Cultura

A ação do governo FHC em relação ao cinema configura um projeto que se amolda, comercial e ideologicamente, às necessidades, aos preconceitos, às vontades do mercado, gerando uma produção culturalmente amorfa e, sobretudo, que não ameaça a hegemonia do cinema americano

O governo FHC tem uma política para o cinema?

Desde seu primeiro mandato, por intermédio do Ministério da Cultura, conduzido pelo ministro Francisco Weffort, o governo Fernando Henrique tem desenvolvido uma série de ações em relação ao cinema. A grande maioria delas está relacionada ao fomento e financiamento da produção cinematográfica, por meio das chamadas leis de incentivo – Lei Rouanet e Lei do Audiovisual. É interessante destacar que estas leis já existiam quando da posse de FHC, tendo sido criadas por governos anteriores, conforme explica o ministro Francisco Weffort, em um texto chamado "Cultura e democracia", originalmente capítulo de um livro preparado pelo Ministério da Cultura:

"As melhores iniciativas das gestões anteriores – por exemplo a estrutura administrativa criada por Celso Furtado, a lei federal de incentivo, iniciada por Sérgio Paulo Rouanet, em 1991, e a Lei do Audiovisual, iniciada por Antônio Houaiss, em 1992 – continuam conosco, úteis e produtivas. Mas só passaram a funcionar amplamente a partir de 1995".

O mecanismo básico gerado por estas leis é o do incentivo fiscal: as empresas que resolvem investir na produção cinematográfica deixam de recolher uma parcela de seus impostos devidos. Dessa forma, o dinheiro que efetivamente vai para a produção é produto de uma renúncia fiscal do Estado. É, portanto, dinheiro do Estado. No entanto, o mecanismo criado pelas referidas leis transfere o poder de decisão sobre o investimento do Estado para a iniciativa privada. O Estado indica, por meio dos mecanismos específicos de cada lei, que projetos podem ser objeto dos incentivos e até quanto cada um deles pode arrecadar. Mas quem decide em que projeto, e quanto investir é a empresa privada, é o mercado. Como, geralmente, essas decisões estão ligadas à imagem da empresa investidora, quem acaba tendo o poder final de decisão sobre o investimento são os executivos encarregados de gerenciar tal imagem. Como tem sido dito no meio cinematográfico, o governo passou o poder de decisão sobre os investimentos na produção para os gerentes de marketing das empresas privadas.

O efeito imediato desse mecanismo é evidente. O mercado, a empresa privada e seus gerentes vão investir, em primeiro lugar, nos filmes que têm potencial para dar lucro. Isto é, nos filmes comerciais, que contem com atores conhecidos da televisão e histórias facilmente digeríveis pelo grande público. Em segundo lugar, como é óbvio, vão investir em filmes que não os incomodem ideologicamente.

Durante todo esse período, o Ministério da Cultura tem tomado algumas tímidas iniciativas para financiar filmes com outros mecanismos. Realizaram-se concursos para produção de documentários, para filmes de baixo orçamento, para finalização de projetos quase prontos, com verbas originadas diretamente do orçamento do Ministério, transferindo o fórum de decisão sobre os projetos para comissões de profissionais ligados à área. Essas iniciativas, no entanto, são mínimas em relação ao conjunto da produção e não alteram seu perfil.

A ação do governo

A ação do governo FHC em relação ao cinema, brevemente indicada anteriormente, configura, portanto, um projeto que se amolda, comercial e ideologicamente, às necessidades, aos preconceitos, às vontades do mercado, gerando uma produção culturalmente amorfa e, sobretudo, que não ameaça a hegemonia do cinema americano. É claro que, em relação a este último aspecto, tem papel fundamental a manutenção da distribuição e da exibição no território das feras, sem nenhuma proteção.

Vejamos, então, que efeito a ação do governo FHC teve sobre a qualidade dos filmes produzidos no país. Embora a produção dos anos 90 tenha – no período chamado de "retomada" do cinema brasileiro – impulsionado a realização de alguns bons filmes, a maior parte da produção permaneceu sem uma linha temática ou formal dominante, sem dar origem a um conjunto coerente de obras, capaz de gerar a massa crítica necessária para um salto de qualidade. Embora tenha chegado por três vezes à ante-sala do Oscar, o impacto cultural do cinema brasileiro dos anos 90 não chegou aos pés daquele dos anos 60 – ou até mesmo de momentos anteriores, como o da Vera Cruz e do cinema dos anos 50.

Além disso, o próprio cerne da ação cultural do governo, a captação de recursos no mercado por meio da renúncia fiscal, vem se enfraquecendo ano a ano. O que chegou a ser significativo no período 96/97, gerando então a produção de mais de sessenta filmes, diminuiu consideravelmente na virada da década, até causar significativa preocupação no próprio Ministério da Cultura.

Sem atacar de frente o problema da distribuição e da exibição, trabalhando apenas como um impulsionador da captação de recursos no mercado privado, o governo FHC, na verdade, não chega a ter uma política cultural definida para o cinema.

No entanto, como sabemos, a ausência de política também é uma política. Quando o Estado abdica do poder de decisão sobre projetos e o delega ao mercado, quando o papel de definir quais filmes serão feitos passa ao largo dos profissionais da área e é entregue aos gerentes de marketing das grandes empresas, quando se desliga claramente a produção cinematográfica de qualquer projeto nacional e se permite que ela dependa da iniciativa privada, há uma política sendo praticada. Talvez o que tenhamos nesse caso é, quem sabe, uma política que não ousa dizer seu nome... O que combina muito bem com todo o universo neoliberal do governo FHC.

O discurso oficial

Vamos tentar entender melhor: há um discurso subjacente a todas essas iniciativas. No texto "Cultura e Democracia", o ministro Weffort escreve: "O Brasil busca na valorização da nossa diversidade cultural as múltiplas imagens da nossa identidade como povo e como Nação. (...) A ampliação dos meios de difusão cultural, que deverá valer-se cada vez mais dos meios de comunicação de massa, como rádio e TV, cumpre uma função democrática essencial.

A valorização da nossa diversidade cultural diz respeito tanto ao reconhecimento das faces da nossa identidade quanto à crítica cultural das nossas desigualdades sociais e regionais. Temos uma cultura generosamente diversa e abrangente, contrastando com uma estrutura social muitas vezes desigual e excludente. Nestas circunstâncias, a capacidade de nossa cultura de incluir a todos, qualquer que seja sua origem, região ou condição social, é um trunfo decisivo do processo de consolidação, entre nós, de uma cidadania democrática".

Portanto, o ministro Weffort entende a cultura, sobretudo a que se expressa pelos meios audiovisuais – inclusive o cinema –, como o veículo para a promoção da cidadania e da democracia. A questão é: que cidadania, que democracia?

Em outro documento divulgado pelo Ministério da Cultura, "Mecenato privado e democratização da cultura", o atual secretário para o Desenvolvimento do Audiovisual, José Álvaro Moisés, pergunta: "quem financia as artes: o Estado ou o mercado?" E ele mesmo responde: "A solução adotada pelo Ministério da Cultura (...) visou o problema de fundo (...) a necessidade de criar-se um Sistema de Financiamento da Cultura no país. (...) Para implementar suas propostas, o Ministério da Cultura enfrentou as mentalidades aferradas ao passado e (...) estimulou a formação de uma visão empresarial moderna, segundo a qual as vantagens dos incentivos fiscais para a cultura devem associar-se tanto ao marketing cultural como a um claro compromisso das empresas com sua comunidade.

Essa escolha traduziu-se na política de parceria entre Estado, produtores culturais e empresas privadas, com o objetivo de fortalecer os mecanismos de financiamento a fundo perdido – como o Fundo Nacional de Cultura – e, ao mesmo tempo, iniciar a substituição do exclusivo mecenato do Estado no apoio às artes, à literatura e ao patrimônio cultural pelo mecenato privado".

Há um entendimento da produção cultural como elemento importante, senão fundamental, para o reconhecimento da identidade nacional, para a promoção da democracia e da cidadania. Mas, em seguida, ao se fazer a escolha do mecenato privado como um dos instrumentos principais, talvez o principal instrumento, de financiamento dessa produção cultural, encaminha-se a construção de determinada identidade nacional, de um certo tipo de democracia, de uma visão particular de cidadania. Aquela que tem como elemento fundamental o mercado, como base a iniciativa privada – vale dizer, a propriedade privada dos meios de produção – e como proposta de cidadania a integração no mundo globalizado. De um golpe se decreta arcaica a visão de identidade nacional que se vinha gestando no país desde os anos 20, que ganhara força na década de 60 buscando retratar a face da nação e de seu povo.

A "diversidade" no cinema brasileiro

O enfraquecimento da visão de um projeto nacional na produção artística, já em curso nos anos 80, mas transformada em política oficial no governo FHC, tem como resultado a fragmentação e o isolamento. Curiosamente apresentada como qualidade (e como tal internalizada por muitos cineastas e produtores culturais), essa "diversidade" na produção cultural tem conseguido impedir o ressurgimento de um cinema brasileiro forte e criativo. É evidente que, em um projeto democrático, toda diversidade é bem-vinda. No entanto, sobretudo no território da cultura, para que algo de significativo ocorra, é necessário que exista um traço hegemônico em meio à diversidade, aquele que dá a feição do referido projeto cultural.

Em todos os momentos em que o cinema brasileiro cresceu junto à critica e ao público, havia uma tendência, um movimento hegemônico que caracterizava o momento da produção. Assim foi, por exemplo, na época do Cinema Novo. O movimento assim denominado era hegemônico, mas convivia com outras tendências e produções isoladas. Só como referência, é possível citar o cinema que se fazia em São Paulo: Roberto Santos e Luís Sérgio Person nunca foram cinema-novistas, mas seus importantíssimos filmes conviveram com aquele movimento. Mantinha-se, pois, a diversidade; mas a tendência hegemônica caracterizava o cinema brasileiro do período, atraindo os olhares do público nacional e internacional, criando um forte pólo de interlocução com a sociedade e com as instituições responsáveis pelo fomento da produção.

Depois da devastação cultural realizada pela ditadura, tanto pela censura direta quanto pela castração ideológica da produção, o cinema brasileiro não mais encontrou um norte. Pode-se argumentar que o mesmo aconteceu com as outras artes e, por que não, com a sociedade como um todo: a falta de um projeto nacional corroendo as tentativas de construção de uma democracia efetiva, entregando o país às forças globalizadoras do neoliberalismo. A crise de criação e a falta de um projeto hegemônico já caracterizam os últimos anos da década de 80: já se falava, naquele momento, da "diversidade", como se isso fosse bom. Paralelamente, a falência do modelo de produção baseado na Embrafilme/Concine já permitia os primeiros passos do desmonte que iria, em seguida, ser realizado pelo governo Collor. A total destruição dos mecanismos de produção baseados no Estado levou à paralisação da produção por alguns anos. Quando o governo Fernando Henrique começa a articular suas propostas, dispõe de total liberdade de ação, porque o que encontra é terra arrasada. Não há produção, os cineastas estão dispersos e fragilizados, as propostas são poucas e débeis. É nesse quadro que se torna possível a construção de um modelo no qual o Estado se exime tanto de discutir os rumos da produção, quanto de participar diretamente dela, enquanto financiador.

A Lei Rouanet instaura a versão moderna e neoliberal do mecenato: as empresas privadas podem deixar de pagar uma parte de seus impostos se os investirem, a fundo perdido, na produção cultural. A Lei do Audiovisual vai mais longe: além de deixar de pagar impostos, as empresas podem comprar, no mercado de ações, cotas dos filmes e se tornarem co-proprietárias deles. Está, assim, aberta a possibilidade de seleção e interferência por parte do mercado na definição dos rumos do cinema nacional. Resultados houve: no período 1995-1999 foram produzidos, no Brasil, 114 filmes. Não é um número espetacular, mas não deixa de ser significativo. Vários desses filmes tiveram boa acolhida de público, alguns foram bem recebidos pela crítica, uns tantos ganharam prêmios internacionais importantes, três chegaram a ser indicados para o Oscar de melhor filme estrangeiro nos EUA. Mas não houve consolidação da produção, não se estruturou nenhuma base industrial para o nosso cinema e nem se definiu qualquer corrente, temática ou formal, significativa. O resultado da ação do Estado em relação ao cinema permaneceu pontual, sem indicação de resultados a longo prazo.

O 3º Congresso
No primeiro fim de semana de julho de 2000, os cineastas brasileiros se reuniram em seu terceiro congresso. Os dois primeiros haviam sido realizados na já distante década de 50. As preocupações, os problemas identificados, as reivindicações não mudaram muito. Depois da explosão do Cinema Novo, da longa e mal compreendida experiência da Embrafilme, das novas leis de incentivo e sua "retomada" do cinema brasileiro, os cineastas ainda se vêem às voltas com as velhas questões de soberania do nosso cinema dentro de seu próprio território, da falta de mecanismos reguladores, da falta de uma política governamental digna de seu nome para o cinema. O relatório final do 3º Congresso do Cinema Brasileiro demonstra a insatisfação dos cineastas com a política do governo FHC para o cinema:

"O momento se caracteriza pela paralisação da produção, pelo descontrole dos mecanismos de mercado, pela falta de informações a respeito da própria realidade do mercado cinematográfico, pela ausência sistemática do cinema brasileiro nas telas da TV e pelo esgotamento dos mecanismos atuais das leis de incentivo. Todos esses problemas se devem, em grande parte, à deficiente forma de relacionamento do setor cinematográfico com o governo e também à fragilidade do atual órgão governamental responsável pela política do cinema no Brasil, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura".

Mais adiante, o documento afirma: "O próprio crescimento do cinema brasileiro exigiria do governo uma ação continuada, sempre em consonância com o setor, ação que, na verdade, não se deu, transformando o lado positivo de nosso ‘renascimento’ em crise que agora nos ameaça".

Ficou claro, para todos os cineastas, que o governo FHC não desenvolveu uma política coerente para o cinema, mas apenas ações isoladas. E que a transferência da responsabilidade de decisão sobre o que se produziria para o mercado, não teve efeito duradouro. A partir do momento em que o mercado percebeu que não estava tendo a resposta esperada em termos de público e de retorno de imagem, se retraiu. É claro que tiveram alguma influência sobre essa retração os "escândalos" habilmente manipulados pela grande imprensa, envolvendo algumas produções isoladas (Chatô de Guilherme Fontes e O Guarani de Norma Bengell). Mas não tiveram peso decisivo: a empresa privada se retraiu porque num mercado dominado pelo cinema americano, o filme brasileiro não chega a ser um bom negócio. E aqui cabe repetir o óbvio: o governo FHC nada fez para garantir espaços para o filme brasileiro dentro de seu próprio mercado, caindo na falácia, um tanto ridícula, de que o filme brasileiro precisa competir de igual para igual com o filme americano dentro de seu próprio mercado. Como se fosse possível competir em condições de igualdade num mercado ocupado.

Entre as 69 medidas propostas pelo 3º Congresso, destaca-se a que pede a criação de um órgão gestor da atividade cinematográfica no Brasil, com participação ativa do setor. Com tal reivindicação, os cineastas reconhecem que o governo não dispõe nem mesmo de uma estrutura adequada para gerir a atividade cinematográfica – quanto mais uma política para ela... Outras medidas pedem a criação de um fundo de fomento à produção, com recursos provenientes, entre outras fontes, da taxação sobre as receitas da TV aberta e das operadoras de TV por assinatura.

O que se está pedindo é a definição de uma política para o cinema. Vale a pena citar um trecho da abertura de um artigo, assinado por Manoel Rangel, publicado na revista de cinema Sinopse, ligada ao Cinusp, da Pró Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. Sintomaticamente, o artigo se denomina "O vôo cego da (falta de uma) política nacional de cinema": "Já está passando da hora de que alguém diga em alto e bom som o que muitos pensam, mas ninguém diz: é preciso recriar a Embrafilme. Pode não ser este o nome, certamente não será nos mesmos moldes da falecida, mas não é possível gerir a política de cinema do país sem a existência de um organismo forte e com autonomia para disputar espaço no mercado para o cinema brasileiro."

Então, voltando ao começo de nosso artigo: na verdade, o governo FHC não tem uma política para o cinema. Essa omissão permitiu uma ocupação muito mais completa de nosso mercado pelo filme americano, mantendo a distribuição e a exibição totalmente comprometida com aquela indústria estrangeira. E permitiu que nossa produção se mantivesse fragmentada, enfraquecida, sem maiores vôos criativos. Em última instância, domesticada, sem capacidade para incomodar a hegemonia do neoliberalismo.

Renato Tapajós é videomaker.