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O atual governo vem promovendo inegavelmente um retrocesso institucional e já existem elementos de sobra na conjuntura para reavivar temores de uma recidiva autoritária no país

Às vésperas da guerra entre o Brasil e o Paraguai, nas eliminatórias em curso para a Copa do Mundo de 2002, um cidadão foi preso em Foz do Iguaçu, sob a acusação de "comportamento inconveniente", simplesmente porque criticara os jogadores da seleção dirigida por Wanderlei Luxemburgo. Curiosamente, na mesma semana, pelas páginas do jornal Folha de S. Paulo, o veterano Tostão, hoje conceituado cronista esportivo, engrossava o coro ao afirmar que, à exceção do time de 1982, todas as demais equipes que representaram nosso país eram inferiores às dos adversários. Nenhuma surpresa, portanto, que a Jules Rimet tivesse trocado de mãos tantas vezes nos últimos tempos.

A derrota frente aos paraguaios, que quase derrubou o técnico, veio em socorro do infeliz torcedor, ameaçado até a véspera de ser condenado a prestar serviços à comunidade, como punição por suas idéias fora de lugar. Salvou-o o reconhecimento, a esta altura generalizado, de que, afinal, o escrete verde-amarelo, "a pátria em chuteiras", não é mais a melhor do mundo...

Isoladamente, afora este fato bizarro significar violação expressa a direito fundamental, no caso a liberdade de expressão de pensamento, não passaria de mais uma entre tantas arbitrariedades quotidianamente perpetradas ao longo do nosso território. Esta postura autoritária prolifera, numa espécie de rotina massacrante, incutida da cúpula à base da sociedade, mas cujo sentido cruel é o de reforçar a opressão sobre os de baixo.

Visto em perspectiva, o gesto atrabiliário da autoridade de plantão faz relembrar o clima de trinta anos atrás, quando o general-presidente Garrastazu Médici escalava a seleção canarinho e forçava o país a cantar em uníssono o "pra frente Brasil", convertendo a conquista do tricampeonato no México num feito do regime.

Aos dissidentes, encarados como inimigos e subversivos, a ditadura impunha as agruras do cárcere ou empurrava para o exílio, grosseiramente ofertado pelo slogan oficial do "ame-o ou deixe-o" – reeditado numa musiquinha recente, cujo compositor, pobre de estro, deve ter buscado inspiração em pronunciamentos altissonantes do atual presidente da República.

Os tempos, naturalmente, são outros. Há mais liberdade, as próximas eleições municipais auguram mudanças positivas de comando em cidades importantes e sinalizam uma reprovação ao governo central e a seus aliados. Em parte, porém, as limitações do poder local e a dispersão dos movimentos sociais ainda dificultam um confronto mais significativo com as políticas neoliberais em curso.

Infelizmente, contudo, o arraigado conservadorismo das classes dominantes nativas, com seu transformismo inesgotável fartamente cevado nestes cinco séculos de poder inconteste, é um obstáculo permanente à existência de uma democracia sem adjetivos no Brasil. Os vários pactos de poder celebrados ao longo de nossa história, as chamadas "transições pelo alto", a submissão das elites locais aos desígnios de diferentes impérios exteriores – tudo isso funciona para alijar a maioria do povo da participação e tomada de decisões sobre seu próprio destino.

Talvez por não se sentir partícipe e também por julgar de pouca valia o exercício da democracia apenas a cada quatro ou dois anos, parcela significativa da população, a julgar pelas pesquisas de opinião, mostra-se indiferente ao funcionamento do regime democrático. Levantamento realizado pelo jornal Folha de S. Paulo junto a 11.534 eleitores de todo o país indica que há um empate entre os que acham a democracia o melhor regime e aqueles para quem tanto faz (29%) ou até preferem a ditadura (18%).

Estes dados, de certo modo, reavivam os temores de uma recidiva autoritária no país. E não se trata de paranóia. Nem de sonhos com uma democracia perfeita. Até porque a última "democracia perfeita", a do México, mantida durante 71 anos à custa de um regime de partido único, autoritária e corrupta, ruiu nas últimas eleições com a derrota do candidato do Partido Revolucionário Institucional (PRI) para o empresário Vicente Fox.

Há elementos de sobra para comprovar. Antes desta sondagem, a mídia registrou uma alarmante investida contra a frágil democracia brasileira, que só fez confirmar o caráter autoritário do regime. Regime civil, mas de inclinação nitidamente autoritária.

Mesmo que se dê desconto ao recorde de medidas provisórias, por meio das quais o presidente da República açambarca poderes de legislar quase unipessoalmente, o atual governo promove um retrocesso institucional inegável. A prisão sem culpa de adversários do atual governo, como vem ocorrendo com militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); a censura política em televisões educativas; as restrições freqüentes à liberdade de ir e vir; a recauchutagem do serviço de espionagem federal; o upgrade na Lei de Segurança Nacional; a tentativa de colocar o Exército para cumprir o papel de polícia nas ruas evidenciam que a democracia corre riscos entre nós.

Esta avaliação funda-se numa circunstância que não é inédita: toda vez que crescem as lutas sociais ou que forças políticas do campo popular colocam em xeque interesses ou posições das elites, a tendência no Brasil é de criminalizar os movimentos de oposição e caminhar para o fechamento do regime. A matriz é quase sempre a mesma, mas as justificativas variam: ora é a necessidade de combater a corrupção e a subversão, de proteger o país contra o comunismo; ora é a necessidade de fazer o bolo crescer para depois distribuir; às vezes pode ser o atendimento ao clamor público contra a violência, hoje na ordem do dia.

Em entrevista de ampla repercussão, o professor Wanderley Guilherme dos Santos alertou que, no continente americano, diferentes regimes, à esquerda e à direita, a pretexto de combaterem a violência, acabam sucumbindo à tentação do autoritarismo. Nestes casos, confunde-se a necessária adoção de medidas de proteção da sociedade com a conveniente política de reforço da segurança do Estado. Daí as decorrências por demais conhecidas, entre elas o estado de sítio e a supressão das prerrogativas do Legislativo e do Judiciário.

E não se trata daqueles males que costumam vitimar exclusivamente os países do Terceiro Mundo. Em interessante paralelo, o companheiro Tarso Genro encontrou tempo em meio à campanha pela Prefeitura de Porto Alegre para identificar pontos de contato entre a estratégia da Terceira Via do chanceler alemão, Gerhard Schroeder, e o modelo submisso esboçado por FHC para reagir à crise.

"A resposta do governo de FHC é, de um lado, criar a ilusão de que se separa das políticas neoliberais adotando a Terceira Via – para fazer cena ‘progressista’ na arena mundial – e, de outro, retomar o autoritarismo interno por meio de uma nova política de segurança nacional", afirma Tarso.

Após denunciar a criminalização dos movimentos sociais pelo atual governo, Tarso localiza o ponto de articulação da conduta de FHC: "o espírito da nova ‘segurança nacional’ não é a simples existência de uma lei de defesa do Estado democrático, mas é a criação de uma cultura política de massas, pela qual uma grande parte da população acredite que as agitações e os conflitos existem porque indivíduos isolados – os novos ‘subversivos’ – os estão provocando."

Ele chama a atenção para a diversidade de situações da Alemanha e do Brasil, onde as classes trabalhadoras e os setores médios quase nada têm a ceder porque seus padrões de vida estão no limite da miséria, e conclui com uma advertência dramática: "A conseqüência é que a Terceira Via de FHC será aplicada, se a sociedade não resistir, não somente com a continuidade da redução dos mínimos direitos sociais já conquistados pela sociedade incluída, mas também com uma miséria ainda maior dos excluídos".

Além da propensão antidemocrática das elites, do histórico de ditaduras civis e militares, pesam contra a permanência de regimes democráticos no país a fraca tradição partidária, a desconfiança dos políticos (e da política) e a incapacidade das instituições de se amoldarem à participação popular. Haja vista, por exemplo, instrumentos como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular em matéria legislativa, consagrados na Constituição de 1988 e praticamente em desuso.

O desencanto da população face aos políticos, que o voto obrigatório cria a ilusão de minimizar, é acentuado e traduz não só a crise do sistema de representação, como dificulta a consolidação de mecanismos de participação direta e, no fundo, compromete os esforços pela redemocratização plena do país após o longo surto ditatorial iniciado em 1964.

Na verdade, há quem afirme, como o respeitado professor Milton Santos, que até hoje não ocorreu uma verdadeira democratização no Brasil e na América Latina. Segundo ele, existe entre nós apenas uma "democracia do Procon", porque a ampliação efetiva dos direitos não aconteceu e o processo eleitoral, sempre mantido, não passa de um processo de consumo como qualquer outro. Pessimista, ele afirma que não estamos nos redemocratizando, porque "a garantia de cidadania plena para todos se reduziu junto com os direitos sociais".

Com enfoque distinto, mas igualmente preocupado com a democracia rarefeita existente, o professor Luiz Werneck Viana, em estudo ainda pouco difundido, sustenta que a cisão entre a oposição republicana, capitaneada por Ulisses Guimarães, e a ação dos movimentos sociais, liderada pelos sindicalistas autênticos dos anos 80, Lula à frente, seria um dos fatores responsáveis pela instauração no país de uma democracia meia-boca após a derrota do regime militar. De lá para cá, a eleição de Collor, a incapacidade funcional do regime para promover distribuição de renda e justiça social concorreram para que os valores estratégicos da democracia ficassem em segundo plano.

Durante anos, a esquerda brasileira empenhou-se para reconquistar a democracia perdida, ainda que para muitos ela tivesse apenas caráter formal, vinculado a interesses de classe e desprovida de valor real. Mas, com o fim dos regimes militares, difundiu-se a expectativa de que a profunda crise econômica que apressou a derrocada do autoritarismo pudesse ser debelada pelos governos nascidos das urnas.

"Preso à necessidade de manter a estabilidade monetária e a compromissos internacionais em torno do equilíbrio fiscal, da privatização e da política de abertura comercial, o governo se vê limitado na liberdade de ação e reduz as medidas sociais a pouco mais do que retórica", argumenta José Murilo de Carvalho, professor titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Desafortunadamente, as políticas de cunho liberal, que promoveram maior internacionalização, privatização e abertura da economia brasileira, ampliaram o fosso entre os que auferem os benefícios da democracia e os que permanecem à margem da cidadania, despossuídos e excluídos. Para estes, os sem-nada, pouco importa o direito de voto.

Reina a impressão de que existem dois tipos de leis, duas formas de prestar justiça – para os ricos e para os pobres – dois modelos de sociedade, em que alguns têm direito a tudo e outros, sequer ao básico da existência. Assim, as garantias fundamentais postas no papel para eternizar-se no quotidiano da vida social permanecem letra morta porque faltam, de um lado, governos capazes de honrar os compromissos de campanha, e, de outro, pressões populares organizadas, na intensidade e tempo exigidos para forjarem direitos reais.

É vital, portanto, desfazer no povo a impressão de que todos os políticos são iguais. De que os partidos se equivalem, de que todos, uma vez no governo, usam o poder para entesourar, ajeitar a vida e impedir, afinal, que a democracia seja de fato o regime das maiorias sociais.

Por isso, na campanha eleitoral em curso, a tática dos partidos de esquerda, o PT com maior responsabilidade pela liderança que detém, terá de privilegiar não apenas o combate à corrupção, mas igualmente seus projetos de radicalização da democracia, presentes em sua tradição, nos governos que dirige e nos programas das candidaturas às prefeituras e câmaras municipais.

Ao fazer o confronto de projetos, entretanto, não se pode perder de vista, na crítica ao modelo econômico, na denúncia das políticas neoliberais, que as pessoas vivem no município. É nas cidades que se materializam as dificuldades, os problemas, e é lá que se esperam as soluções. Uma campanha eleitoral politizada, orientada pela vontade da transformação social, terá se saber articular a dimensão nacional da luta pela democracia com a participação popular movida pelo interesse local e regional.

Sem isso, será só uma eleição a mais.

Rui Falcão é jornalista e advogado, coordenador geral da campanha de Marta Suplicy e Hélio Bicudo à Prefeitura de São Paulo.