Qual tem sido a política do Estado brasileiro com relação aos índios?
A política indianista brasileira é extremamente contraditória. Por vezes, algumas legislações temporárias davam mais liberdade aos índios, matava-se menos, pregava-se uma certa boa vontade. Mas logo refluía tudo. É um vai e vem da colônia até a primeira república, mas que deixa claro sempre uma tendência antiindígena.
No começo do século uma boa parte dos índios continuava nas suas aldeias, por vezes isolados. Tinham contato com missões da Igreja, que sempre se esmeraram em catequizá-los. Com a república, o governo central começa a controlar os assuntos da Nação. Ora, um grande problema para isso era a questão indígena. Data do começo deste século a fundação do Serviço de Proteção aos Índios, que buscou acabar com as concessões de proteção dadas à Igreja. O controle passou para o governo federal. Mas é um controle administrativo, pouco efetivo, dada a distribuição espacial dessas populações, a maior parte na Amazônia.
Desde o início se nota o desejo de formar índios iguais a nós. Isso começou com as catequeses, visando levá-los a crer no Deus dos europeus. Mas a idéia de fazê-los iguais aos brancos era de torná-los trabalhadores rurais. Os índios têm usufruto perpétuo das terras que habitam, que são da União. Enquanto forem índios eles podem usar estas terras. Por trás dessa tendência de fazê-los iguais a nós está o objetivo de liberar terra de certos territórios, tidos como muito grandes para uma população pequena. Nunca se entendeu – ou não se quis entender – a forma de produzir do índio.
Vemos nesses últimos cem anos, na população indígena, uma crescente substituição de hábitos, relações de trabalho, crenças. Adotou-se uma política de contato paternalista. A aproximação com um grupo é feita deixando presentes, com uma generosidade enorme, que vai minguando à medida que a população indígena vai se habituando ao contato. Até que de repente é apresentada a idéia de que a comunidade tem que ser auto-sustentável. Porém, com o acréscimo grande de necessidades que o contato traz, não é possível eles se tornarem auto-sustentáveis com a agricultura.
Como essa política influenciou o comportamento dos indígenas?
Uma parcela da população indígena queria parecer igual aos brancos. Passaram a se vestir iguais, a usar tênis, e a ter aspirações semelhantes. Em alguns casos, eles têm computador, fax, televisão, mesmo que não haja eletricidade na aldeia. Fundam, então, uma associação e montam um escritório na cidade mais próxima, onde vão gerir os assuntos da aldeia. Aí a tecnologia se impõe e eles começam a pensar muito parecido ao jovem da cidade. Toda a mídia – a televisão em particular – atinge essa população, que tende a ficar igual na maneira de pensar, de vestir, de agir, nos objetivos que se coloca.
O antropólogo sempre reclama disso, porque quando ele chega na aldeia encontra as mesmas reivindicações, as mesmas angústias da juventude da cidade. Há uma homogeneização centrada na mercadoria. Todos se rendem a ela, e não há limite para se parar de desejar mercadorias. É sufocante, porque você vê se formar aos poucos uma geração que tem como principal preocupação o consumo, inclusive buscando se igualar às elites médias ou altas. Não há nada de culturalmente criativo – nem arte, nem música.
Esse processo atinge todos?
Esse processo é contraditório. Restam, em primeiro lugar, os velhos, que vão perdendo a liderança. São substituídos pelos novos líderes, que sabem falar português, que têm grande participação política. Os velhos são alijados e ficam, na melhor das hipóteses, com as coisas que para os jovens parecem um pouco fora de lugar: os mitos, as tradições, as grandes festas. E as mulheres que, como não têm um contato muito continuado com o exterior, guardam um pouco mais a tradição.
Mas entre os jovens é só isso que existe?
Não, porque por mais que o discurso fosse o da igualdade, a prática mostra que não é possível ser muito igual. Em conseqüência, há um interessante fenômeno, no período mais recente, de politização da nova geração. Em estados como Acre, Pará e Amazonas, há vários grupos indígenas cujos líderes são de partidos como o PCdoB e o PT. O exercício da política se dá por meio das associações fundadas para representar o grupo. As associações são o núcleo de interlocução com o Estado, com as agências financiadoras ou com qualquer outra entidade. Tradicionalmente, para entrar em uma área indígena era preciso pedir autorização ao Ministério da Justiça, à Funai. Hoje as entidades do governo é que solicitam autorização. Quem decide se convém à comunidade a entrada é a associação. As associações gerem os negócios modernos da comunidade.
Por outro lado, a terra permanece sendo dos índios enquanto eles forem índios. Os jovens já perceberam que ser índio é a chave que permite ter terras. Sempre há invasões, mas a contestação sistemática tende a diminuir. Latifundiários e grileiros temem quando se inicia um processo para demonstrar que a terra é indígena, pois sabem que acabarão perdendo. Então, as novas gerações percebem – em contradição com aquele desejo de consumir, de se tornar igual – que é importante ser índio, cultuar tradições, reafirmar as origens.
Ser índio se transforma portanto em um objetivo político, porque assegura uma série de coisas. E isso encontra eco entre os velhos e as mulheres. Poderíamos dizer que as crianças são socializadas basicamente pelas mulheres, na primeira infância, de uma forma mais tradicionalista. Quando chegam numa certa idade, são motivadas pelo consumo, vão para as cidades, conhecem os computadores, as televisões; depois, ao entrar nas associações, reconhecem o valor das tradições. Hoje assistimos a essa reação de reafirmação. Há casos de alguns grupos, no Nordeste, que acabaram esquecendo a língua. Eles foram, então, fazer um estágio em grupos que têm língua semelhante para aprenderem-na como uma segunda língua, e por meio desse processo recuperarem a sua própria. Poderia dizer que temos hoje uma nova geração de índios.
Essas jovens lideranças vivem, então, entre dois universos?
Esses dois universos enriquecem a existência dessa população mais jovem. Ela conheceu o universo das reivindicações políticas, buscando mais recursos e melhorias para suas comunidades e portanto transita bem nas grandes cidades, tendo ideologias bem definidas, mais à esquerda ou mais à direita – também há a direita principalmente através das correntes cristãs evangélicas. Então, por força de uma percepção política mais aguçada, o ser índio constitui-se num elemento fundamental. Eles perceberam que não funcionava a idéia de torná-los iguais e optaram por ser diferentes; assim é mais fácil encontrar um espaço na sociedade. Sendo igual, o indígena cai na vala comum, acaba virando trabalhador rural etc.