Nacional

As tradições políticas impregnam uma sociedade. Impossível fazer política sem partir delas, o que não quer dizer que é preciso se conformar passivamente a seu império

"Quando a gente tenta
De toda maneira
Dele se guardar,
Sentimento ilhado,
Morto, amordaçado
Volta a incomodar"

Clodo & Clésio

Quando Leonel Brizola reuniu em Lisboa, em 1979, às vésperas da anistia, os adeptos da proposta de refundação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), houve uma atmosfera de (re)inaugurações. Não se rejeitaram as tradições trabalhistas, longe disso, mas os congressistas não se deram ao trabalho de efetuar um balanço crítico da experiência acumulada, das lutas sociais que sempre acompanharam o trabalhismo, de suas promessas, programas e ilusões, de suas derrotas e vitórias. As tradições eram mencionadas e reverenciadas nos discursos, mas o ânimo que predominava era o de um recomeço.

A idéia era a de que estava nascendo um "novo" PTB. Moderno. Aberto a articulações internacionais, pretendia inserir-se na Internacional Social-democrata. Disposto ao diálogo no país, queria desligar-se das derivas radicais que o haviam caracterizado na conjuntura que precedera a instauração da ditadura militar em 1964. Tratava-se de enfrentar as tarefas do presente, preparar o futuro como um partido renovado. Esta renovação, de resto, manifestava-se nas figuras presentes no Congresso, onde se mesclavam, ao lado de velhos dirigentes políticos e sindicais, alguns vindos do Brasil, ex-participantes das autodenominadas organizações revolucionárias dos anos 60 e intelectuais socialistas. O próprio Brizola, durante longos anos tido e havido como um político intratável, emergiu com propostas construtivas e moderadas, favoráveis ao diálogo, voltadas para o futuro, sem cultivar mágoas e ressentimentos. Como líder máximo do partido, ele era a própria personificação de um processo que se queria livre dos liames do passado.

A mesma orientação, ainda mais enfática, voltaria a predominar, menos de um ano depois, no Brasil, por ocasião da fundação do Partido dos Trabalhadores.

Estavam ali acontecendo vários fenômenos inéditos na história política do país. Na esteira de amplos movimentos sociais, vanguardeados por segmentos operários dos centros industriais mais modernos, apareceram lideranças sindicais não apenas interessadas em lutar por melhores condições de vida e de trabalho, mas também em construir uma alternativa político-partidária. Articularam-se então com políticos e intelectuais provenientes dos mais variados quadrantes, inclusive das organizações que haviam participado das ações armadas nos anos 60, além de lideranças das correntes cristãs, católicos em particular, que haviam participado das lutas contra a ditadura militar, para formar um partido legal, aberto, comprometido com as lutas sociais, mas sem perder de vista a necessidade de participar das lutas institucionais. O socialismo, como perspectiva, embora em termos vagos, constava explicitamente do programa.

As novidades e as rupturas reais geravam também uma euforia de inaugurações. O PT não teria compromissos com o passado, com as tradições elitistas, corruptas e clientelistas da política nacional. Seria um partido das bases esquecidas, das vozes silenciadas, dos que viviam do próprio trabalho. Algo "novo" no contexto da história do país, uma espécie de "marco zero". Suas figuras de proa o atestavam, a começar pela do dirigente máximo, um líder sindical, operário. O PT era uma verdadeira frente política, na qual estavam representadas variadas tendências, inclusive organizações autodenominadas revolucionárias remanescentes: a Ação Popular (AP), o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP), a Convergência Socialista (CS), entre outras.

Nestas circunstâncias predominou, quase consensualmente, a idéia de que o partido recém-nascido só tinha amarras com o futuro. Um dirigente mais ousado lançaria, anos depois, a peregrina idéia de que o PT não era o último partido do socialismo do século XX, mas o primeiro do século XXI. Uma bravata, evidentemente, mas que exprimia muito menos a miopia de um militante do que a opinião média de um partido que se queria como negação de todo um passado que não parecia lhe dizer respeito.

Este desprezo pelo passado, esta maneira, como diria o poeta, de "ilhá-lo" de todas maneiras, cercando-o pelos mares do presente e do futuro, não fora uma invenção do PTB, refundado em Lisboa, nem do PT, mas a expressão retomada de uma idiossincrasia que mergulha raízes na história das esquerdas brasileiras.

Nos anos 60, todo o movimento da chamada "esquerda revolucionária", ou "nova esquerda", compartilhou desta volúpia pelo "novo". O passado era um entulho de derrotas e de enganos, de erros e traições, nada tinha a ensinar. Considerá-lo, seria uma perda de tempo. Os usos e abusos do conceito de populismo desempenharam então um papel devastador. A versão que passou a predominar era a de que os trabalhadores haviam sido "desviados" de seus autênticos interesses por líderes "populistas" (PTB) e "reformistas" (PCB). A ditadura militar, apesar de todo o seu cortejo de horrores e tragédias, teria, ao menos, este mérito: faria "cair as máscaras". Os derrotados sairiam agora de cena, criando-se as condições propícias para o avanço revolucionário...

Se o observador recuar mais ainda no tempo, analisando as variadas tendências das esquerdas diversas, não teria dificuldade de flagrar o fenômeno, em diversas nuanças, condicionadas pelo tempo e pelo lugar, mas sempre recorrente. Existiria uma barreira metafísica entre as esquerdas e o passado? Uma maldição histórica, induzindo-as à amnésia? Nem uma coisa, nem outra, evidentemente. Sem pretender esgotar o assunto, proponho algumas sugestões para ajudar a compreender as difíceis relações das esquerdas com o passado.

As esquerdas são filhas legítimas da modernidade, onde nada dura e as mudanças vão adquirindo ritmos alucinados ("tudo o que é sólido se desmancha no ar"). Neste tempo lançado para o futuro, elas se apresentam como fatores dinâmicos, os mais comprometidos, os mais decididos e os mais favoráveis à sua chegada, aos "ventos que hão de vir". Por esta razão, entre outras, estarão sempre se demarcando dos chamados "Antigos Regimes", caracterizados como tempos velhos, estagnados, mortos.

Além disso, por sua própria natureza, as esquerdas estão comprometidas com as mudanças. Precisam tensionar todas as suas forças contra os interesses adquiridos, a ordem vigente, a tradição. Nesta difícil luta é preciso cerrar fileiras, apurar a coesão interna, a capacidade de arrostar perigos e incompreensões que cercam sempre os que desejam inovar, reformar, revolucionar. O culto ao novo tem aí um poderoso estímulo. Não gratuitamente, nas grandes revoluções, não poucos se imaginaram dando início a um Novo Tempo, com direito, inclusive, a novos calendários. Até aqui estas observações são válidas para as esquerdas em geral, não apenas para as brasileiras.

No caso do nosso país, é preciso aduzir as freqüentes rupturas ocasionadas na trajetória das esquerdas, periodicamente tendo seus partidos fechados, seus líderes exilados ou mortos, interrompendo percursos, dificultando o exercício da memória. Sem falar na marca das derrotas. Abrir uma reflexão sobre um passado de derrotas é reabrir feridas, permitir processos de acusações mútuas, liberar o fantasma da desagregação. A história das reviravoltas dos comunistas brasileiros é emblemática deste ponto de vista. Sempre houve um cuidado muito grande em silenciar sobre o passado do qual se estavam desligando.

Finalmente, não se pode esquecer um inevitável mimetismo em relação às tradições dominantes, que impregnam a cultura política da sociedade. Ora, é sabido como as elites dominantes brasileiras cultuam e adoram empregar o termo "novo". A "Nova" República (depois de 1930), o Estado "Novo" (em 1937), a República "Nova" (depois da ditadura), entre muitas outras, são expressões bastante conhecidas e disseminadas, mas basta observar as campanhas eleitorais para perceber, até mesmo entre os candidatos conservadores, a inclinação e o gosto pela exploração do "novo" (a campanha vitoriosa de Fernando Collor foi típica), o que corresponde a uma ansiedade, difusa na sociedade, por mudanças, em outras palavras, por novas propostas, novas realizações etc.

Filhas da modernidade, comprometidas com as mudanças que apontam para o futuro, marcadas por periódicas rupturas, temerosas de abrir feridas ainda malcicatrizadas, imersas numa cultura política que cultua o novo e a novidade, as esquerdas brasileiras acabaram entronizando uma profunda aversão pelo estudo e pela compreensão do seu próprio passado, ou seja, criando as melhores condições para serem tiranizadas pelos seus piores aspectos.

Este pequeno ensaio quer remar contra esta maré. Ele é um convite a uma viagem ao passado, às tradições das esquerdas. Se ele estimular a reflexão a respeito, já terá cumprido seu papel.

Na conjuntura do imediato pós-1945, quando foi deposto Vargas e se encerrou, ao menos formalmente, o Estado Novo, construíram-se, ou se reconstruíram, alternativas político-partidárias que marcaram profundamente a trajetória das esquerdas brasileiras, não apenas no período que se estendeu até 1964, como se admite correntemente, mas também até os dias de hoje.

O trabalhismo e o programa nacional-estatista

Foi um erro grave de avaliação imaginar o PTB como fruto exclusivo das manobras maquiavélicas de Vargas e de seus parceiros íntimos. Houve ali a participação de inúmeras lideranças sindicais, de políticos expressivos e de intelectuais. Ao longo de sua existência, aliás, o PTB manteve esta capacidade de atração e de aglutinação, transformando-se gradativamente, até 64, no grande canal político-partidário por meio do qual se exprimiram os anseios de uma parte considerável das classes trabalhadoras urbanas. Nos grandes movimentos sociais do período – pela afirmação da soberania nacional e pelas reformas de estrutura –, o PTB, apesar das contradições internas e da variedade das nuanças existentes em seu interior (desde os "bigorrilhos fisiológicos" até os radicais de esquerda), soube conservar a sintonia com os trabalhadores urbanos e, por isso mesmo, recebia maciçamente os seus votos.

Elaborou-se, ao longo desta experiência singular, um programa nacional-estatista, baseado em dois eixos fundamentais: a soberania nacional e a justiça social. Por soberania nacional entendia-se a capacidade do país internalizar seus centros básicos de decisão, ou seja, de garantir autonomia no contexto das relações internacionais. Um requisito essencial para isto seria a existência de um Estado forte, ativo, intervencionista, definidor de políticas públicas que impulsionassem o desenvolvimento econômico com distribuição de renda e justiça social. Por esta última, compreendia-se a necessidade de aprofundar as garantias inscritas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), editadas em 1943, e estendê-las ao mundo rural. Estas formulações correspondiam às propostas então muito em voga na Europa do pós-guerra e que, um pouco mais tarde, se corporificariam no chamado Estado do Bem-estar Social (welfare state). Exprimiam igualmente o prestígio das teorias que propunham "regular" o mercado (J. M. Keynes), evitando-se o caos que poderia advir, como foi o caso na crise de 29, do livre jogo dos interesses capitalistas. Tais teorias haviam deixado a sua marca nos arranjos internacionais que levaram à criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird). Por outro lado, não se deve deixar de recordar o imenso prestígio com que a URSS emergiu da 2ª Guerra Mundial. Ora, seu sistema social era regido pela força de um plano estatal centralizado, e tal experiência irradiava-se por todo o Terceiro Mundo, seduzindo as lideranças e os partidos afro-asiáticos e o que havia de mais progressista na América Latina. Mesmo entre aqueles que não eram partidários da destruição do capitalismo, disseminavam-se as noções do Plano, da Intervenção do Estado, da Regulação do Mercado.

O programa nacional-estatista no Brasil aparece, portanto, num contexto latino-americano e internacional. Mas não nasceu pronto, ao contrário, iria sendo retocado até alcançar sua expressão mais acabada no início dos anos 60, com as chamadas reformas de base, onde um Estado todo-poderoso, escoltado por inúmeras empresas estatais, seria o grande cérebro e motor de um processo de transformações estruturais. Neste modelo, os trabalhadores, organizados em sindicatos e controlando os institutos previdenciários, desempenhariam um papel chave, apoiando e sustentando o processo.

No período de 1945-64, as lutas sociais que então se desencadearam, desde a campanha do queremismo, passando pelas lutas pela Petrobrás, nos anos 50, até os grandes movimentos pelas reformas de base, nos anos 60, foram hegemonizados, em larga escala, pelo programa nacional-estatista. Estas lutas assumiam várias dimensões: lutas salariais e por melhores condições de vida, malchamadas (e desprezadas), num certo jargão, como "econômicas"; lutas políticas propriamente ditas, visando a revogação ou a reforma de dispositivos legais ou constitucionais, ou o próprio poder político; lutas eleitorais.

Para conduzi-las, ou realizá-las, além do PTB e de frentes parlamentares mais amplas, aglutinando lideranças de outros partidos, como a Frente Parlamentar Nacionalista, recorria-se às estruturas sindicais criadas no âmbito do Estado Novo e não eliminadas pela Constituição de 46. Apesar de controladas pelo Estado, era possível, por isso mesmo, dependendo da conjuntura, dispor de amplas margens de manobra. No final do período, inclusive, estimuladas pela radicalização das lutas sociais e bafejadas pelo apoio e proteção do governo João Goulart, começaram a surgir inúmeras estruturas sindicais "paralelas", formalmente ilegais, mas toleradas pelo governo e reconhecidas pelas entidades patronais.

Nunca seria demais insistir que o apoio, a aliança e a articulação com instâncias do Estado – empresas estatais, institutos de previdência, os próprios órgãos governamentais em seus vários níveis – desempenhavam papel central na dinâmica dos movimentos sociais.

Na concretização do programa nacional-estatal, grandes avanços foram registrados, principalmente nos governos presididos por Vargas (1950-54) e por Goulart (1961-64). Os trabalhadores, especialmente no último período, alcançaram níveis inéditos de influência e participação no poder político. Além disso, estavam conseguindo índices significativos de participação no produto nacional bruto. No governo de Jango, como o programa passou a ser rejeitado, de forma cada vez mais virulenta pelas classes e elites dominantes, apareceram tendências radicalizadas, e mesmo revolucionárias, dentro do PTB. O impacto da Revolução Cubana, vitoriosa em 1959, da Revolução Argelina, em 1962, o processo das independências afro-asiáticas, a guerra do Vietnã estavam então abrindo horizontes em que tudo parecia possível em termos de reformas – ou revoluções – de estruturas sociais.

Formou-se, assim, uma subcultura política, articulada em torno de um programa, de determinadas estruturas organizativas e de certas lideranças carismáticas: o "trabalhismo". A ditadura militar, quando se instaurou, pretendeu destruir para sempre esta tradição, mas ela sobreviveu ao tempo dos generais-presidentes.

Comunistas: a difícil busca de uma identidade

Em 1945, no contexto da queda do Estado Novo, emergiram da clandestinidade os comunistas, como partido legal, amplo, com propósitos de participar ativamente das lutas sociais e institucionais. O partido tinha tradições e experiências acumuladas, desde 1922, mas cedo se percebeu pressionado pelo imenso prestígio do PTB e de seus líderes nas classes trabalhadoras. A aliança com o trabalhismo passou então a dominar a sua trajetória.

Foi esta aliança, sem dúvida, a responsável pela sua inserção nos movimentos sociais. Na campanha queremista, ainda em 45, nas lutas nacionalistas dos anos 50, no grande movimento pelas reformas de base, os comunistas estariam ombro a ombro com os trabalhistas, aliados pela consecução do programa nacional-estatista. Muitos críticos acusariam o velho Partidão de capitulacionismo no âmbito desta aliança, na qual se esmaecia seu perfil e desaparecia sua personalidade própria. Mas era como se as circunstâncias das lutas urbanas não abrissem outro caminho.

Porque eles foram tentados, e testados. Quando o Partidão foi posto na ilegalidade, por exemplo, em 1947, e até 1952/54, prevaleceu a proposta de enfrentamento armado com a ordem vigente. Houve apelos neste sentido, definiram-se programas, inspirados, em parte, na triunfante Revolução Chinesa (1949), algum esforço foi despendido na organização de guerrilhas rurais. Sem resultados. A partir de 1952, suas bases operárias começaram a pressionar e a executar uma reorientação que privilegiava, mesmo nas difíceis condições da clandestinidade, as lutas sociais e institucionais e o programa que fazia parte do horizonte traçado pelo trabalhismo. Foi esta reorientação que permitiu aos comunistas participarem com êxito das campanhas nacionalistas, saindo do gueto político a que os relegaram as propostas de luta armada.

Entre 1961 e 64, no contexto da radicalização das lutas sociais, emergiram novamente, entre os comunistas, tendências radicais, favoráveis ao enfrentamento armado. Como no interior do trabalhismo, e no de todas as demais correntes populares, formou-se com força considerável a idéia de que as classes e elites dominantes não abririam mão de seus privilégios, que seria preciso arrancar as reformas de base à força. Um slogan sintetizou esta perspectiva: reforma agrária "na lei ou na marra". Seus partidários já não acreditavam que seria possível conseguir as reformas nos quadros da legalidade e passaram a advogar o confronto, se fosse o caso com armas nas mãos, como via para a realização do programa nacional-estatista.

Esta opção teria continuidade, apesar da derrota de 64, depois de instaurada a ditadura militar. No contexto da desagregação dos partidos comprometidos com as reformas de base, emergiu um conjunto de forças políticas dispostas a levar à frente o enfrentamento armado. Imaginando-se "revolucionárias" e radicalmente "novas", não se davam conta de que, pelos seus ideais e programas, e pelos seus métodos, estavam mais próximas que distantes das tendências que desejavam superar. Em nenhum momento conseguiram formular uma teoria – ou um programa – fora dos marcos das tradições construídas e legadas pelos trabalhistas e comunistas. O reduzidíssimo eco que encontraram na sociedade apenas confirma o estado de desorientação e desmoralização políticas que se abatera sobre os movimentos sociais favoráveis às reformas de base.

O cristianismo social

O cristianismo tem uma longa tradição conservadora no Brasil, embora sejam registradas fricções e disputas entre seus representantes e a ordem vigente. Nas primeiras décadas da história republicana, e até 1964, a hierarquia da Igreja Católica manteve-se distante, quando não contrária, às principais lutas populares. No contexto da guerra fria, iniciada logo depois do término da 2ª Guerra Mundial, o "fantasma do comunismo" acentuou estas inclinações. Não gratuitamente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) abençoou o golpe militar.

Entretanto, ainda antes de 64, impulsionados pelo processo de aggiornamento conduzido pelo papa João XXIII e inspirados pelas encíclicas que chamavam atenção para os problemas sociais e para os interesses dos desfavorecidos, grupos e movimentos católicos começaram a se agitar. Da Juventude Universitária Católica (JUC), emergiu uma organização radical, a Ação Popular (AP), que reuniu forças suficientes para se tornar hegemônica na União Nacional dos Estudantes (UNE) e participou ativamente do amplo movimento das reformas de base.

A AP, apesar das tentativas de preservar um perfil próprio, foi arrastada pela onda do programa e das lutas nacional-estatistas do período. Depois da vitória do golpe militar, suas diversas alas se dividiriam nos padrões da esquerda autodenominada revolucionária, sendo jogadas no gueto político onde permaneceram até o fim da ditadura.

No interior do catolicismo, contudo, começaram a aparecer notas dissonantes. O apoio ao golpe fora dado em nome da restauração da democracia, não para a instauração de uma ditadura de duração indefinida. Além disso, a ditadura associava-se, cada vez mais, a um projeto de desenvolvimento do capitalismo que se realizava com soberano desprezo pelos valores religiosos e pelas desigualdades sociais. Setores da Igreja foram se passando para o campo da crítica e da luta contra a ditadura. Ordens religiosas, eminências diversas, bispos e cardeais, e os numerosos contingentes dos leigos, organizados nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) constituíram fator de resistência maior às ações dos governos militares. No seu interior desenvolveu-se inclusive um programa radical, elaborado por um grupo minoritário, mas que chegou a assumir real expressão, o da teologia da libertação.

Os representantes do cristianismo social, depois da ditadura, tomaram parte na fundação ou na refundação dos partidos populares, agregando-se, com suas características, às tradições plasmadas pelo nacional-estatismo.

A semente do socialismo democrático

Na conjuntura do imediato pós-guerra, articulou-se outra corrente política. Proveniente de diversas origens, grupos formados fundamentalmente por intelectuais, mas também por algumas lideranças operárias, formularam um programa socialista e democrático e construíram o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Criticavam os comunistas, entre outros aspectos, pelo seu autoritarismo e pela submissão acrítica às orientações de Moscou. Quanto aos trabalhistas, rejeitavam suas grandes lideranças, entre as quais Vargas, e a valorização excessiva do Estado, a negligência com que tratavam os valores democráticos, as idéias, consideradas ilusórias, de que seria possível construir um capitalismo reformado.

Espremido entre as tradições trabalhistas e comunistas, o PSB tentou, mas não conseguiu, obter expressão política e social. Acabou também envolvido nas lutas nacionalistas dos anos 50 e, nos anos 60, participaria igualmente da frente política que lutava pela realização do programa nacional-estatista.

A tradição socialista e democrática seria, contudo, cultivada em pequenos grupos dissidentes, alternativos. Ganhou força ao longo dos anos 60 e 70, entre os que resistiram à ditadura nas estreitas margens legais e, no exílio, entre os que descobriam as virtudes dos valores democráticos.

Na fundação do PT, na refundação dos demais partidos identificados com as transformações sociais, esta tradição se faria presente com idéias, personalidades, propostas e valores.

O lombo duro das tradições

Neste rápido balanço, pretendeu-se elaborar uma viagem às tradições das esquerdas em nosso país.

A ditadura quis varrer com elas, particularmente com o trabalhismo e com o programa nacional-estatista, vistos, com razão, como expressão e legado da abominada "era Vargas". Não conseguiu. Um de seus esteios básicos – a estrutura sindical corporativa – permaneceu e foi reforçada, estendendo-se ao mundo rural. De dentro dela, inclusive, sairiam grande parte dos líderes populares dos anos 80 e 90, como Lula, Olívio Dutra etc., o que atesta sua relativa autonomia e vitalidade.

Por outro lado, a partir do segundo governo militar, retomou-se a proposta desenvolvimentista articulada em torno do Estado, levada ao paroxismo sob o general Geisel, quando se lançaram projetos que, se realizados, poderiam assegurar ao país uma real autonomia econômica no plano internacional. A hipertrofia do Estado e o enxame de empresas estatais eram a prova viva da existência de bases materiais favoráveis à reemergência eventual de um programa nacional-estatista.

De fato, aspectos importantes deste programa renasceram com a fundação ou refundação dos partidos de esquerda no início dos anos 80. Talvez a maioria não tenha percebido, no alarido do "novo", a presença de antigas propostas. Mas elas estavam lá, basta conferir os programas então formulados. Por isso mesmo, quando se empreendeu a destruição das tradições nacional-estatistas, ao longo dos anos 90, uma obra dos governos Collor e FHC, as esquerdas encontraram-se imersas em lutas defensivas, de "retaguarda". A cruel ironia: os partidos "novos" (PT, PDT etc.), agarrados na defesa do "velho" programa nacional-estatista.

Os partidos políticos populares fundados e/ou refundados em fins dos anos 70 e início dos anos 80, embora aportando aspectos inovadores e mesmo rupturas radicais, cometeram a grande imprudência de se julgarem livres dos legados e das tradições. Ora, se as tradições políticas podem, em princípio, ser inventadas, não é qualquer invenção, em qualquer circunstância, que se afirma e se consolida.

As tradições políticas impregnam uma sociedade, constituem uma cultura, um tecido difícil de rasgar e jogar no lixo. Não adianta ilhá-las e amordaçá-las porque, nos momentos mais imprevistos, elas voltam a incomodar. Impossível fazer política sem partir delas, o que não quer dizer que é preciso se conformar passivamente a seu império.

Mas, para superá-las, é preciso aprofundar o conhecimento e o diálogo com elas. Embora bastante dilapidadas pelas novas formas assumidas pelo capitalismo, as tradições aqui visitadas permanecem vivas. Em tempos de crise, ou de enfrentamentos, poderão reemergir com a força das coisas ignoradas.

Daniel Aarão Reis Filho é professor de História Contemporânea da UFF.