Economia

O endividamento externo e o interno são mecanismos de transferência de riqueza, de "dentro para fora" e de "baixo para cima". É preciso reverter o processo, transferindo, rápida e radicalmente, renda e patrimônio, dos ricos para os pobres, dos capitalistas para os trabalhadores. O desafio político e técnico está em não penalizar os setores médios

A vitória do PT nas eleições municipais, a disputa no interior do bloco governista e a crise econômico-social indicam que o ciclo neoliberal iniciado com Collor pode estar chegando ao fim.

Cabe lembrar, entretanto, que tanto na Europa quanto na América Latina, a primeira geração neoliberal foi derrotada, mas em seu lugar assumiram partidos da chamada "centro-esquerda", que deram prosseguimento ao fundamental da política anterior. O caso mais recente de estelionato eleitoral é o da Argentina, com De La Rua.

Cabe lembrar, também, que nas eleições deste ano, os partidos governistas receberam aproximadamente metade dos votos do eleitorado brasileiro.

Por tudo isso, encerrar o ciclo neoliberal e dar início a um de natureza oposta, exigirá bastante esforço político e definições estratégicas e programáticas muito claras por parte do PT.

Um momento chave será a próxima disputa presidencial. Nosso plano de batalha para 2002 envolve quatro dimensões combinadas: a preparação do partido e das organizações aliadas; a mobilização social; a ação de nossos governos e parlamentares; e o debate programático.

Em cada uma destas dimensões, a experiência do Plebiscito Nacional da Dívida Externa, realizado de 2 a 7 de setembro de 2000, pode ser útil.

Iniciativa da "Campanha Jubileu 2000, por um milênio sem dívidas", impulsionada por igrejas, movimentos sociais e partidos políticos, o Plebiscito da Dívida colheu a opinião de 6 milhões de pessoas sobre o acordo com o FMI, a dívida externa e a dívida interna brasileiras.

A iniciativa mostrou que é possível combinar mobilização e debate programático. Nos últimos 20 anos, apenas a Campanha das Diretas, a campanha Lula-89 e o movimento Fora Collor mobilizaram tanta gente em ações desta natureza.

A campanha presidencial de 2002 precisa estimular e ao mesmo tempo estar apoiada num processo semelhante. É preciso que o povo seja chamado a debater, formular e escolher entre projetos, não entre candidatos.

O debate de mérito provocado pelo Plebiscito foi bastante ilustrativo do que nos espera nos próximos dois anos.

Num artigo publicado no jornal O Globo, no dia 10/9/2000, intitulado "PT saudações", o ministro da Fazenda Pedro Malan disse que o plebiscito foi "uma idéia fora de lugar (o Brasil não é um país miserável, altamente endividado, cujas dívidas estão sendo perdoadas), fora de tempo (a discussão sobre moratórias teve lugar 15, 20 anos atrás, e hoje o problema não tem a mesma natureza e dimensão), fora de foco (há problemas muito mais importantes a enfrentar no país) e, portanto, fora de propósito".

O ministro concluiu seu artigo apresentando "uma pergunta à ala moderada do PT, aquela que pensa em chegar ao poder federal pela via democrática e em democraticamente exercê-lo".

A pergunta "parte de uma constatação: comunistas italianos (D’Alemma), socialistas franceses (Jospin), social-democratas alemães (Schroeder), trabalhistas ingleses (Blair), socialistas chilenos (Lagos), oposições argentinas (De la Rúa) e mexicanas (Fox), todos, sem exceção, tanto ao se apresentarem ao escrutínio popular em suas eleições, quanto uma vez eleitos e no exercício do poder, deixaram absolutamente claro que eram oposições e que mudariam muita coisa, mas reafirmaram seus compromissos básicos com questões que há muito são vistas como de interesse da maioria, como, por exemplo, a preservação da inflação sob controle, o respeito a restrições orçamentárias e o controle do déficit público. Estas questões fazem parte hoje, no mundo organizado, de um terreno comum, compartilhado por todos. Não são questões sujeitas ao debate político-ideológico. São consideradas obrigações básicas de qualquer governo (de qualquer coloração) minimamente responsável pela gestão da coisa pública".

Pergunta então o ministro: "Por que só aqui no Brasil, dentre os países de alguma expressão econômica e política no mundo de hoje (desenvolvido e em desenvolvimento), ainda se encontra amplo espaço para o discurso de que estas questões são idéias neoliberais impostas por interesses alienígenas, contrários à soberania nacional, ditames do FMI e de forças ocultas expressas em consensos definidos em capitais de potências hegemônicas (...)?"

Explicável a irritação, num ministro tido como fleumático. Ocorre que o Plebiscito tocou nas três características fundamentais da sociedade brasileira: a democracia restrita, a dependência externa e a propriedade hiperconcentrada.

Para a burguesia, é inaceitável submeter estas questões ao escrutínio popular. Afinal, para eles, a democracia não pode colocar em questão a estrutura social, sendo inconcebível romper com a dependência externa e alta traição propor a redistribuição real das riquezas.

Como nossa campanha presidencial terá que tratar destes temas e propor alternativas, jogarão contra nós o mesmo dogma: estas "não são questões sujeitas ao debate político-ideológico".

Acontece que é impossível qualquer política de crescimento econômico ou de enfrentamento da crise social, dois objetivos moderados, se não enfrentarmos o torniquete das dívidas externa e interna.

O endividamento externo é parte de uma política econômica baseada na atração de capitais estrangeiros. Todo capital estrangeiro que vem para o país gera uma remessa futura de divisas. Para conseguir estas divisas, o país tem algumas alternativas: gerar superávits comerciais, privatizar as empresas públicas, oferecer vantagens para os investidores estrangeiros, conseguir novos empréstimos e volta e meia desvalorizar a moeda.

Tomado isoladamente, o "serviço" da dívida (que é parte de nosso passivo externo) constitui uma sangria acumulada de recursos da ordem de 500 bilhões de dólares, desde 1979.

O governo FHC insiste que a dívida externa é na sua maior parte "privada", como se não tivesse responsabilidade alguma nisso; como se, por ser "privada", a dívida não tivesse implicações econômico-sociais; como se o fato de ser "privada" impossibilitasse qualquer ação pública a respeito.

O estoque da dívida externa pública é bastante volumoso, tendo chegado a 136 bilhões de dólares em junho de 2000. A dívida externa privada é maior, tendo dado um salto enorme, de 55 bilhões de dólares (1993) para 141 bilhões de dólares (1999). Salto que foi acompanhado pelo crescimento da dívida interna pública, que pulou de 60 para 380 bilhões de reais, nesse mesmo período.

A dívida externa privada cresceu porque os grandes empresários pegam empréstimos no exterior, a taxas de juros baixas, e investem no país a taxas de juros várias vezes maiores, inclusive comprando títulos da dívida pública interna, estabelecendo assim um vínculo entre as dívidas. Tudo isto com o estímulo e a conivência do governo federal, que fez aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal exatamente para garantir o pagamento em dia das dívidas.

Os juros são mantidos altos sob o pretexto de que o Brasil precisa atrair capitais estrangeiros, para financiar nosso déficit em conta corrente, que não pára de crescer entre outros motivos porque mantemos os juros altos. No dia que cessar ou se reduzir substancialmente o fluxo de capitais para o Brasil, quebraremos.

Por trás deste círculo vicioso, existem fortes interesses financeiros. Os grandes capitalistas se financiam com dinheiro barato, o governo paga a conta aumentando impostos, cortando gastos sociais, privatizando estatais e fazendo novos empréstimos.

Vale lembrar que quando um grande capitalista contrai um empréstimo externo, ele gera uma dívida em dólares, mesmo que seu investimento gere um lucro em reais. Na hora de pagar sua dívida externa, supostamente privada, o grande capitalista precisa de dólares que são atraídos pelo conjunto da economia brasileira. Portanto, a dívida é privada, mas o esforço para pagá-la é público.

Parte de nosso passivo externo tem relação com o crescimento das importações. Nos últimos anos, passamos a importar coisas que poderiam e deveriam continuar sendo produzidas aqui. Para um governo popular, financiar as importações com endividamento externo só faria sentido – como política estrutural – se as importações gerassem alterações na economia nacional, que ampliassem o potencial exportador de nossa economia.

Hoje, as importações estão substituindo parte da produção nacional. Apesar de termos ampliado muito as exportações, alternamos déficits enormes com superávits comerciais ridiculamente pequenos. Nossa participação no comércio internacional continua inferior a 1% do total e caindo. Fazemos um esforço cavalar para exportar, cada vez mais produtos, a um preço cada vez menor.

O governo acusou de caloteiros os promotores do Plebiscito. O termo não se aplica ao caso: não se deve seguir pagando o que já foi pago, várias vezes. Daí, aliás, a importância política de uma auditoria da dívida externa, proposta no projeto de decreto lei apresentado pelo deputado federal José Dirceu, a pedido da coordenação do Plebiscito.

Não consideramos que pagar as dívidas financeiras constitua a prioridade nacional, donde nossa oposição ao acordo com o FMI e à Lei de Responsabilidade Fiscal. Tampouco queremos manter a atual política de endividamento e dependência.

Se o atual modelo econômico fosse o único possível, toda mudança provocaria prejuízos enormes e nenhuma vantagem. Mas julgamos possível utilizar os recursos da economia brasileira de forma mais "produtiva", socialmente falando. Assim, a questão passa a ser: como transitar de um modelo para outro?

Esta transição exige quebrar o círculo de ferro do endividamento, externo e interno. Isso provocará reações dos credores, pois ninguém aceitará passivamente perder dezenas de bilhões ao ano.

Podemos raciocinar com otimismo e concluir que, após alguns rosnados, os grandes capitalistas se acomodarão a nova situação, para não perder as vantagens de investir em um país como o Brasil. Aliás, é bom lembrar que, quando a dívida é muito grande, o problema também passa a ser do credor.

Mas vamos imaginar que eles levem a cabo suas ameaças: cessar o financiamento externo do consumo local; bloquear parte das importações e exportações; interromper os "programas sociais" alimentados por recursos de organismos internacionais; atacar a "imagem" internacional do país; além de uma ferrenha oposição, interna e externa, que pode até desembocar em tentativas golpistas.

O Brasil tem como suportar a retaliação dos credores. Grande parte do que nós importamos pode ser produzido aqui. Existem outros consumidores e fornecedores no mercado internacional, com quem podemos negociar em caso de bloqueio. O "financiamento externo" da nossa economia, ao menos nos termos atuais, causa mais prejuízos do que vantagens.

Se houver vontade política, apoio popular e solidariedade, a resistência é possível e a chance de golpismos internos e agressões externas diminui bastante.

Afinal, não se pode desconsiderar o peso geopolítico do Brasil para a América Latina e mesmo para o sistema financeiro. Isto é um trunfo a nosso favor para influir e liderar processos de desmonte dos mecanismos e organismos de agiotagem internacional.

Vale a pena enfrentar a fúria dos credores. Pois a pergunta não deve ser só "o que nos acontecerá, se tomarmos uma atitude firme", mas também "o que acontecerá se as coisas continuarem como hoje": mais desigualdade social, mais violência, mais desesperança.

O endividamento externo e o interno são mecanismos de transferência de riqueza, de "dentro para fora" e de "baixo para cima". Ao enfrentá-los, não basta interromper o processo. É preciso revertê-lo, transferindo, rápida e radicalmente, renda e patrimônio, dos ricos para os pobres, dos capitalistas para os trabalhadores. O desafio político e técnico está em fazer isso, sem penalizar e/ou sem perder o apoio dos setores médios.

Toda vez que se fala em quebrar e reverter os mecanismos de endividamento, os senhores da dívida reclamam: "quebra de contrato"!

Reclamação curiosa, vinda de quem vem. Afinal, só no governo FHC, quantos direitos trabalhistas e sociais vêm sendo expressa e assumidamente rasgados, em nome da "globalização", da "modernidade", do "livre mercado" etc.?

A "quebra de contrato", aliás, é algo bastante usual na era neoliberal, inaugurada exatamente por um ato unilateral dos Estados Unidos, declarando a inconversibilidade do dólar em ouro, no início dos anos 70.

O problema é que não existe como realizar mudanças sociais profundas, sem algum tipo de "quebra de contrato". A alternativa é a manutenção do status quo, com ou sem reformas cosméticas. Aí está o nosso desafio em 2002: seguir a trilha aberta pelo Plebiscito da Dívida e ganhar apoio majoritário, na sociedade, para um projeto de natureza socialista, democrática e popular.

Valter Pomar é 3º vice-presidente nacional do PT.