lógico não é Brasil, é colonização. Do ponto de vista cronológico, não é 1500, é 1530, começo da colonização, na área que depois veio a ser o Brasil.

A colonização em geral é o recorte correto, de onde sai o conceito de sistema colonial. E colonização portuguesa é a amostragem do recorte. Você não precisa estudar toda a colonização para estudar a história do Brasil, mas tem que estudar a estrutura da colonização. Na medida que se afunila para a colonização portuguesa, vai se procurando ver como essa colônia foi se transformando numa nação.

Antes da segunda metade do sé­culo XVIII não temos nada. Surge, então, uma consciência por parte das populações daqui de como elas eram diferentes dos portugueses. Estou falando dos colonos brancos, claro. O que aparece primeiro é um mal-estar presente na idéia de diferença. Só mais tarde é que começam a perceber o choque de interesses. Brasileiro, até o século XIX, significava comerciante de pau-brasil. A autodesignação, na América portuguesa, se dá primeiro regionalmente: no século XVIII se fala em paulistas; no século XVII, desde a guerra holandesa, se fala em pernambucanos; se fala em maranhenses, em fluminenses. A tomada de consciência da identidade nacional é posterior à identidade regional. Ao contrário da América espanhola, cuja população de origem européia cha­mava-se a si mesma, desde o início, de criollos. Criollo é o branco nascido na América espanhola. Aqui no Brasil não há nenhuma palavra que corresponda a criollo.

Então, enquanto já no século XVI os hispano-americanos têm uma sensação de identidade própria, aqui tínhamos uma identificação negativa: sabíamos o que não éramos, “nós não somos reinóis”, que era o português nascido no Reino. É uma coisa terrível, porque o sujeito, que não sabe o que é, é um sujeito sem identidade. Somos um povo de macunaímas!

No Diálogo das Grandezas do Brasil, de 1618, há um pouco disso. É um diálogo de um sujeito que está no Recife, se chama Brandônio, com um amigo, que está em Lisboa e se chama Alvia­no. O diálogo inteiro é o Brandônio dizendo “você não me entende. Só há um jeito de você entender isso aqui, vir para cá”. Ele está defendendo a nova terra.

O problema de quando começa o Brasil é o mesmo de quando começa a histo­rio­grafia brasileira. As crônicas dos séculos XVI, XVII e XVIII são parte da historiografia portuguesa ou brasileira? Não há como distinguir...
Estou querendo escrever sobre isso, para chegar a uma conclusão paradoxal: a historiografia brasileira, que começa com Frei Vicente, andou para trás. No século XVIII as memórias são todas locais, todas são histórias regionais. Não há um que faça história geral. Os cronistas se aproximaram da visão da metrópole, para a qual a colônia é um conjunto de capitanias que se relacionam diretamente com Portugal. O vice-rei do Rio de Janeiro tem pouco poder.

Isso remete para o problema da preservação da unidade territorial da América portuguesa e da fragmentação da América espanhola, para a relação entre Estado e Nação. É a Nação que se expressa no Estado ou é o Estado que constitui a Nação?
A relação entre Nação e Estado é sempre complicada. Na Europa, na época moderna, o princípio de unificação do Estado é a realeza e não a nacionalidade. A monarquia usa a nacionalidade como instrumento ideológico para justificar guerras e disputar territórios. A soberania encarna-se no rei. Quando Luís XIV invade o Franco Condado, ele usa o argumento de que ali se fala francês; quando ele invade a Alsácia e a Lorena, usa o argumento ligado à idéia de fronteiras naturais, já que lá todos são alemães! Isso mostra o que era o Estado.

No caso do Brasil, a Independência ocorre no século XIX, quando o movimento das nacionalidades procurava fazer com que os Estados coincidissem com as nações. Vários acabaram conseguindo. A Polônia virou uma nação. Mas a Suíça até hoje tem quatro nacionalidades e um Estado.

Na América, a melhor forma para entender as forças em jogo no processo de independência é assistir ao filme do Gillo Pontecorvo, Queimada. É a crise do sistema colonial com tudo: a Inglaterra, a metrópole, a ilha, a plantation típica, a elite colonial, os escravos. Só não tem os índios. Ali é possível ter idéia de como a coisa funcionava no concreto.

No Brasil, temos um problema complicado. Há uma precedência do Estado, mas de um certo tipo, o Estado metropolitano. Este é um Estado cindido, porque a relação entre o Estado e a sociedade é uma na colônia e outra na metrópole. Na colônia, a classe dominante não é a elite dirigente. A classe dominante aqui é o senhoriato colonial, dos donos de terra e de gentes. Eles têm ares de senhores, porque receberam as terras por doação e conquistaram as gentes pela violência e pelo dinheiro. São senhores e querem ser nobres.

A Independência representa então, de certa forma, ajustar a sociedade ao Estado. A Nação funciona para esse ajuste, é inventada para dizer: “nós somos o Brasil..” Esse “nós” abrange ín­dios, negros, a plebe urbana e o senhoriato. Como se para os negros e os índios houvesse alguma diferença entre ser governado pelo senhoriato ou pela metrópole. Na verdade, houve diferenças sim, mas para pior.

Se a força de baixo, os índios servilizados ou negros escravizados, é uma ameaça muito grande, a tendência do senhoriato é, no limite, se lançar nos braços da metrópole. Onde houve rebeliões muito fortes, o senhoriato se lança nos braços da metrópole para conter a insurgência das camadas de baixo. O Peru, por exemplo, só se tornou independente porque os exércitos de San Martín e de Bolívar conquistaram o país, reuniram-se em Guayaquil e resolveram impor a independência. Por quê? Porque entre 1781 e 1783, o conflito travado com Tupac Amaru matou milhares de pessoas. O senhoriato não queria mais ouvir falar de independência. Quando se começa o processo de independência, tudo vai depender da resistência da metrópole: se for preciso mobilizar os “de baixo”, o que aconteceu na América espanhola, o risco aumenta. Mas lá havia mais a servidão de índios do que a escravidão, que era pouca. E é possível mobilizar servos, mas não se pode mobilizar escravos. Não se pode dar o fuzil para eles e depois querer tirar. Dentre os fatores importantes da abolição no Brasil encontra-se a Guerra do Paraguai.

Mas o que levou à divisão da América espanhola?
Há certas tendências econômicas, mas que não explicam tudo. Em primeiro lugar, há uma tomada de consciência maior da identidade, que vem desde o século XVI. Ademais, a Espanha re­sistiu mais, teve mais força, o conflito foi mais radical, e eles tiveram que mobilizar os “de baixo”. Mobilizaram, mas na hora em que o senhoriato chegou ao po­der, ele quis continuar explorando-os. Portanto, ele só quis abranger o território em que tinha segurança de que controlava a mão-de-obra.

E no Brasil em contrapartida não houve movimentos independentistas fortes...
No Brasil houve duas inconfidências, a da Bahia e a de Minas. A da Bahia – a Revolta dos Alfaiates – é muito mais radical. Como resultado, foram enforcados quatro inconfidentes. Esta inconfidência da Bahia pôs um tal medo no senhoriato que eles abandonaram qualquer idéia de independência. A de Minas não criou tanto impacto porque não ameaçou tanto. A da Bahia tinha escravos, tinha negros. Era um movimento simultaneamente abolicionista. Eram descendentes de escravos. Os quatro que foram mortos eram mulatos: Manuel Faustino, João de Deus, Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas. O Dantas é o único que destoa, não é um nome popular, os outros são todos nomes extremamente populares. Nenhum virou herói nacional. Isso é notável. Mesmo a Inconfidência Mineira só começou a ser tratada depois da Proclamação da República e mesmo esta não incorporou esses quatro heróis. Só recentemente a bibliografia passou a falar do assunto.

Em Minas o único sujeito que vivia falando sobre a questão da escravidão era o Tiradentes. O pessoal se reunia, discutia a Constituição, a cor da bandeira, e o Tiradentes a perguntar: “e os escravos??” Aí eles inventavam uma coisa para aquietar o Tiradentes, que era insistente e obcecado, que só queria falar dos escravos. Não por acaso ele foi enforcado.

Como era a política colonial portuguesa nesse período?
A política portuguesa era muito agressiva. O reformismo ilustrado em Portugal é um dos movimentos mais brilhantes do fim do século XVIII. É notável a capacidade daqueles estadistas. Quando havia uma ameaça e o senhoriato ficava com medo da base, a metrópole fazia uma política desenvolvimentista, e eles tendiam a se aproximar da metrópole. E quando D. João VI veio para cá, tivemos um caso curioso em que o Estado foi à frente das demandas da sociedade. D. João VI transformou o Brasil na sede do Império e foi muito além das demandas do senhoriato colonial. O Estado deu mais coisas do que a sociedade estava pedindo. Por isso, eles só começaram a falar em independência quando os portugueses exigiram a volta do rei e apareceu o risco de desmanchar o que já estava feito. Por isso, a Independência do Brasil é uma revolução conservadora. Uma colônia virar uma nação soberana é uma revolução. Mas ela é conservadora porque se fez para conservar algo que já tinha sido feito no período joanino.

A América espanhola se fragmentou porque teve de mobilizar os “de baixo”, radicalizando o movimento. A América portuguesa não se fragmentou porque não radicalizou e não teve de mobilizar para baixo. Aliás, não podia radicalizar, porque em baixo estavam os escravos. Por isso há vinculação entre escravidão e unidade territorial, coisa que o José Bonifácio percebeu. Quando o Fernando Henrique se comparou ao Bonifácio, um jornalista escreveu um artigo, que tem um título bom: “Será o Bonifácio??”

Então é central tratar do problema da escravidão.
Exato. Tanto Jefferson como Bonifácio perceberam que havia uma contradição entre fazer a independência em nome da liberdade e do liberalismo e manter metade da população escrava. Mas eles perceberam também que ou mantinham a escravidão e faziam a independência; ou faziam a abolição e perdiam a independência ou a unidade territorial. São três termos: unidade territorial, independência e escravidão. Jefferson disse: “se abolirmos a escravidão podemos chegar à independência, mas não teremos a unidade, porque nem todos os estados vão ficar unidos”. Claro, os estados que tinham escravismo não entrariam. Bonifácio é mais radical, disse: “se abolirmos a escravidão não vamos ter independência”. A independência é feita por realismo político. Quem a queria? O senhoriato. Não era possível fazer a independência contra eles. Por que a reação de Jefferson é outra? Porque lá a escravidão não dominava toda a colônia, enquanto aqui abrangia a totalidade.

Os americanos adoram vir ao Brasil estudar a abolição; os melhores livros sobre a abolição no Brasil são deles. Eles mesmo dizem que o seu ponto de partida é saber como foi possível aqui resolver um problema dessa gravidade sem guerra civil. A razão é óbvia. Como poderia haver uma guerra civil no Brasil se todo o território era uma sociedade escravista? A única guerra que poderia haver era dos escravos contra os senhores de escravos. E para evitar esta é que se fez a Independência e se tratou de fazer paulatinamente a abolição.

É curioso que tanto Jefferson como Bonifácio tenham percebido que não se podia fugir do problema e que a solução seria a mesma para os dois, ou seja, a promoção paulatina da abolição, para que a Nação se encontrasse com o Estado. Isso, diz Jefferson, é feito pela República. O José Bonifácio não precisa dizê-lo, porque é a monarquia que garante o encontro da Nação com o Estado. Os dois achavam que dever-se-ia fazer paulatinamente a abolição. A única diferença entre eles – e um não leu o outro – é sobre o que fazer com os negros depois da libertação. Bonifácio diz o que todo brasileiro diz: “Eles vão sendo integrados na sociedade brasileira aos poucos..” Jefferson diz: “Mandamo-los de volta para África..” O calvinista e o jesuíta! Criaram um Estado lá e que­riam mandar os negros de volta. Eles só não foram porque se recusavam a entrar no navio. “Não queríamos vir para cá, agora que viemos vocês nos agüentem”. Estão agüentando até hoje!

Assim, tivemos um Estado unitário, senhorial, e uma população que não se reconhecia como nação?
Sim, mas tendencialmente isso foi sendo alterado, num processo cujo fio condutor é a vida concreta das pessoas. Apesar de escravos, eles estavam vivendo, sentindo, constituindo uma cultura comum. E essa consciência hoje existe. A população se identifica com o Brasil.

Qual é o sentido, então, dessas comemorações dos quinhentos anos em uma sociedade com essas raízes?
O sentido das comemorações é o sentido que elas sempre têm. Fala-se em quinhentos anos do descobrimento do Brasil para dar legitimidade à Nação, à pátria, para dizer que ela é uma das mais antigas da América. Mas mesmo se pensarmos em colonização, isso está errado. Porque a colonização começou em 1532, com Martim Afonso de Souza. Antes disso, o que eles fizeram foi deixar uma pedra, um marco.

José Corrêa Leite e Walnice Nogueira Galvão são membros do Conselho de Redação de Teoria e Debate.