Cultura

Diversidade ou pasteurização? Intelectuais fazem reflexões sobre o panorama midiático cultural

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Alguns dos fantasmas que ultimamente rondam a cultura brasileira provêm da chamada globalização. As transformações são vastas e vertiginosas, tanto materiais quanto simbólicas, e geram inevitavelmente muita perplexidade. Além disso, as antigas categorias de análise nem sempre ajudam a entender o que está acontecendo. De um lado, há visões róseas e otimistas, que encaram o fenômeno como algo que teria o potencial de transmutar o particularismo das culturas nativas, sejam elas regionais ou nacionais, numa ampla fusão humanística e democrática. De outro, há reações melancólicas e francamente pessimistas, prevendo a homogeneização da vida cultural, numa crassa pasteurização de tudo o que sobreviver, a reboque de padrões derivados de outros quadrantes. A se confirmar tal hipótese, que parece delinear-se com precisão crescente, estaríamos apenas às voltas com um nome novo para uma velha tirania.

Sobrepõe-se a esse panorama um problema estrutural nosso: o fato de que importantes dimensões da vida cultural, numa das sociedades mais iníquas do mundo, estejam praticamente vedadas às grandes maiorias. Acentuando-se a concentração de renda e o aumento da pobreza, como será possível superar esse abismo no que se refere à apropriação concreta dos bens da cultura?

No que diz respeito à mídia e à indústria cultural, percebe-se a redução ainda maior dos níveis de pluralismo, com a tendência à uniformização dos formatos, seja de programas, seja de produtos.

Diante desse quadro TD quer promover uma reflexão sobre as perspectivas e o destino da cultura no país. A primeira idéia foi a de fazer a alguns intelectuais e personalidades ligadas à área cinco perguntas básicas que, de certa forma, estão na cabeça de qualquer cidadão comum relativamente informado.

" • Em que medida a globalização pode afetar as identidades culturais brasileiras?

• A seu ver, a globalização implica uma universalização da cultura mundial ou, ao contrário, em sua americanização?

• Em nosso país a cultura sempre esteve restrita a uma minoria. Como seria possível superar esse abismo entre os poucos que têm acesso à cultura e a imensa maioria que não tem?

• No setor mass-media, observa-se o desaparecimento do pluralismo bem como a uniformização das opiniões e dos formatos. Tal tendência deve ser encarada como uma fatalidade ou há maneiras de lutar contra isso?

• No panorama atual da cultura brasileira, o que você vê de mais instigante ou mais vivaz, apontando para o futuro?"

Estamos todos no olho do furacão. Provavelmente é cedo para respostas totalizantes, sínteses cabais sobre o fenômeno. Mas nem por isso é impossível pensá-lo, analisá-lo, criticá-lo. Não há por que abdicar de compreendê-lo. Ele não se deixa afastar por uma simples negação mas tampouco estamos condenados a sofrê-lo passivamente.

As primeiras respostas recebidas já compõem um mosaico de intuições e ângulos de análise que mostram a vivacidade e a energia interpretativa da inteligência brasileira.

Esse é um debate que deve continuar.

Alípio Freire, Luiz Dulci e Walnice Galvão

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Na verdade, hoje, cultura, com exceção de alguns pequenos grupos, tem sido sempre resultado de encontros de vários grupos sociais e, portanto, de várias culturas. A cultura brasileira é, na verdade, uma grande "mistura" de várias culturas. E devemos nos orgulhar disto. A mundialização do capital e as novas tecnologias não inauguraram esta cultura, apenas possibilitaram um aumento significativo dos encontros entre grupos sociais e da "mistura cultural".

Penso que nossa atenção e nossas preocupações não precisam se centrar na globalização, enquanto possibilidade de encontros entre culturas, mas sim, na forma antidemocrática que tem caracterizado esse encontro. Misturar é muito bom. O problema está em não misturar e impor uma determinada cultura como se fosse a melhor. O problema está em fazer das diferenças culturais fontes de desigualdade social. O problema está em fazer das referências culturais de cada grupo elemento de sofrimento psicológico.

Não há culturas melhores ou piores, pois todas elas respondem a formas de vida e a necessidades de grupos. Não há culturas naturais. São todas históricas. Compreendê-las nesta perspectiva é fundamental para nos posicionarmos contrários a qualquer forma de imposição cultural, seja por potentes organizações de comunicação, seja por processos de globalização comandados por pequenos grupos representantes do capital internacional, ou seja por visões científicas discriminatórias.

As pessoas precisam de elementos culturais para desenvolverem suas identidades. Esses elementos devem ser coerentes com a vida que levam no dia a dia. Imposição cultural pode assim ser fonte de problemas psicológicos e de sofrimento. Valorizar a cultura do cotidiano, das pessoas comuns e dos grupos que integram o nosso conjunto social é uma tarefa urgente, quando se trabalha para a promoção de saúde.

Ana Bock, professora de psicologia social e diretora da Faculdade de Psicologia da PUC-SP

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Em princípio, não estou convencido de que, em última análise, a globalização vá redundar numa ou noutra coisa. Pelo contrário, seu aprofundamento nos dois últimos decênios vem causando uma reação das culturas nacionais e regionais. Por exemplo, à criação do grande espaço econômico que é a União Européia, vem sucedendo a afirmação, muitas vezes postiça, de "identidades" nacionais e sobretudo regionais. É o que seguramente tenderá a ocorrer em escala planetária. O fenômeno é, aliás, bem visível no Brasil, onde, com o exagero previsível, muito se cultiva não só a identidade nacional como as identidades estaduais. (Identidade é, aliás, péssima definição, pois é conceito de ranço metafísico).

Como a justiça começa por casa, darei o exemplo de minha província, onde já houve quem, malgrado não ser pernambucano, escrevesse um catatau em três volumes, intitulado Pernambucanidade. Devo aduzir que levo mais de trinta anos estudando a história regional e ainda não sei o que venha a ser isso. Aliás, já se fala também em identidades municipais e há dias escutei uma referência à identidade carioca. Do jeito que vamos, descobriremos em pouco a identidade da Tijuca e de Ipanema. Em resumo: a tendência entre nós já vai a caminho do ridículo, sinal de que desaparecerá em breve, ao menos naqueles círculos intelectuais que a cultivaram inicialmente.

Não acredito na perspectiva de americanização da cultura mundial e estou mais interessado em acompanhar o processo mediante o qual os Estados Unidos estão universalizando a sua, pois é impressionante a intensidade com que as minorias nacionais que vivem ali estão remodelando, não exclusivamente para melhor, a face de uma nação que conheci nos primeiros anos sessenta ainda predominantemente WASP, isto é, "White, Anglo-Saxon, Pretestant", com leves vernizes irlandês, italiano etc. Gostaria também de acrescentar que tendemos a assimilar universalização e uniformidade cultural, o que nem sempre é o caso. O movimento romântico de século XIX foi visceralmente nacional, ao mesmo tempo que inspirado e promovido por influências cosmopolitas em escala européia. Por sua vez, a Antigüidade Clássica e a Idade Média, que viveu à sombra daquela, sendo visceralmente internacionais, conheceram também a experiência do patriotismo urbano ou local.

Evaldo Cabral de Mello, historiador, autor de Olinda Restaurada e O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669.

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A globalização é uma espécie de aprendiz de feiticeiro: sabe-se como começa, mas não se sabe como termina. O projeto ideal creio que visava a melhoria geral das condições de vida do planeta, mas se isso vai mesmo acontecer, é um dos mistérios que cercam o tema. Dá para imaginar, no entanto, que esse resultado é duvidoso, e que, muito possivelmente, em vez da igualdade objetivada, os fortes ficarão mais fortes, e os fracos por sua vez mais fracos.

Não vejo como a globalização não venha a afetar a identidade cultural brasileira, ou mesmo sua identidade política e econômica, pois a própria palavra "globalização" implica a diluição de identidades nacionais. Isso não significa, no entanto, seu desaparecimento, se houver um esforço de preservação. Um grande risco, a meu ver, reside no fato de o comando da economia mundial poder vir a ser exercido por um grupo reduzido, supranacional, de empresas gigantes, mais fortes que os governos.

Não quero ter uma visão apocalíptica, mas se não houver um esforço efetivo para contornar essas ameaças, a globalização pode afetar pesadamente culturas, economias, e até políticas nacionais.

O caminho para manter essas culturas, no que nos diz respeito, é a educação, que deveria ser nossa prioridade maior. Acho um dever imperativo da sociedade levar a cultura ao maior número, e isso nunca poderá ser conseguido sem um sistema educacional que funcione – educar as massas, reduzindo a distância que existe entre as várias camadas sociais.

Felizmente, vejo no panorama da cultura brasileira um fator instigante, além de nosso óbvio potencial: é o predomínio da juventude em nossa população. Se a maioria estivesse na minha faixa de idade, seria um caso perdido, mas o Brasil sendo o que é, podemos ter boas esperanças para o futuro.

José Mindlin, bibliófilo.

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As dicotomias caos e ordem, legalidade e arbitrariedade, sociedade e "guerra de todos contra todos", nomos e anomia, bem como a noção de identidade (ou identidades culturais) uma e una, como traço estável, "fixo", são insuficientes para compreender a sociedade brasileira.

Oscilando entre comunidade e sociedade, entre a lógica da consangüinidade e a da "solidariedade mecânica", nossa racionalidade não é a da metafísica "platônica" (que atribuiu negatividade ao variado, ao misturado, ao multicolorido), nem a da "ética protestante". À distância entre austeridade estética e puritanismo moral pode-se atribuir ao ethos brasileiro não exatamente um "leva vantagem em tudo" ou um "jeitinho" em sentido depreciativo, mas algo de métis, inteligência hábil e astuciosa que procede em linha reta mas de maneira oblíqua, por desvios.

Porque as identidades regionais, nacionais, religiosas, culturais são, entre nós, porosas e "plurais" – tanto no indivíduo quanto na coletividade –, são notáveis as chances de "resistência cultural" e o advento de uma civilidade que não apenas possa reunir as pessoas, mas uni-las por um laço afetivo, por hibridizações culturais e religiosas, pela afabilidade no cotidiano e pela solidariedade em um Brasil cosmopolita, dentro e para além de suas fronteiras, um Brasil justo e compartilhado. Como escreveu o poeta: "todos terão um pão à nossa mesa: somos os franciscanos radicais" (Jamil Almansur Haddad).

Olgária Matos, professora de filosofia na Universidade de São Paulo

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O processo de mundialização da cultura é uma configuração nova e recente das relações sociais. Ele implica transformações materiais assim como mudanças na esfera cultural (por exemplo os conceitos de espaço e de tempo).

Não se trata de uma "americanização", a menos que consigamos imaginar um mundo cujo centro seja os Estados Unidos, o que é desmentido pela história atual norte-americana e pela emergência de outros centros de poder: Comunidade Européia, Japão, "tigres asiáticos" etc. O mundo atual é certamente hierarquizado e desigual mas a modernidade-mundo não se organiza a partir de nenhum centro. Tanto a globalização material (mercado e tecnologia) quanto a mundialização da cultura incidem diretamente na constituição do Estado-Nação. Neste sentido, a discussão sobre identidade nacional mudou radicalmente. Já não é mais possível falarmos da "soberania", da "autonomia", de cada identidade, no mundo contemporâneo ela é concorrenciada pelas identidades e diferenças internas de cada país, e pelas identidades mundializadas construídas no espaço da modernidade-mundo.

Globalização não é porém sinônimo de universalização. Na idéia de universal estão contidos princípios como: democracia, liberdade, cidadania. Uma parte substantiva do mundo atual, incluindo o que chamamos de "Primeiro Mundo", dificilmente se encaixaria dentro desses parâmetros. Por exemplo o universo do consumo e do entretenimento. Por isso é possível ser global e provinciano. Isto é, atuar em escala planetária, como fazem os agentes do mercado, mas segundo princípios particulares, nada universais, ou seja, que beneficiam apenas um segmento minoritário de indivíduos e grupos sociais.

O Brasil não escapa a este quadro mais amplo de organização social e de conflito de interesses. A cultura brasileira, ou melhor, as produções, padrões, expressões culturais decantados ao longo de nossa história são desafiadas pela nova configuração do mundo. Uma alternativa seria "resistir", voltarmos as costas para as transformações atuais em nome de uma "autêntica" identidade nacional, que sabemos, nunca existiu. Aceitar isso seria no entanto validar as regras do jogo transnacional conformando-se porém à nossa posição de subalternidade. Outro caminho seria afirmar nossas expressões culturais nacionais, regionais e étnicas fora do terreno de suas raízes geográficas. Dito de uma outra maneira, afirmamos nossa diversidade enquanto cosmopolitas.

Renato Ortiz, professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp.

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Relíquia e andor da economia global em tempos de estertor da Guerra Fria, o fenômeno da globalização afeta apenas em escala a área da cultura no plano universal. O cinema foi o culpado da "grande transformação" (Karl Polanyi). Cantou certo Noel Rosa, atando premonitoriamente a ponta do filme à do mundo pop, urbano. Três apitos. Antes, Oswald de Andrade alertara no "Manifesto antropófago": "O cinema americano informará". Também Walter Benjamin no ensaio "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica": a difusão em escala internacional do filme se torna obrigatória porque a produção do artefato de fácil reprodutibilidade é tão cara que um consumidor, que poderia pagar, por exemplo, por um livro, ou um quadro, não pode mais pagar sozinho por um filme. O pagamento de um filme se dá pela soma de ingressos que consegue vender. A coletividade mundial e anônima de consumidores, vale dizer: o mercado, é que o financia.

A modernização cultural de um país periférico se dá na esfera do consumo de obras artísticas que não puderam e não podem ser ali produzidas.

A identidade cultural brasileira, núcleo de letrados, já tinha sido barbarizada antes que a reclamássemos como nossa. Invoquemos o pensamento de Simón Rodríguez (1769-1852), que por causa da leitura de Robinson Crusoe passou a assinar-se Samuel Robinson. Ele inscreveu o solilóquio latino-americano nas tábuas das guerras da Independência levadas a cabo por Simón Bolívar: O inventamos o erramos. Teria sido preciso colonizar o país, no caso a Venezuela, com o seu próprio povo, antes da chegada dos imigrantes europeus. Samuel, ou Simón, Rodríguez, ou Robinson, é o autor de cabeceira do presidente da República daquele país, Comandante Hugo Chávez.

Silviano Santiago, escritor, poeta e crítico literário.

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A globalização propõe claramente a universalização de uns poucos padrões, a unicidade, em detrimento da pluralidade. Mas, como o que enriquece a cultura é indubitavelmente a multiplicidade, uma proposta que tenda à redução não deve ser bem-vinda ao campo cultural. Um país com a extensão territorial do Brasil e com diversos brasis culturais dentro de si, certamente perderá, adotando uma proposta globalizante para sua cultura.

Assim, por mais que a mass media – cujo alcance já fora vislumbrado pelo setor de propaganda do nefasto III Reich – consiga impor seus valores, longe das câmeras, das telinhas, das parabólicas, um outro país vive e gera sua cultura, que, creio, resistirá sempre e sempre.

Quanto à possibilidade de acesso à cultura por parte das camadas populares, deve-se considerar que a questão é, na verdade, antes de acesso à educação e, este acesso, como já está sobejamente comprovado, só será possível pela mobilização dos próprios interessados, isto é, pela atuação dos párias da educação. A classe política, entronizada no poder, a elite dominante não têm qualquer interesse em cumprir os dispositivos constitucionais que assegurariam a educação àqueles que a ela fazem jus.

A globalização da cultura não implica obrigatoriamente uma norte-americanização da mesma. Mas, a imposição de um único valor, norte-americano ou não, em detrimento da diversidade, vai de encontro ao conceito de cultura, indissociável daquele de multiplicidade. Dentro desse aspecto, o que há de mais instigante na cultura brasileira hoje – e até mesmo na cultura universal –, aquilo que inaugura o futuro, são aquelas manifestações que vicejam completamente fora do âmbito da globalização, escondidas dos olhos míopes do Estado e, sobretudo, a salvo da ação devastadora das câmeras dos poderosos sistemas de televisão, sempre à busca do uno e não do vário, este, sim, identificado com o conceito de cultura.

Suetônio Soares Valença, historiador da MPB.

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