Sociedade

Procurando caminhos alternativos, alguns historiadores começam a insistir na necessidade de incluir a experiência escrava na história da escravidão no Brasil. Toda uma nova safra de estudos mostra o quanto este redirecionamento tem permitido avançar no resgate de aspectos mais próximos da experiência histórica de homens de carne e osso.

Se aceitarmos (apenas por um momento!) a idéia de que o Brasil fez 500 anos, não podemos deixar de pensar que durante mais de 75% de "existência" da Nação foi o braço escravo que produziu e movimentou riquezas, trabalhando para senhores e proprietários coloniais e metropolitanos, nacionais e estrangeiros. Sem qualquer dúvida, se há alguma característica de "longa duração" na história do Brasil, trata-se da escravidão. Ela foi o instrumento de destruição física de milhões de homens e mulheres que já habitavam estas terras antes da chegada dos europeus e de outros tantos trazidos à força da África para viverem aqui como escravos. Além disso, de todo o continente americano, o Brasil foi a região que mais importou escravos africanos, durante os mais de trezentos anos de vigência do tráfico atlântico.

Não por acaso, portanto, a escravidão constitui um tema central nos estudos históricos no Brasil. Ela esteve no centro dos mais importantes debates que envolveram as ciências humanas neste século, nos quais questões morais, éticas, políticas e ideológicas estiveram freqüentemente associadas. Ao longo dos anos 60 e 70, privilegiando uma perspectiva macroestrutural, os estudiosos se perguntaram se o processo colonizador português teria instalado aqui um modo de produção historicamente novo, ou não. Entre os elementos fundamentais capazes de caracterizar a sociedade brasileira, a escravidão teve sempre um papel de destaque: ela teria sido a responsável pela permanência de elementos "coloniais" e "arcaicos" na sociedade brasileira, dificultando a passagem para um sistema verdadeiramente "capitalista" e "moderno". Tais identidades, historicamente construídas, tornaram-se praticamente parte do senso comum e constituem um paradigma interpretativo que somente há pouco menos de duas décadas vem sendo questionado.

Desde meados dos anos 80, diversos historiadores observaram que tais oposições estavam associadas a uma análise que privilegiava um enfoque estritamente econômico da história e enfatizava o caráter violento e inexorável da escravidão, resultando numa história que, mesmo sem o desejar, apoiava-se numa ótica senhorial e era, inevitavelmente, excludente. Nela o escravo não passava de um "figurante mudo" e "incapaz de qualquer ação autonômica", como afirmou o então jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Destruído pela violência da escravidão e marcado pelo racismo, ele teria se tornado incapaz de integrar o mercado de trabalho capitalista, vegetando na marginalidade. A experiência dos escravos ficava então excluída da história dos trabalhadores no Brasil: entre o mundo da escravidão (aquele no qual o trabalho teria sido realizado por seres coisificados, destituídos de tradições pelo mecanismo do tráfico, aniquilados pela compulsão violenta da escravidão, para os quais só restava a fuga ou a morte) e o universo do trabalho livre, assalariado (no qual, finalmente, poderíamos encontrar sujeitos históricos), havia um abismo intransponível, com o negro escravo desaparecendo da história, sendo "substituído" pelo imigrante europeu.

Procurando caminhos alternativos, alguns historiadores começaram a insistir na necessidade de incluir a experiência escrava na história da escravidão no Brasil. Não se tratava apenas e simplesmente de passar a estudar o modo de vida destes trabalhadores ou a sua visão da escravidão. A "inclusão dos excluídos" vinha acompanhada pela busca de novas fontes e de uma nova concepção na abordagem da análise da relação senhor-escravo: mais que um "sistema" ou um abstrato "modo de produção", isso que, no final das contas, chamamos de "escravidão", de "escravismo", passou a ser entendido como um conjunto de relações de dominação e exploração que, de modo contraditório, por meio de suas práticas cotidianas, costumes, lutas, resistências, acomodações e solidariedades, de seus modos de ver, viver, pensar e agir, unia horizontalmente e separava verticalmente homens e mulheres como senhores e escravos – o que significa dizer que a política de domínio senhorial operava, portanto, no interior de relações que não podem ser entendidas sem o conceito de luta de classes.

Seguindo por estas trilhas, os trabalhos mais recentes têm se debruçado sobre temas específicos, realizando pesquisas fundadas em forte documentação primária, e iluminando dimensões importantes do universo das relações escravistas. Toda uma nova safra de estudos sobre a escravidão mostra o quanto este redirecionamento das pesquisas históricas tem permitido avançar no resgate de aspectos mais próximos da experiência histórica de homens de carne e osso, propondo uma outra escala de interpretação, que permite capturar escolhas, não apenas determinações. Politizando a análise histórica, estes estudos fazem emergir do passado valores, estratégias e projetos que pretendiam outros futuros, outras possibilidades de vida. Não por acaso, vários livros que têm sido publicados sobre o tema tratam também, e necessariamente, da liberdade. Não da liberdade tal como a concebemos hoje em dia, mas de noções de liberdade diversas que se digladiaram intensamente ao longo do tempo.

Examino aqui seis trabalhos publicados nos últimos dois anos, que permitem mapear com clareza a dinâmica deste movimento historiográfico e seus desdobramentos políticos. Quatro deles foram escritos inicialmente como teses acadêmicas no final dos anos 80 e na segunda metade dos anos 90; outros dois constituem trabalhos de pesquisadores já graduados há bastante tempo e foram pensados como livros desde o início. Todos tratam de aspectos específicos da experiência escrava no Brasil durante o século XIX, recortando temas ou questões de modos diversos mas convergentes em seus pressupostos e objetivos.

Investigando a experiência escrava na Curitiba da segunda metade do século XIX, por meio de diversas pequenas situações de conflito e luta social entre senhores e escravos, Eduardo Spiller Pena desvenda o jogo sutil de enfrentamentos e negociações entre visões de mundo radicalmente opostas. Nestes embates, medindo possibilidades e escolhendo oportunidades, ressaltando antagonismos ou se adequando a imposições senhoriais, os cativos usavam de toda a astúcia para fazer valer seus objetivos e projetos individuais. Lutavam de muitas maneiras: nas relações cotidianas com seus senhores, apelando para os tribunais e manipulando brechas legais, armando alianças com terceiros, aproveitando momentos em que o poder senhorial ficava mais permeável, como nas ocasiões em que eram negociados ou estavam entre os bens em processo de inventário. Percorrendo caminhos semelhantes na São Paulo do mesmo período, Maria Cristina Wiessenbach recupera a vida cotidiana de escravos e libertos entre 1850 e 1880, analisando crimes, situações de trabalho, arranjos de sobrevivência, modos de morar, casar e cultuar santos e ancestrais. Aqui, para além do enfrentamento das vontades senhoriais, podemos flagrar a formação de uma comunidade negra, com suas hierarquias internas, laços de solidariedade e modos de vida que caracterizaram espaços (sociais e territoriais) importantes da cidade: um mundo em construção, fundado na experiência vivida sob o domínio dos senhores, mas que o ultrapassa e o supera em muitas dimensões.

Da leitura destes dois livros saímos com a certeza de que os senhores, por exemplo, até poderiam considerar os escravos como "coisas", seres destituídos de vontade própria, incapazes de atitudes políticas, que deveriam comportar-se como uma extensão da vontade senhorial, concebida como absoluta e universal. Eram homens e mulheres comprados para serem dominados e expropriados pelos senhores; como escravos, no entanto, impunham limites à vontade senhorial, possuíam projetos e idéias próprios, pelos quais lutavam e conquistavam pequenas e grandes vitórias. Os senhores, evidentemente, não reconheciam estas conquistas; para eles tratavam-se de concessões, generosas e paternais concessões. Os escravos, no entanto, traduziam o paternalismo numa doutrina diferente da imaginada pelos senhores e as "concessões" senhoriais transformavam-se em conquistas – a serem arduamente defendidas e que, muitas vezes, passavam a ser costumes, "tradições", quase "direitos".

Conflitantes também eram os significados da escravidão e da liberdade, vividos de modos diversos por senhores, escravos e libertos. Ao recuperar o ponto de vista dos dominados, incorporando-o na análise, podemos perceber como havia, ao mesmo tempo, enormes diferenças entre ser livre ou cativo e muitas proximidades entre as duas condições. Mais que dois universos antagônicos e sucessivos, escravidão e liberdade definiam-se mutuamente ao longo do período escravista, num movimento constante entre desiguais e diferentes.

Mergulhando num desses acalorados embates entre escravidão e liberdade, Joseli Mendonça examina os debates parlamentares e as contendas judiciais que envolveram a elaboração e a aplicação da lei que aprendemos chamar "dos sexagenários". Invertendo a corrente que considera esta e outras medidas legais como parte do processo gradual e seguro a caminho da emancipação, a análise investiga o conflituoso processo de fabricação da lei e sua relação com os conflitos entre senhores, escravos e libertos, mostrando como os debates do parlamento mantinham um estreito diálogo com o que se passava nos tribunais, e como as questões legais também estavam em jogo nas ruas e fazendas de Campinas, região escolhida pela autora para a investigação empírica. Diferentes noções de liberdade, do que era justo ou legítimo, misturavam-se a cálculos políticos e econômicos que tentavam avaliar o quanto o processo abolicionista inaugurado em 1871 iria se prolongar ou poderia ser controlado. Diante da contestação escrava e abolicionista, os senhores tentavam lidar da maneira que podiam para preservar uma autoridade cada vez mais enfraquecida. Assim, inverte-se a interpretação histórica até agora geralmente aceita e a história deixa de ser lida apenas num sentido único para integrar situações em que relampejam perigos e incertezas.

Na mesma direção trabalha Marcus Carvalho, investigando o cotidiano dos escravos no Recife da primeira metade do século XIX. Ao mesmo tempo em que procura examinar as rotinas de sobrevivência dos cativos e suas lutas cotidianas em busca de uma ampliação dos espaços econômicos e sociais sob a escravidão, fugindo, trabalhando como forro, comprando a liberdade ou impondo sua venda por meio de inúmeras estratégias, este livro traz uma importante contribuição no sentido de desvendar o quanto a escravidão e a movimentação escrava em Pernambuco esteve associada à política provincial e aos movimentos rebeldes que agitaram a província durante todo o período. Num contexto em que havia um contingente significativo de pessoas "livres" que trabalhavam ao lado dos escravos e davam apoio político aos proprietários em troca de um pedaço de chão para suas hortas ou pasto para uns poucos animais, nem sempre havia interesse em empatar dinheiro comprando escravos. Este "cálculo", entretanto, não era apenas econômico: a continuidade e a repressão ao tráfico atlântico e interno foram objeto de disputas entre conservadores e liberais e parte importante de vários outros conflitos entre as elites locais. Estava ligado também a outras práticas políticas, que visavam o controle cada vez maior sobre a população escrava e liberta que se concentrava na cidade do Recife. Tentava lidar com a agitação dos negros e "pardos", que aproveitava as crises políticas de 1817, 1821-22, 1824, 1831, 1832-35, 1848, e toda uma rede de quilombos cercava o Recife ao longo das estradas que ligavam a cidade à Zona da Mata.

De modos diversos e referidos a conjunturas históricas específicas, estes dois livros trazem novas dimensões para os estudos da escravidão, associando o tema à história política e institucional, fazendo com que elas sejam revitalizadas pela presença das reivindicações populares. Assim, ao mesmo tempo em que somos levados a ver com outro olhos as quarteladas e insurreições provinciais do período regencial, ganhamos a possibilidade de aprender como escravos, libertos e livres pobres se juntaram para impor algumas regras, diferentes daquelas desejadas pelos senhores, ajudando a moldar o conflituoso processo de extinção da escravidão no Nordeste brasileiro. Somos levados a olhar de outro modo o funcionamento da justiça e a relação entre o Judiciário e o Legislativo, descobrindo ali canais pelos quais os despossuídos conseguiram fazer valer algumas de suas vontades e projetos sociais.

Este é também o cenário no qual se desenvolve uma outra história, centrada agora numa trajetória individual, de um personagem singular e extraordinário. Trata-se de Luiz Gama, que aparece no livro de Elciene Azevedo como protagonista de uma experiência partilhada por muitos outros homens que viveram num mundo marcado por relações de dependência e fortes hierarquias e conseguiram preservar a liberdade conquistada. Diferentemente da maioria dos libertos, entretanto, este homem participou do mundo dos brancos, publicou livros, editou jornais, atuou nos tribunais e participou ativamente da vida partidária de meados do século XIX. Escapando aos apelos do mito e à força da legenda, o livro recupera o sentido profundamente histórico de uma experiência individual. E novamente estamos diante de outras dimensões da análise e interpretação do passado – possíveis quando se incorpora a elas a perspectiva dos escravos.

Deixei por último o trabalho que me parece mais instigante e que, talvez por ter sido publicado depois de todos os outros, encarna o que há de melhor nesta reviravolta historiográfica. Estudando um tema aparentemente banal – o da família escrava – o livro de Robert Slenes faz emergir todas as nuances políticas das lutas cotidianas entre escravos e senhores. Indo além da simples constatação da existência de laços e experiências familiares nas senzalas do sudeste escravista de meados dos oitocentos, o livro mostra como a família cativa conseguiu sobreviver aos limites impostos pela escravidão (que permitia a venda separada de pais e filhos, por exemplo) e contribuiu decisivamente para a criação de uma comunidade escrava. Foi, muitas vezes, um instrumento na mão dos senhores para prender os cativos às fazendas, pacificar rebeldes ou dar estabilidade ao contingente de cativos que possuíam. Mas foi também meio de obter e preservar um espaço físico diferenciado – do cubículo na senzala a uma casa separada dela – em que os parentes podiam construir uma vida doméstica (com uma roça, costumes alimentares, rituais específicos) longe do domínio senhorial. Mais que isso: através da história das famílias escravas podemos reencontrar memórias e características centro-africanas que inspiravam e orientavam as ações e as lutas no novo mundo. Num mundo em que cerca de 80% dos escravos acima de 15 anos provinha da região Congo-Angola, não há como desconsiderar o peso das heranças culturais que os desterrados da África traziam consigo. Assim, do modo de construir as casas à mania de manter um foguinho aceso dentro delas, podemos reencontrar um universo até agora praticamente desconhecido pelos historiadores, mas que iluminava constantemente as ações daqueles homens e mulheres.

Ultrapassando os limites ideológicos das fontes produzidas por observadores brancos do século XIX, ou pelas ações repressivas da polícia e da justiça, estes historiadores buscam ir além da perspectiva que enfatiza o esforço dos fazendeiros de solapar "todas as formas de união ou de solidariedade dos escravos". Sem descartar os ganhos trazidos por estas análises, mas apontando os traços conservadores que as marcavam, procuram incorporar uma visão diametralmente antagônica, resgatando os esforços dos cativos para superar os grilhões e as agruras a que estavam submetidos. Trabalhando sobre questões aparentemente "miúdas", estes livros nos mostram que as escolhas individuais são históricas, e que podemos aprender muito com estas lutas que fizeram parte do cotidiano de cativos e libertos de pouco mais de cem anos atrás. Longe de seres totalmente submetidos e triturados pelo cativeiro, possuíam heranças culturais próprias e criaram instituições e mecanismos defensivos que orientavam suas lutas e esforços durante dias e noites de cativeiro e de conquista da liberdade. Podemos aprender, principalmente, que a história é um processo indefinido, com desfechos imprevistos: a cada momento, para além dos sistemas e suas determinações, somos nós, homens e mulheres que a fazemos, a cada passo, a cada escolha. Uma lição cada vez mais presente também nos livros de história produzidos nas universidades brasileiras – já não era sem tempo!

Silvia Hunold Lara é professora do Departamento de História da Unicamp, autora de Campos da violência (Paz e Terra, 1988)