Nacional

A burguesia brasileira já não é a mesma. Para alguns, elevou-se à categoria de burguesia internacional. Para outros, suicidou-se como classe social de raízes nacionais. Há ainda os que enxergam em seu meio um saudável processo de reciclagem, com a emergência de setores ligados às altas tecnologias, aos serviços e a novas formas de produção

A moderna burguesia brasileira nasceu em meados do século XIX, dentro da sociedade escravista em decadência e num momento em que o capitalismo mundial preparava as condições para ingressar em sua fase monopolista. Ela não surge das entranhas de uma sociedade feudal que não existiu no Brasil. Ou, como a burguesia européia, das camadas médias que se aglomeravam nos burgos medievais em função do comércio e em luta contra os feudais. Ou como a burguesia americana, de pequeno-burgueses independentes. A burguesia industrial brasileira nasce do entesouramento praticado pelos latifundiários e pela burguesia mercantil (principalmente os traficantes de escravos), sob a proteção do Estado imperial. Nasce, pois, no berço esplêndido das velhas classes dominantes.

No correr dos tempos ela se diferencia. Mas, não escapa da sina de haver nascido caudatária e agregada a elas e a seus interesses, que só em certos pontos coincidem com os capitalistas. Essa origem servil marcará o desenvolvimento capitalista no Brasil, manifestando-se na economia, através dos diversos ciclos de dependência aos latifundiários, às burguesias mercantil e financeira, ao Estado e ao capital estrangeiro. Ou na ideologia, por meio da incorporação, à ideologia burguesa importada, dos traços ultraconservadores das antigas classes dominantes. E na política, por meio da adoção de formas autoritárias de Estado, peculiares àquelas classes.

Quando o escravismo morre, a burguesia não tinha força, nem fez esforços, para transformar os escravos em força de trabalho livre para o capitalismo. O fracasso de Mauá é o símbolo dessa época. A classe latifundiária dominante conservou o monopólio fundiário e manteve os ex-escravos como proprietários de suas condições de existência nas divisas da grande propriedade rural. Tornou-os agregados, geradores de renda territorial, mas não assalariados criadores de mais-valia.

Mesmo assim, a crescente exportação de elementos do modo de produção dos países mais avançados para os mais atrasados ampliou o poder burguês. O capital monopolista exportou não só mercadorias, mas seus capitais excedentes para investir em minas, meios de transporte e oficinas. Querendo ou não, ampliou o capitalismo local e as bases para seu posterior desenvolvimento, mesmo subordinado.

Nutrida dessa forma, a burguesia industrial brasileira cresceu e ganhou forças e, na década de 30, na garupa das oligarquias dissidentes, chegou ao poder e à classe dominante associada, sendo modernizada sob a tutela do novo Estado latifundiário-burguês. A partir dos anos 50, estabeleceu sua própria dominação sobre os demais setores burgueses e a sociedade, outra vez auxiliada pelas mudanças no sistema capitalista mundial e em íntima associação com a burguesia monopolista estrangeira.

Esta, sob a pressão de seus excedentes, do comunismo, da descolonização e da luta de classes, transformou-se no principal elemento de desenvolvimento industrial do Brasil. Realizou um rápido processo de modernização dos meios de comunicação e transportes, ampliou as indústrias que já possuía no país e implantou a automobilística, a de tratores, a naval e a base de uma indústria de bens de produção. Porém, ao instalar fábricas modernas e utilizar métodos e práticas capitalistas desenvolvidas, a burguesia imperialista destruiu alguns setores da brasileira, aguçou as contradições com eles e reforçou, momentaneamente, a idéia de que impediria o desenvolvimento econômico e imporia à "burguesia nacional" um caminho revolucionário para desenvolver-se.

Nada mais ilusório. Aquela destruição foi compensada pela criação de novas oportunidades. Mesmo dependentes e girando em torno das multinacionais, toda a burguesia e estratos da pequena burguesia cresceram como nunca. Seguindo novos padrões, a burguesia monopolista estrangeira nacionalizou-se, passou a ser parte da burguesia local, a participar das decisões relativas ao destino da economia e, portanto, do país. O capital estrangeiro não se realizava mais somente de forma indireta, por intermédio da circulação de mercadorias e dos juros de financiamentos e empréstimos: explorava diretamente a força de trabalho brasileira.

Entretanto, entre os anos 50 e 60, a força de trabalho não estava à completa disposição do capital monopolista. O latifúndio, onde os trabalhadores detinham a propriedade de meios de trabalho, era então seu principal repositório. Para realizar a industrialização acelerada tornava-se necessário "libertar" do latifúndio e de suas relações pré-capitalistas os moradores, agregados, rendeiros, foreiros, parceiros, arrendantes, meeiros, terceiros etc., de modo a explorá-los "livremente".

A eliminação do latifúndio democratizaria a propriedade do principal meio de produção agrícola e ampliaria o mercado interno, mas não criaria o mercado de força de trabalho na rapidez e na extensão demandadas pelo capital monopolista. Isto só poderia ser alcançado com sua modernização, sua transformação em latifúndio capitalista, capaz de usar modernos meios de produção e, com isso, "libertar" contingentes enormes de agregados pré-capitalistas e, ainda, tornar-se mercado para a indústria.

Essas duas vias de modernização capitalista, uma democrática e outra conservadora, confrontam-se e marcam todo o período. Ao contrário, porém, das expectativas no interesse da burguesia pela primeira via e do esforço para elevá-la à direção do movimento democrático e nacionalista, ela manteve sua tradicional aliança com o capital monopolista estrangeiro e com os latifundiários, patrocinou com eles o golpe militar de 64 e apoiou o Estado ditatorial para realizar outro salto no desenvolvimento capitalista no Brasil.

Mas os latifundiários foram obrigados a modernizar-se. Sua modernização não foi apenas o processo pelo qual a burguesia, estrangeira e brasileira, manteve sua aliança com eles e, ao mesmo tempo, expropriou o campesinato. Foi também a maneira pela qual aquela classe transformou-se numa das frações da burguesia e os demais setores burgueses se latifundizaram. Através do Estado militarizado, a burguesia financiou o latifúndio e a si própria para instalar sesmarias capitalistas e criar um vasto exército industrial de reserva, miserável e favelado, mas "livre" para a exploração capitalista.

As realizações burguesas

Se a burguesia brasileira não perpetrou qualquer revolução social democrática, ela realizou, por meio do Estado e pactuada com a burguesia estrangeira, uma verdadeira revolução nas forças produtivas e nas relações de produção, principalmente entre 1964 e 1974. Colocou a seu serviço as antigas relações de produção, ampliou a agricultura de commodities e a agroindústria, criou fábricas modernas, acelerou a mudança na composição orgânica do capital e construiu o importante departamento de bens de capital.

Mas ela ganhou maturidade no momento em que o sistema capitalista mundial sofria transformações profundas, em que cada passo na revolucionarização de suas forças produtivas era um passo no desnudamento de sua irracionalidade social. Assim, do ponto de vista ideológico, a burguesia brasileira nada podia revolucionar. Não podia ir além da mescla da ideologia escravista, feudal e mercantilista das antigas classes das quais se originou, com a ideologia do capital monopolista da fase imperialista.

Do ponto de vista político, custou a entender a nova proposta democrática imperialista. Seus pruridos democrático-radicais jamais haviam passado de elemento de barganha nos "arranjos por cima", como na primeira república, na "revolução" de 30 e nas mobilizações "nacionalistas" e "populistas" dos anos 40 e 50. Nos embates críticos, em que o movimento popular tentou mudanças sociais, mesmo no sentido capitalista, mas democráticas, ela aliou-se aos interesses contra-revolucionários da burguesia estrangeira e dos latifundiários e, a seu modo, fez a revolução antes que o povo a fizesse.

Assim, na década de 70, quando o regime militar esgotou suas possibilidades, a burguesia resistiu à implantação de uma democracia liberal plena. Por um lado, tinha medo da nova força social dos trabalhadores. Por outro, não sabia como assimilar a pressão da burguesia transnacional por um rearranjo no velho pacto de dominação entre os diferentes capitais, no qual a democracia de encenação deveria aparecer como dádiva suprema.

Teve também dificuldade em assumir a nova ideologia e o novo projeto neoliberal de desenvolvimento modernizador. Não estava mais diante unicamente de alternativas capitalistas de desenvolvimento. A expansão de seu modo de produção colocara a via socialista como opção de reorganização econômica, social e política, apesar do descenso e da crise do movimento revolucionário e socialista no resto do mundo. No Brasil, o socialismo apresentava-se não mais como um modelo externo a ser seguido, mas como uma necessidade de superação do capitalismo realmente existente aqui.

Atarantada na busca de novas vias de desenvolvimento, foi obrigada a colocar-se sob a direção do barão-ladrão-aventureiro, em 1989, e unificar-se sob o receituário e a repactuação neoliberal, mesmo sem ter claras todas as suas implicações, para impedir a ascensão de um governo de tendências socialistas.

A capitulação ao neoliberalismo

A repactuação neoliberal pretendia, a curto prazo, promover uma intensa reestruturação econômica, não restringindo a globalização à absorção dos capitais estatais pelos privados. Também os capitais privados nacionais deveriam ser engolidos, com a destruição dos setores não competitivos e a monopolização da economia exclusivamente pelos capitais transnacionais.

Uma rearticulação burguesa dessa envergadura exigia que o Estado nacional se retirasse das atividades econômicas, mas assumisse, ao mesmo tempo, o papel de forte agente de amortecimento das tensões geradas pela destruição de cadeias produtivas, pelo desemprego estrutural, pela transferência massiva de riquezas e pelo alastramento da massa de despossuídos. A economia se tornaria uma selva em que só os tigres teriam vez e o Estado caçador não se faria presente para matá-los, mas para protegê-los como a uma espécie rara.

Uma combinação de populismo sofisticado, publicidade enganosa, renovação de expectativas virtuais, mistificação teórica, fisiologismo desbragado e outros mecanismos de alienação social e política deveria ser utilizada com eficácia para consolidar a fragmentação e segmentação sociais. Quanto mais eficaz a realidade virtual, mais conformista e alienada a reação das grandes massas da população.

Mas, para isto não bastava a transformação da burguesia dos meios de comunicação num quarto poder, o poder midiático. Como mostrara a experiência das diretas-já, sem contar com um segmento social que assumisse as rédeas do poder e a hegemonia, aparentando representar o interesse geral da sociedade e da nação no imaginário popular, o povo poderia livrar-se do feitiço, ir para as ruas, obrigar o mago da comunicação global a curvar-se à realidade e desbaratar os planos de domínio. Collor e seu bando foram incapazes de cumprir esse papel, quase colocam tudo a perder e tiveram que ser defenestrados.

Foi um achado que parcela significativa da antiga intelectualidade de esquerda se dispusesse a substituí-los, sob a direção do príncipe dos sociólogos, acelerando as políticas de estabilização monetária, reestruturação produtiva, abertura e desregulamentação econômicas, competição anárquica e abandono dos deveres sociais do Estado. Mas estas políticas, ao tempo que intensificaram a dominação da economia pelas transnacionais, agravaram com rapidez os problemas estruturais e estimularam a instabilidade social e política.

O Brasil foi, assim, transformado em campo de caça das megacorporações transnacionais, desses imensos monopólios capitalistas que, como hidras colossais, possuem o cérebro pensante em seus países de origem, e seus olhos, nariz, boca e membros segmentados por milhões de unidades dispersas por quase todos os países e regiões do globo, a tal ponto que escribas idiotas podem dar-se ao luxo de afirmar que a globalização é o paraíso das micro e pequena empresas.

Essa repactuação, aceita, apoiada e incrementada pela burguesia nativa a partir do início dos anos 90, não teve repercussões profundas apenas sobre as classes sociais e os campos políticos e culturais de baixo. Não desorganizou somente o mundo do trabalho, esse mercado selvagem pelo simples fato de existir, tornando-o ainda mais brutalmente bárbaro e muro de infortúnios e lamentações sem conta. Não inverteu tão-só violentamente as idealizações de acesso da pequena burguesia ao mundo encantado burguês, ou mergulhou a massa da intelectualidade em frustrante crise existencial, ao constatar que sua vanguarda acadêmica, guindada ao poder, destrói o universalismo da universidade e afoga na negação tudo que produziu e tudo pelo qual lutou no passado. Ela mostrou-se também cruel com setores da própria burguesia, penalizando-os por acreditarem que a competitividade era só para os de baixo.

A nova estirpe

A burguesia transnacional prometera o deslumbrante mundo desenvolvido para a brasileira. E esta, como o mentiroso que acredita nas próprias mentiras, supôs que seria mantido o tradicional pacto de dominação entre os capitais privados nacionais e estrangeiros, apenas às custas dos capitais estatais. Entretanto, com a voracidade própria dos carnívoros predadores, a burguesia transnacional deglutiu também a maior parte da burguesia industrial, mastigou grandes nacos da burguesia comercial e da financeira e mantém entre seus dentes a burguesia agrária.

As 494 empresas transnacionais instaladas no Brasil têm um capital investido de US$ 186 bilhões, devendo chegar a US$ 240 bilhões entre 1997 e 2006. Um quinto do PIB brasileiro encontra-se diretamente em suas mãos. Metade dos capitais externos investidos no Brasil entre 1995 e 1999 foram empregados em privatizações e incorporações. Só o número de bancos estrangeiros no mercado brasileiro, um mercado cativo do capital nacional pelo antigo pacto, aumentou 79%, embora o total de bancos tenha caído 22,4%.

A maior parte dos setores rentáveis passou para as mãos das transnacionais, enquanto os tradicionais arruinaram-se ou sobrevivem a duras penas. No cenário burguês brasileiro emergiram piratas gananciosos de todos os matizes, travestidos de representantes das grandes multinacionais ou detentores de novas áreas das finanças e das forças produtivas eletrônicas e informáticas em processo de globalização. E dessa burguesia mutante passaram a fazer parte as novas frações emergentes do crime organizado e do narcotráfico.

A burguesia industrial brasileira, tão pródiga em bravatas quando se tratava de jogar o Estado contra os trabalhadores, mais uma vez tornou público seu servilismo, sua marca de nascença, entregando-se ao estupro suicida sem qualquer gesto de resistência. As parcelas mais fortes da burguesia nativa aceitaram o papel de associadas menores ou subordinadas do capital estrangeiro, perderam qualquer viés progressista e nacional e entregaram-se de corpo e alma ao novo senhor. É natural, assim, que aceitem também como setores burgueses emergentes e de futuro os capos do crime organizado e do narcotráfico, da mesma forma que seus ancestrais coloniais tinham em alta conta os traficantes de escravos.

Esta lumpemburguesia, antes marginal e clandestina, agora movimenta bilhões de dólares, participa de inúmeros negócios legais, mais não seja para lavar o dinheiro, freqüenta os salões de elite, onde é aceita como par-inter-pares, elege-se para o parlamento, coloca representantes em altos postos do governo e do Judiciário e ganha influência sobre os destinos do país. Ao mesmo tempo, cria um Estado paralelo, de grande poder de fogo, que domina porções territoriais nas grandes cidades e no interior e aterroriza parcelas consideráveis da população, utilizando como soldados a mão-de-obra de baixo valor que o superdimensionado mercado industrial de reserva lhe oferece.

Em dez anos de implementação, a modernização capitalista promovida pelas megacorporações introduziu mudanças profundas na burguesia, criando uma nova estirpe bárbara, cuja pátria é o dinheiro e o butim o lucro máximo a qualquer custo. É natural, então, que cresça a resistência a essa burguesia de monopólio total e a suas ideologia e política. Meio tardiamente, ante a ameaça de ser engolida pelas transnacionais, até mesmo a grande burguesia brasileira faz grunhidos "nacionalistas". E, ironia das ironias, a grande burguesia internacional, reunida em Davos, mostra-se preocupada com as questões sociais e com a destruição humana causada pela globalização.

A barbárie burguesa, ante a destruição, quer mostrar humanidade, sem mudar em nada sua natureza. Como diz um economista norte-americano, muda o discurso sem mudar a prática. Mesmo porque está submetida à lógica cruel do próprio sistema capitalista que comanda e serve. A nova estirpe burguesa pode ver-se compelida, pela luta de classes, a inventar novas teorias, ideologias e políticas e a realizar recuos estratégicos e táticos, como a substituição do neoliberalismo por variantes terceiristas, social-democratas, nacionalistas, humanistas ou outras. Mas, enquanto o sistema capitalista for mantido, terá que ser cada vez mais selvagem e desesperada na busca de maiores margens de rentabilidade (ou, falando em português mais claro, de maiores taxas médias de lucro) para não ser tragada pela competição.

Por isso, os trabalhadores e as camadas populares podem até aproveitar-se das divisões e disputas intercapitalistas. Porém, quem tiver ilusão nas variantes da nova estirpe burguesa, ou na choradeira dos velhos setores burgueses contra os novos, está fadado a desempenhar apenas o papel de Chapeuzinho Vermelho.

Wladimir Pomar é jornalista, membro do Conselho de Redação de TD.