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Manoel Correia de Andrade é autor de um clássico dos estudos brasileiros, A terra e o homem no Nordeste, e é um profundo conhecedor da realidade nordestina

Autor de um clássico dos estudos brasileiros, A terra e o homem no Nordeste, o pernambucano Manuel Correia de Andrade é hoje diretor do centro de documentação da Fundação Joaquim Nabuco. Testemunha viva dos principais acontecimentos da história política de Pernambuco neste século, é profundo conhecedor da realidade nordestina

A sua obra é em grande medida voltada para a questão agrária. O senhor a considera o principal problema do Brasil?
Eu nasci num engenho de açúcar, em Jundiá, a mais de 100 quilômetros do Recife, numa família relativamente abastada e convivi com trabalhadores rurais, numa certa intimidade que há no campo. Eu ficava chocado porque aqueles meninos da minha idade não iriam ter oportunidade na vida. e eu, filho de um senhor de engenho, iria. Isso me causava um impacto muito grande. Por que uns tinham e outros não tinham direito? E entre aqueles meninos, uns eram ignorantes, mas havia alguns que tinham uma inteligência muito acima do normal.

Quando eu fui estudar no Recife, ao voltar de férias todo ano, ia notando que aquela camaradagem ia desaparecendo. Eu procurava explicação para isso. E isso contribuiu para que eu me preocupasse com o problema agrário. E depois cheguei à conclusão, por meio de leituras, que a questão agrária era o problema fundamental do Brasil. Isso determinou toda essa minha contribuição.

O senhor se formou em geografia e história e também em direito?
Eu queria me formar em ciências sociais, mas naquela época era muito difícil porque não havia esse curso em Pernambuco e eu teria de ir para São Paulo. Em 1940 terminei o ginásio, mas houve a queda do preço do açúcar e meu pai não pôde financiar minha ida para São Paulo. Meu pai era bacharel em direito e achei que estudando direito poderia fazer minha sociologia. Quando estava no terceiro ano criaram a Faculdade Particular de Geografia e História, dos Jesuítas. Fiz vestibular e entrei, cursando ao mesmo tempo geografia e história e direito. Formei-me nos dois em 1945. Advoguei durante um certo tempo. Procurei advogar para os sindicatos operários. E dei aulas no curso médio. Mas num certo momento achei que deveria optar. Aí me afastei da advocacia, embora continue membro da OAB até hoje. Dediquei-me à geografia e à história. Sempre indeciso entre uma e outra. Ainda hoje, eu examinava uma tese de doutorado em história e um dos autores disse que eu era um historiador que tinha percepção do espaço, e não um geógrafo.

Grande parte da sua vasta obra é antes de tudo como historiador do Nordeste. Dá a impressão que ela é muito marcada por essa articulação permanente entre história e geografia. Esses dois aspectos não estão nunca separados. O senhor pode falar um pouco sobre esse imbricamento?
Quando me formei, geografia e história eram o mesmo curso. Então, eu não sei se me consideraria geógrafo ou historiador. Também porque acho que a geografia, ao analisar o espaço, vê os marcos que existem naquele espaço. Mas esses marcos não foram feitos hoje, são o resultado de uma evolução histórica. Por isso é que eu me preocupo muito com a história. Continuando meus estudos, eu percebi que as relações de trabalho dominantes no Nordeste eram resultado de uma evolução histórica, e aí fui estudar a história. Daí eu ter feito um livro sobre o conselheiro João Alfredo, que fez a abolição da escravatura em 1888, e um livro sobre a Guerra dos Cabanos, que ocorreu em Pernambuco e Alagoas de 1831 a 36, e que foi uma revolta de escravos, índios e negros pobres contra o poder central. É por isso que a história e geografia se interpenetram nas minhas preocupações.

O senhor é marxista?
Eu tenho uma formação marxista e, como tal, não entendo uma separação rígida entre várias ciências sociais. Para mim, há uma ciência social que tem enfoques diferentes. Mas a ciência é a mesma. Eu estudei Marx desde os 18 anos de idade, despertado por um professor integralista, mas que dizia que a crítica feita por Marx à sociedade capitalista tinha validade. Para ele, as soluções que Marx apresentava é que não tinham. Depois, recebi uma influência muito grande de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior. De Gilberto Freyre na minha juventude, quando ele me indicou a leitura de um livro: A interpretação econômica da história, do historiador americano Seligmann, que fora seu professor na Universidade da Colúmbia.

O senhor foi aluno dele?
Não. Eu era seu companheiro na luta – que ele liderava – do movimento estudantil contra o Estado Novo. Depois, ele foi presidente da chamada Esquerda Democrática, que foi um bloco ligado à UDN, e que posteriormente deu origem ao Partido Socialista Brasileiro. E mais tarde recebi uma influência marcante de Caio Prado Júnior, com quem convivi muito, apesar de ele viver em São Paulo e eu em Recife. Foi ele quem me aconselhou a escrever A terra e o homem no Nordeste – que é o meu livro mais conhecido –, que ele publicou e prefaciou. E isso permitiu que eu entrasse no mercado editorial paulista. Porque se eu tivesse publicado o livro em Pernambuco, ninguém teria tomado conhecimento. Mas como foi publicado pela Brasiliense, que era uma editora de muito prestígio em 1963, com prefácio de Caio Prado Júnior... Aliás, eu escrevi o livro porque o Caio tinha um projeto de contratar cinco geógrafos, cada um para escrever sobre uma região. Então, me entregou o Nordeste. Não sei a quem ele entregou as outras.

Não devem ter saído...
Não saiu nenhum. O único que escreveu fui eu!

O senhor mencionou Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior. Há alguma outra influência marcante no seu pensamento?
Eu recebi uma influência muito forte do Nelson Werneck Sodré, embora tivesse uma certa divergência com ele, porque o acho muito mecanicista. Recebi uma influência muito grande de Josué de Castro e também de um professor francês, Pierre Monbeig, que foi meu diretor de estudos na Universidade de Paris.

E as influências mais afastadas?
Eu li muito Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, que faz uma excelente interpretação do Brasil. Sou muito influenciado pelas obras de Marx, Engels, Kautski, com A questão agrária, Rosa Luxemburgo, Trotski, Lenin. Na minha adolescência, tinha verdadeiro embevecimento com a obra de Trotski, que chegou às minhas mãos por intermédio de um parente meu, do Rio de Janeiro, que foi um famoso trotskista, o Mário Pedrosa.

O senhor é parente do Mário Pedrosa?!
A mãe do Mário é prima da minha avó, tanto que ele se chamava Mário Xavier de Andrade Pedrosa. Eu não fui militante trotskista, mas era um entusiasta porque Trotsky era um grande escritor. Li também muito o Elisée Reclus que era anarquista, inimigo de Marx, foi até expulso da II Internacional. Eu até preparei uma antologia dele que foi publicada pela editora Ática, naquela coleção que o Florestan Fernandes dirigiu, "Sociologia e Política".

O senhor foi influenciado pelo Florestan?
Fui amigo do Florestan Fernandes, mas não posso dizer que recebi influência dele porque ele já é da minha geração.

Mas havia diálogo?
Sim, tanto que organizei dois livros da coleção dele na Ática. Um, infelizmente não foi publicado, sobre Pierre Monbeig. Foi quando o Florestan se elegeu deputado e se afastou da Ática. Quando estive na França, além da influência do Monbeig, recebi também uma grande influência do François Perroux, tanto que tenho livros publicados com a tentativa de aplicação, no Brasil, da sua metodologia. Numa homenagem que recebi na universidade, ao fazerem meu panegírico, disseram que eu tinha uma mobilidade intelectual tal que fui divulgador no Brasil de Perroux e fui o autor de uma antologia de Reclus, figuras teoricamente bem distantes. Mas, acho que aprendi muita coisa também nos romances de José Lins do Rego, Jorge Amado, José Geraldo Vieira – que é um dos meus autores prediletos, embora hoje pouco falado –, Machado de Assis e outros mais. Da literatura francesa também.

A influência de autores pernambucanos foi muito marcante?
Pernambuco é um estado que tem uma tradição cultural muito forte. Aqui há autores marcantes, Orlando Valdeverde é uma figura impressionante, que tem um livro sobre Brasil, a terra e o homem; e um outro, O Porto do Recife, que é muito mais do que a análise do porto do Recife. Há também Vasconcelos Sobrinho, autor de livros de ecologia. Eu li muito autores pernambucanos como Amaro Quintas que deu uma contribuição formidável sobre a Revolução Praieira, Mário Lacerda de Melo, que tem livros muito bons sobre Pernambuco e a indústria açucareira, Gileno de Carli, muito direitista mas que tem informações abundantes; Gilberto Ozório de Andrade, da área da geografia física do Nordeste. Barbosa Lima Sobrinho, Sílvio Rabelo, Olívio Montenegro, Estêvão Pinto também tiveram muita influência.

Gilberto Freyre é considerado um pensador conservador, mas tem uma influência marcante, inclusive sobre a esquerda...
Gilberto Freyre foi muito dialético nas suas atitudes. Foi um homem que reagiu contra o modernismo, porque achava que devia se dar importância aos valores tradicionais. Mas, ao mesmo tempo, ele levantava a questão da poluição dos cursos dd’água pelas usinas de açúcar, o que contrariava tremendamente os usineiros. Ele chegou até a ser preso por causa dessas coisas e, a meu ver, em Casa grande e senzala seu pensamento se aproxima muito de Caio Prado Jr. no livro Evolução política do Brasil. No final da sua obra, quando defende o luso-tropicalismo, ele tinha uma posição conservadora. Mas sempre foi um homem que tolerou bem a crítica.

O senhor poderia falar da influência de Josué de Castro?
Josué de Castro era um médico que se tornou geógrafo. E deu uma contribuição muito grande à análise do problema da fome no Brasil. Ele se baseou numa divisão que Gilberto Freyre tinha feito, caracterizando a existência de uma região do Nordeste úmida e outra seca, e fez uma análise alimentar no úmido e no seco. Josué demonstrou que os problemas econômicos são mais importantes como causas da fome do que os problemas físicos. E que por isso no Nordeste úmido – que era mais rico –, a fome era epidêmica, e no Nordeste seco era endêmica.

Qual foi o impacto da obra de Josué de Castro no debate político da época?
Foi muito grande. Teve uma repercussão internacional enorme. Seus dois livros básicos são: Geografia da fome e Geopolítica da fome, nos quais ele procura transferir para a escala mundial o problema que ele analisou no Brasil.

Ele era ligado à esquerda?
Para um homem de esquerda, do PTB. Mas ligado a Getúlio. Josué foi deputado federal duas vezes, eleito por Pernambuco.

Ele chegou a participar do governo Arraes?
Não. Eles se davam bem, mas não tinham muita afinidade política.

Outra figura marcante quando a gente pensa a esquerda em Pernambuco é Francisco Julião...
Foi meu amigo muito próximo. Julião era uma espécie de revolucionário missionário. Ele era muito bíblico. E meio romântico. Então às vezes ele atuava com muito idealismo, mas não no momento oportuno. Não era um político, mas era uma figura extraordinária que teve um papel importantíssimo no Brasil inteiro. Armando Monteiro Filho, um empresário que é dono da Folha de Pernambuco, fez um artigo comparando Julião com Joaquim Nabuco. Eram aristocratas, vindos do engenho, e que dedicaram a vida às causas populares.

O senhor também sempre destacou muito o papel histórico das sucessivas revoltas populares, mobilizações, movimentos separatistas que marcaram a história de Pernambuco.
Eu tenho um livro sobre a Guerra dos Cabanos, em que estudo esse movimento de negros escravos e de brancos pobres de Pernambuco e Alagoas, que durou cinco anos e teve um impacto muito grande, chefiado por Vicente Ferreira de Paula. Escrevi um livro sobre a Setembrizada, uma revolta de populares no Recife. Escrevi artigos e prefácios sobre a Confederação do Equador, a Revolução de 1817 e tenho um livro sobre a Revolução de 30.

Há uma tradição de esquerda muito forte em Pernambuco, tão forte que até resistiu aos vinte anos de ditadura militar. A que o senhor atribui a força da esquerda aqui?
Pernambuco é um estado sempre rebelde. Ele fez a Revolta de 1710, após a independência de Olinda; fez a Revolução de 1817; fez a Revolução de 1824 e proclamou uma república, a Confederação do Equador. Teve uma atuação muito grande na Revolução Praieira. Há historiadores que acham que no Recife a Revolução de 30 foi uma revolução popular. Depois há a Revolução de 31, a de 35; a fortíssima campanha contra o Estado Novo, a eleição de Miguel Arraes como governador do estado.

Há em Pernambuco uma tradição de luta operária muito forte no período de 1915 a 1930, com os anarquistas, liderados por Joaquim Pimenta, que depois aderiu ao Estado Novo mas é uma figura interessante para ser estudada. E depois com o PC. Cristiano Cordeiro, um dos fundadores do PC, era daqui. Nessa luta toda, as oligarquias açucareira e algodoeira dominavam o estado, mas sempre surgiram dissidentes no seu interior. Gente com posições avançadas. Joaquim Nabuco foi um deles. João Alfredo, que era do Partido Conservador, durante o Império prendeu o bispo Dom Vital. Você já imaginou botar na cadeia um bispo? E aboliu a escravidão sem indenização. Nunes Machado, que era filho de um senhor de engenho, desembargador e deputado, se pôs à frente da Revolução Praieira, morrendo no dia 2 de fevereiro de 1849. Os únicos grandes líderes pernambucanos vindos de setores populares foram Frei Caneca e agora Lula. A maioria são dissidentes da classe dominante.

Vamos falar um pouco de sua atividade política. O senhor foi membro do PCB?
Eu fui do PCB por pouco tempo, na década de 40, quando ele entrou na legalidade. Eu era católico muito fervoroso até os 15, 16 anos. E deixei a Igreja quando um missionário me criticou porque eu lia Renan. Aí eu pensei: entre Renan e a Igreja, fico com Renan. E caminhei para a esquerda. Comecei a ler Lenin, Marx etc. Eu era estudante de direito e na faculdade tinha essas obras, que eram proibidas no Estado Novo. Entrei no PC e militei uns seis ou sete meses. Um dia, cheguei numa reunião da célula do PC com o livro de Trotsky, Minha vida, debaixo do braço. Foi um escândalo. Um líder comunista disse "você vai deixar esse livro aqui, você não pode carregá-lo." "Posso, eu comprei." "Você é trotskista?" "Não, nunca fui. Mas admiro Trotski, ele escreve muito bem." "Mas ele é inimigo da classe operária". Eu disse: "Você acha? Mas eu não sou operário! Eu sou da burguesia açucareira." Havia muita gente da burguesia que era do PC. Aí ele disse "então, você tem de escolher entre Trotski e o PC". Eu dei a mesma resposta que havia dado entre Renan e a Igreja. "Fico com Trotski." E fui embora. Eu era um rebelde! Mas nunca tomei uma posição anticomunista. Terminei na esquerda democrática, no Partido Socialista, onde eu podia pensar, dizer o que queria, escrever o que pensava. Participei da luta pela criação da Petrobrás, da luta contra o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos e de outras. Fiquei no PSB até quando o dissolveram, em 65, logo depois do golpe.

Nos anos 50, há um processo de efervescência popular que leva à criação das Ligas Camponesas e à eleição de Arraes...
Em 1945, derrubado Vargas, o PSD, que era o partido mais conservador, liderado por Agamenon Magalhães, assumiu o poder, e fez vários governadores. A esquerda era expressiva, mas não tinha forças para ganhar as eleições. Então, houve a aliança da esquerda com um grupo de usineiros da UDN, em 58, concretizada na chapa Cid Sampaio para governador e Pelópidas Silveira para vice. É interessante que, nessa eleição, o candidato do PSD era uma criatura excelente, o Jarbas Maranhão, que foi senador. Um homem aberto, liberal. O Cid ganhou a eleição e tratou de fazer um governo moderno, industrializante mas conservador. Modernizava, mas não mudava as estruturas. Na eleição seguinte ocorreu a vitória de Arraes. Inverteu-se a chapa, em vez de ser um candidato conservador para governador e um esquerdista para vice, foi o contrário. Arraes para governador e Paulo Guerra para vice. O governo de Arraes foi realmente um governo popular, destruído pelo golpe de 64.

O senhor participou do governo?
Eu fui diretor superintendente do Grupo Executivo da Produção de Alimentos. Foi um grupo criado pelo Arraes para ampliar a assistência creditícia e técnica aos pequenos produtores.

No período posterior ao golpe, o senhor se filiou a algum partido?
Fui do MDB. Eu tinha voltado da França e militei com Marcos Freire, que era o líder do MDB. E ainda estou filiado ao PMDB. Não cancelei a minha ficha, mas não tenho nenhum compromisso. Quando criaram o PSDB, me convidaram, alegando que era a regeneração, porque o PMDB tinha se desmoralizado. Eu disse: "o MDB se desmoralizou, concordo com vocês, mas o PSDB vai se desmoralizar. Então, para não sofrer nova decepção, fico no PMDB". Mas é uma filiação só formal porque eu não sigo orientação, tanto que apoiei Lula abertamente em todas as suas candidaturas a presidente.

Por que o senhor apoiou Lula?
Eu achei que Lula representava a possibilidade de transformação das estruturas brasileiras. Sem ter grandes ilusões, porque não sei se, assumindo o poder, a oligarquia o deixaria fazer as mudanças. Mas acho que é ocasião de alguém que vem da classe operária alcançar o poder. Não estou 100% de acordo com ele, mas em grande parte estou. É de quem mais me aproximo ideologicamente. Participei do Comitê Estadual Pró-Lula, na eleição; ajudei Tânia Bacelar e Osvaldo Lima Filho na organização do programa do governo no que toca ao Nordeste. Mas, a essa altura eu não sou mais um militante. Com 78 anos é muito difícil se manter uma militância. Além disso, o PT tinha – não sei se ainda tem – 17 tendências. O PT era muito forte na universidade. E as tendências brigavam entre si quase tanto quanto com os partidos tradicionais.

Pernambuco é um dos poucos estados onde uma tradição de esquerda se manteve no período de ditadura. Com a nova realidade partidária e a criação do PT, como o senhor vê a relação entre esta corrente muita encarnada pelo Arraes e o PT?
Não houve um atrito entre Arraes e o PT, mas o Arraes tinha um prestígio tão grande que as pessoas de esquerda não foram para o PT. Ficaram com Arraes. O espaço estava ocupado. Depois o PT cresceu. Agora, há deputados muito bons do PT. Eles brigam entre si mas são bons deputados, ativos no combate às coisas erradas. Eu tenho amigos que dizem "não voto em Lula. Mas para o Legislativo só voto no PT."

O senhor foi um dos responsáveis pela montagem do curso de pós-graduação em Recife.
Foi. Eu montei o curso de mestrado em Economia em 1970. E o dirigi até 75. E em 76 montei o curso de mestrado em Geografia, que dirigi até 79. E trabalhei também como professor no mestrado de Sociologia e no mestrado de Desenvolvimento Urbano

O senhor foi homenageado pelo MST. Como o senhor vê esse movimento?
Por ocasião dessa homenagem eu fui jantar com o João Pedro Stédile, acompanhado do Bernardo Mançano, professor da Unesp, do meu filho Joaquim Correia e do Jaime Amorim, coordenador do MST em Pernambuco. E num bate-papo muito amigável, eu disse que eles tinham de enfrentar dois problemas. Primeiro, se livrar um pouco da formação econômica, porque ela é muito útil, mas tem de deixar se influenciar pelo problema social. O segundo, é lembrar que não existe um Brasil, mas vários brasis. As aspirações dos sem-terra do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que são essencialmente pequenos proprietários, podem ser muito diferentes das aspirações dos trabalhadores rurais assalariados do Nordeste, ou dos extrativistas da Amazônia. E ele concordou.

Assim, a reforma agrária não pode ser uniforme em todo o país...
São necessárias muitas reformas agrárias. O Brasil se formou em função de ocupação estrangeira. E apesar do país ter independência política, a dependência do exterior continua se exercendo até hoje. Eram os portugueses, depois os ingleses, e após a Revolução de 30, os americanos. No momento há uma disputa de espaço no Brasil entre a União Européia e os Estados Unidos.

O Brasil deveria ter realizado uma série de reformas estruturais que já eram defendidas no século passado e que até hoje não foram concretizadas. A principal delas é a reforma agrária. Joaquim Nabuco, em 1884, defendeu a sua necessidade. Depois, o imperador, feita a abolição, ainda quando o gabinete era chefiado por João Alfredo, propôs que se estudasse a possibilidade de desapropriação de terras situadas às margens dos rios navegáveis e das estradas de ferro, para instalação de colonos. Com a República e o crescimento da população, se fez a marcha para o Oeste, ocupando a Amazônia. Mas se transferiu para a área as instituições fundiárias existentes no resto do país. Não houve mudança. Nos Estados Unidos, quando houve a expansão para o Oeste, foi feita uma real distribuição de terra. No Brasil nunca se fez isso, e é provável que uma das causas do desenvolvimento dos EUA tenha sido esta. Eles produziram cidadãos, e nós não.

Quais são os outros problemas centrais do país?
Um segundo problema é o da centralização político-administrativa. Quando o Brasil se tornou independente, havia uma corrente descentralizadora e outra centralizadora. O grupo centralizador foi vitorioso, estabeleceu o Império, mantendo a dinastia e as instituições portuguesas, com o imperador exercendo controle através dos Poderes Executivo e Moderador. A República, em 1899, descentralizou o país e deu autonomia aos estados, mas os desníveis econômicos entre eles eram de tal ordem que se fez uma política na qual havia os estados de primeira classe, os de segunda e os de terceira. Os de primeira eram São Paulo e Minas Gerais, tanto que o presidente da República era sempre paulista ou mineiro. Os de segunda classe davam, em geral, os vice-presidentes. Eram Maranhão, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Entre um e outro estava o Rio Grande do Sul, que queria a Presidência, mas não conseguia ser de primeira. A partir da Revolução de 30, ocorreu um processo de centralização, que foi muito forte de 1937 a 1945, durante o Estado Novo. De 1945 a 1964, abriu-se um pouco a Federação. E de 1964 para cá a centralização vai aumentando, quer no regime militar, quer na chamada Nova República. Os governos estaduais vivem sob controle do governo federal. Basta que ele não repasse os recursos a que os estados têm direito para paralisá-los.

Um terceiro problema, é que o Brasil nunca deu a importância devida à educação. O Brasil é um país com um nível de analfabetismo muito elevado. As universidades brasileiras praticamente surgiram depois de 1930, enquanto nos países de colonização espanhola elas surgiram no século XVI. O ensino público no Brasil – que deveria receber maior assistência governamental – sofre as maiores restrições, enquanto o privado, hoje, é o grande negócio.

Outro problema grave é o da saúde. Não há maior interesse na rede pública de saúde. Quando eu era estudante do curso pré-jurídico, em 1939, o professor de higiene falou de certas moléstias que existiam no Brasil e que tinham desaparecido com o saneamento. Entre elas estava o chollera morbus, a varíola, a tuberculose. Hoje elas estão grassando em larga escala! Há um descuido total da saúde. Tudo isso contribui para que o Brasil se encontre numa situação difícil, a tal ponto que ele é a oitava ou nona economia do mundo quanto ao PIB, mas está abaixo de mais de 50 países, inclusive de alguns da América Latina, nos indicadores sociais.

Grande parte da sua produção intelectual é dedicada à análise da realidade nordestina. Qual a perspectiva que o senhor vê hoje para o Nordeste?
As perspectivas não são boas. O Nordeste é aproximadamente um quinto do território brasileiro, e mais ou menos um quarto da população. Mas é uma região empobrecida por fatores externos e internos. Fatores externos como o crescimento da produção açucareira do Sudeste e mais recentemente do Centro-Oeste. No Nordeste, a cultura do açúcar é feita em regiões naturais desfavoráveis, em grande parte onduladas, que não permitem o uso de técnicas mais modernas. Por outro lado, o Brasil não planejou ainda uma política permanente para evitar o impacto das secas – que são temporárias mas se sabe que ocorrem, aproximadamente, uma vez em cada decênio. Uma das frases mais demagógicas que já ouvi na história do Brasil foi de Pedro II, que disse que venderia a última jóia da coroa, mas o nordestino não morreria de fome nem de sede! Só que nunca se fez uma política permanente para atender a população nordestina.

Além disso, o Nordeste é controlado por velhas oligarquias que fazem com que os recursos vindos do governo federal sejam aplicados em benefício delas, e não da população. Generalizou-se até, na década de 60, a expressão "a indústria da seca". Celso Furtado afirmou que não adiantava mandar recursos para o Nordeste que eles não chegavam ao povo. Ficavam nos meios intermediários. É comum se fazer, nos períodos de seca, obras públicas que beneficiam os grandes grupos econômicos e não a população de modo geral.

Mas o Nordeste não é inviável. Ele é rico em recursos naturais. O Rio Grande do Norte, a Bahia e Alagoas são ricos em petróleo. O Nordeste é rico em gipsita, Pernambuco é o maior produtor nacional. O Nordeste é rico em calcário e argila. Em certas áreas, em que predominam rochas sedimentares, sobretudo no Maranhão e no Piauí, há muita abundância de água. Na bacia do Parnaíba há água abundante. Na Chapada do Apodi, na Chapada do Araripe, na Chapada Diamantina, também. O Nordeste poderia desenvolver atividades agrícolas e pecuárias sem o perigo da seca, em condições controladas tecnicamente.

No caso da Zona da Mata de Pernambuco, que já foi muito rica, o grande problema é que os subsídios oficiais estenderam os canaviais por toda a região. Ela tem uma boa produtividade industrial mas baixa produtividade agrícola e não pode competir. No semi-árido há uma área irrigável e outra não irrigável. A quantidade de água é pequena. Então, se fala muito de resolver o problema do Nordeste com cultura irrigada. Mas a área apta à cultura irrigada é 5% da extensão do semi-árido! A agricultura irrigada traz vantagem para os grandes grupos econômicos, sobretudo as empreiteiras, na construção de grandes obras. Mas a agricultura não irrigada atende os pequenos produtores, com a construção de cisternas e o cultivo de produtos adaptados ao clima semi-árido.

Há experiências interessantes no que chamamos de agricultura seca, feita por uma série de ONGs que estão atuando no interior. E a própria Ceptsa, o centro de agricultura do semi-árido, que pertence à Embrapa, vem desenvolvendo trabalhos interessantíssimos de lavouras e de pecuária em área seca.

O senhor é contra a proposta da transposição do São Francisco?
Sou. A transposição do São Francisco tem dois problemas sérios: primeiro, a sua água não é sequer suficiente para irrigar a área próxima a ele na Bahia e em Pernambuco. E ela tem de ser usada em irrigação e em produção de energia. Em segundo lugar, a construção de um canal de transposição seria caríssima num país onde há poucos recursos. Além disso, não sabemos os impactos ecológicos que ocorreriam com a construção desses canais. Eu dei uma conferência no Rio Grande do Norte, onde estão os maiores defensores dessa proposta. E falei contra. E tive, para surpresa minha, apoio de grande parte dos técnicos que estavam lá. E eles me deram uma informação que eu não tinha: que grande parte das águas do açude Armando Ribeiro Gonçalves, que breca o Açu no médio curso e irriga todo o Vale do Açu, é perdida no oceano. Então, seria muito mais barato se fizessem estações de retorno da água para a barragem, para ser liberada outra vez. No Ceará a situação é semelhante com o rio Jaguaribe.

A Sudene foi a instituição símbolo do desenvolvimentismo no Brasil. No entanto, o balanço de sua atuação é bastante contraditório, o próprio Celso Furtado já enfatizou isso. O senhor tem um juízo sobre essa experiência?
A Sudene foi um fator muito positivo até 1963. Porque ela planejou o desenvolvimento do Nordeste, com algumas falhas, que eu mesmo critiquei no meu livro A terra e o homem no Nordeste. A Sudene propunha grandes coisas: uma reforma agrária; desenvolver uma política de industrialização; modernizar as estruturas secundárias. Ela encontrou facilidades em certos setores e dificuldades em outros. E começou a ser esvaziada com a ditadura militar. Ela se transformou quase num órgão de fazer empréstimos a empresas, através do artigo 3.418. Houve muito desvio de dinheiro. Hoje ela está praticamente morta. Mas sua extinção pode trazer prejuízos ainda maiores, tirando qualquer possibilidade de conduzir algum recurso para o Nordeste. Acho que ela deveria ser reformulada, numa espécie de volta às origens, porque apesar dos pesares ela deu uma contribuição razoável em certos aspectos. Por exemplo, se dispõe hoje de uma estrutura de conhecimento do Nordeste que não havia antes. A Sudene montou postos pluviométricos no Nordeste inteiro. Isso não é um trabalho que apareça eleitoralmente, mas é fundamental para se fazer previsões de chuvas e distribuição de água. A Sudene realizou uma série de estudos sobre os desequilíbrios existentes entre as várias regiões do Nordeste. A Sudene possibilitou o desenvolvimento do ensino, dando apoio a universidades e emprego aos que se formavam. Ela deu uma contribuição!

O senhor escreveu um livro sobre isso...
Meu caro, eu tenho mais de cem livros publicados! Eu acho que escrevi sobre tudo no mundo!

José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e do Conselho de Redação de TD.