Cultura

A honestidade com que confessa sua visão política e fala sobre sua histórica relação com o PT confirma que seu talento tem uma raiz profunda no modo de vida dos “manos”

Dez anos atrás, não existiam as camisetas “100% Negro”, nem a revista Raça Brasil. Muitos dos “manos” e “minas” hoje envolvidos por um verdadeiro “laço fraterno”, como escreveu recentemente a psicanalista Maria Rita Kehl, tinham vergonha da cor, do cabelo e do bairro onde moravam. Vergonha de si mesmos. E boa parte dessa mudança que está finalmente enterrando séculos de preconceito cultivado nas casas grandes e senzalas de nosso passado colonial se deve aos Racionais MCs, o quarteto que se tornaria o maior canal de expressão para as idéias da “consciência negra” jamais visto no Brasil, como reconhecem as próprias entidades organizadas do movimento negro. Cantando a “periferia”, o grupo ampliou ainda mais a base dos que se opõem ao “sistema”. Hoje, na épica dos Racionais, a grande luta do mundo é entre manos e playboys, mais até do que entre negros e brancos.

Mas o grupo também caiu no gosto da classe média. Aí, fora da “fratria” dos manos, ora Brown aparece como heróico líder revolucionário, ora como ser arrogante e portador de um “preconceito ao contrário” – “muita gente não engole pretos orgulhosos como a gente”, já disse o parceiro KLJay. Para a imprensa, Pedro Paulo foi prato cheio com uma suposta defesa aberta do seqüestro dos jogadores de futebol que ostentam ascensão social em carros importados – na verdade a entrevista que originou a polêmica, publicada sem autorização pela revista Trip em 99, foi gravada sem que o rapper soubesse, durante uma conversa informal com o repórter, que visitava seu amigo, o lutador Jofrinho.

Avesso ao contato com a grande mídia, que trata com despeito e indiferença, por convicção política, Brown é personagem ideal para que os mitos se acumulem ao seu redor. O tom sério e dramático de seus versos, além de uma cara quase sempre sisuda, é a fachada de um pai de família que hoje mora com a esposa, Eliane, a mãe, Ana, e mais dois filhos num condomínio de classe média na Vila das Belezas, porta de entrada para os labirintos da periferia da zona sul – a poucos quilômetros do apertado apartamento na Cohab Adventista, onde moravam até 98, antes do estrondoso sucesso de “Sobrevivendo no Inferno”, último disco do grupo. Fã de Jorge Ben, Pedro Paulo, que, como o russo Maiakóvski, compara seus versos aos tiros de um revólver, não se esquiva do título de poeta e mostra ter muita consciência da arte que faz.

Na entrevista a seguir, abre-se de um modo poucas vezes visto em público. A honestidade com que confessa sua visão política e fala sobre sua histórica relação com o PT confirma que seu talento tem uma raiz profunda no modo de vida dos “manos”. Ouvir Brown é entender um pouco mais essa geração de jovens arredios e orgulhosos que têm tombado nas trincheiras da guerrilha alimentada pela desigualdade social brasileira.

Encontrei Brown numa nublada noite de novembro, na Associação Chico Mendes, no Capão Redondo. Ele tinha ido conhecer o espaço, onde há biblioteca e salas para aula de informática e atividades culturais. Planeja implantar algo semelhante no seu antigo bairro, a Cohab Adventista – entre os vários projetos com que colabora na região há ainda uma rádio comunitária e áreas de lazer. Os Racionais estão atualmente em estúdio, preparando novo disco para abril de 2001. Projetos futuros e polêmicas passadas, entretanto, são assuntos evitados por Brown, que cuida da educação dos filhos – “não quero que eles cresçam encostados na minha fama” –, conta histórias das brigas inevitáveis em que ainda se mete – “preciso sair menos; não posso ver injustiça, que já vou em cima” –, mas não gosta de falar sobre a violência que a fama pode atrair sobre sua família. “Não quero pensar nessas coisas. Parece minha mãe falando...”, responde a um amigo que lhe sugere que mande blindar seu carro.

Desde o último disco vocês tiveram um salto grande de público, não?
O salto já tinha acontecido desde o disco anterior ((“Raio X do Brasil”, de 93). O que fez diferença desta vez foi o prêmio da MTV (melhor clipe do ano em 98 por Diário de um Detento). Em 94, eu ganhei o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, por Homem na Estrada. Foi a melhor música do ano. Só que isso não foi muito divulgado.

Cresceu a responsabilidade dos Racionais?
A partir da hora em que você fala um barato na música, já é responsável pelo que fala. Falou, já era. Não há diferença de falar para mil ou 500 mil, para mim nunca mudou nada, sempre falei a verdade, sempre falei o que eu pensei. Porque sempre vai ter polêmica, vai ter os que gostam e os que não gostam. Também tem o seguinte: na média, só umas 50 mil pessoas analisam o lado político do disco. Os outros 450 mil, uns vão pelo som, outros pela moda...

Então ainda são 50 mil os “manos”?
Não quer dizer que não seja mano o cara que não analisa o lado político. É outra fita. Eu digo 50 mil o lado que você analisa, o lado da tua revista, o lado que o PT vê. Por isso a responsabilidade não aumenta muito. Aumenta com o fato de os caras acharem que você tá rico. Você mora numa quebrada violenta, ladrão pra caralho. Então tem que ficar mais malandro, ligeiro.

Ao escrever você leva em conta o fato de que hoje também atinge muitos jovens de classe média?
Nunca analisei isso. Nem para xingar, nem para contar história. Eu não me preo­cupo com classe média. Eu me preo­cupo é com favelado, com pobre, periferia. Porque, se você se preocupar com classe média, ou você vai começar a xingar muito, pra querer ofender, ou vai querer analisar, pra ver se os caras compram mais... É a tendência. Quando você vê o cara xingar muito o burguês, é porque ele quer que o burguês compre.

O rap não apavora ninguém. O classe média já é apavorado por natureza. O rap é só a trilha sonora do mundo em que a gente vive. O mundo já é apavorante.

Certa vez você contou que mudou seu estilo de escrever, da época do “Escolha seu caminho” (2º LP do grupo, de 1991) para cá, para não parecer um “professor universitário” falando...
A parte mais difícil da fita toda é fazer o favelado te ouvir, não o classe média. O classe média estuda, analisa o que você fala. Os caras têm um conceito, estudaram, uns já deram sorte de viajar, outros de fazer faculdade. Já o favelado compra axé, sertanejo, samba (esse samba que os caras fazem hoje), que é já pra não ouvir a letra. Pra você fazer esses caras ouvirem o seu rap, truta, se você tiver um estilo, vamos dizer, aristocrata, não vai conseguir. A minha intenção é fazer eles ouvirem, porque o rap é música popular, é música do povo. Então eu não posso falar que nem um político, com o linguajar político.

Mas como fica quando alguém ouve a “música do Guina” (Tô ouvindo alguém me chamar, do último CD do grupo, conta em primeira pessoa a história de um ladrão morto pelos parceiros) sem perceber que a letra condena o crime, achando que aquilo é uma apologia à violência?
Isso não tem jeito. Tudo bem, o rap tem o poder de fazer o cara se inspirar às vezes numa fita ou outra, só que ele não é realidade pura, mano. É como tirar uma paisagem da vida real e fazer um desenho. Se você pega um quadro, pinta uma criança catando lixo, na vida real é feio pra caralho, mas todo mundo vai querer comprar. Entendeu a diferença? Aí é que tá o barato do rap. O rap é o retrato do barato. Se você quiser vender aquilo ali, ninguém compra, você vai ter que transformar. Por que o cara gosta e compra o rap? O bagulho rima, tem a batida, tem balanço... Fala umas palavras que no dia-a-dia o cara nunca imaginava que ia virar um rap. É tudo magia, truta. Cada música que eu faço pra mim é um filho. Todas têm uma personalidade, têm alma. Eu não faço música pra encher disco nem pra fazer ibope. Faço música. Cada letra tem uma cara, tem uma cor, tem um estilo. Cada música é uma pessoa. A música é viva. As coisas têm que estar todas ali. O corpo humano tem cabelo, olho... A música é a mesma coisa: tem a batida, tem a rima, tem o ritmo, tem a idéia, tem a mensagem que está escondida, mas tem que ter a mensagem explícita...

Você só começou a escrever com o rap? Não houve nada antes?
Eu tentei fazer uns sambas, mas não deu... Samba é diferente. Eu aprendi a ser um cara ligeiro foi no rap. Eu era moleque, comecei com 17. Chapéu atolado, não sabia nada. Sabia catar namoradinha e curtir festa, igual todo cara faz. Aí, no meio do rap, você vai conhecendo pessoas... Conheci Geledés, movimento negro e tal, Miltão (Milton Salles, agitador cultural da comunidade negra paulistana, que desde a década de 70 semeava as idéias do Black Power, organizando bailes de soul e funk. Apresentou ­Brown e seu parceiro Blue aos rappers Kljay e Edi Rock, da zona norte de São Paulo, ajudando a criar os Racio­nais). Os caras eram mais velhos, falavam “Vê direito, olha lá na frente, guarda dinheiro...”

Milton Salles, esse cara marcou o meu rap. O que ele passou pra mim quando eu estava começando eu não esqueci nunca. Foi minha primeira mudança, onde eu aprendi 60% da visão que eu tenho hoje do mundo – os outros 40% eu tirei minhas conclusões.

Esse aprendizado foi só nas conversas?
Não, teve leitura. A biografia do Malcolm X: foi a segunda vez que minha cabeça virou do avesso. Eu morava em favela, casa de dois cômodos. Você cata um dinheiro, vai fazer show, quer o quê? Quer se jogar. Eu pensava o quê? Em dar uma casa pra minha mãe. Profissão não tenho, estudar não estudei muito. Fosse hoje, com oitava série, eu morria de fome. Daí eu pensava o quê? Em ganhar um dinheiro e tirar minha mãe dali. Só que aí, com o tempo eu fui vendo que o barato foi ficando sério, eu fui ficando mais velho...

E no rap, inicialmente, o que o inspirou?
Public Enemy (grupo novaiorquino que, no fim dos anos 80, recuperou para o rap as idéias do Black Power; foram investigados pelo FBI a mando do Congresso americano). Quando eu li o livro do Malcolm X, era essa época. Eu fiquei quase doido.

Por quê?
O bagulho de cor, né, mano? Raça, preto, branco, uns baratos que ele dizia que acontecem lá, e você vê acontecer aqui igualzinho. Você pensa: “pô, o cara tá falando a verdade, ele não tá contando mentira”. Abracei com as dez, né? Estava quase virando terrorista.

Eu não gosto mais ou menos das coisas. Tudo que eu gosto eu sou fanático, tá ligado? Tipo fanático religioso. Se sou santista, ou se gosto de rap, sou fanático, se sou preto, sou fanático pela minha cor. Quando eu li o Malcolm X eu fiquei louco, fiquei fanático. Virei uma bomba ambulante. Quase fiz umas merdas...

E a escola, não te tocava em nada?
Eu estudava mais pra fazer uma preza pra minha mãe. Nunca curti escola. Fui fazer eletrônica, aí era muita conta, nunca fui bom de matemática, química, biologia, aquelas contas doidas. Falei: “mano, ou eu sou burro pra caralho, ou vou ser ladrão!” Não aprendia, truta! Comecei a ficar complexado.

Você já percebia em si um dom pra escrever?
Não, porque é diferente, mano. Na época não existia o rap brasileiro. Eu sempre gostei de música, mas nunca imaginei que fosse fazer música. Eu estudava pra tentar ser algum barato, pra não fazer vergonha pra minha mãe. Tudo o que ela fez sempre foi pra eu estudar. Aí, saí fora do barato, comecei a ir pra São Bento escondido (estação de metrô em São Paulo onde os dançarinos de break e fãs de rap da cidade se encontravam na década de 80). Estava desempregado, derrubado, comecei a me envolver numas fitas, vinha pouco em casa. Foi quando começou a ter muito pé-de-pato (grupos de extermínio formados em sua maioria por policiais) na área também, e eu não podia vir. Tive problema com eles, então comecei a ficar lá mesmo. Conheci o Kléber (KLJay, o DJ dos Racionais), falei “ah, mano, é aqui que eu vou ficar”.

Como eram seus primeiros raps?
Xingavam a polícia, aqueles baratos. Na época ninguém falava nada dessas coisas, então estourou.

No primeiro disco, “Holocausto Urbano”, você inovou falando dos pés-de-pato, que todo mundo na época temia muito, depois veio a questão do orgulho negro, a situação carcerária... Alguma temática nova para o próximo disco?
Tem. Mas pra falar é difícil. Eu tento entrar na mente das pessoas, é o que posso falar. Depois vocês vêem, porque eu mesmo nunca analisei meus discos.

Eu falo da vida, mano. Na periferia tem muita coisa que parece que é proibido falar. Até os grupos de rap falam meio naquela, tá ligado? Não pode falar certas coisas porque não tem aquela moral, aquele conceito. O Racionais pode falar de muita coisa. Falo das coisas que vi, de como cresci. Quem me criou foi uma negra e eu vi como ela sofreu por isso. O caso de minha família é típico. Na história do Brasil, quanto branco não fez filho em mulher negra e se jogou? Isso é o Brown e é sobre isso que escrevo, não é o que li num livro.

Sua experiência pessoal ainda é determinante para o seu rap?
Quando eu era criança, pensava nesse fato de eu não ter pai, de o meu pai ser branco, e eu tinha ódio, o maior ódio. Mas com o tempo, o ódio começa a virar dor. Você vê que não é só você que passa por isso. Eu nunca fui de ter dó de mim mesmo, de me sentir coitado. Eu sou um cara guerreiro. o rap para mim não é jogo, é guerra e nessa guerra eu tenho que conviver com as minhas dores sabendo que tem mais gente que sofre no mundo e que pelo menos através do rap pode se aliviar. O rap vai diretamente até os que mais sofrem.

Qual foi a maior conquista do Hip hop no Brasil?
Foi assumir a raça. Ter orgulho da raça, identidade, né?

Como você se define politicamente? Diria que é socialista?
Nunca pensei nisso. Não sou socialista. Eu gosto de relógio, carro... Porque acho que todo mundo tem que ter. Socialismo é outra fita. Todo mundo comer, beber, ter escola, é o justo. Agora, se eu disser que sou socialista, depois você me vê com carro, com uma pá de cara, curtindo, tomando... Foge um pouco do barato da política, né? Eu gosto das coisas certas, justiça.

Como surgiu o contato com o PT?
Foi pelo Miltão também. Ele fez de tudo para a gente se juntar com o PT. Ele também chegou nos caras do PT, falando: “Vocês têm que ouvir rap, estão todos velhos, não conhecem porra nenhuma, o mundo tá pegando fogo, vocês nessas aí! Já ouviram falar de rap?” De tanto ele insistir, começaram a olhar. E gostaram. Foi naquela época do “Raio X”.

O que você pensa do PT?
O PT é o partido com que a gente mais se identifica. Sempre votei no PT. Desde moleque eu já gostava do PT. Desde a época em que o Lula se candidatou a governador. Eu sempre fui meio do contra, gosto do lado difícil da vida. Sou filho de preta com branco, não tenho pai, minha mãe era analfabeta, veio da Bahia com 12 anos, santista, favelado, ia votar em quem?...

O que o PT pode fazer pela periferia?
As pessoas têm uma visão errada, acham que o PT é o salvador do mundo, querem que o PT vá de porta em porta dar comida e leite. Não é assim, os caras têm que ver que a situação está embaçada, está um nó cego. O PT vai de novo tentar desatar o nó. Só que as pessoas não têm paciência. Até porque quem gosta do partido é fanático, então sempre fala que o PT resolve, faz, que o resto não presta, o PT é que é. Os caras estão acostumados a ver o Maluf roubar, o PSDB não fazer porra nenhuma, então o PT, que é tão falado, acaba sendo mais cobrado, entendeu? Mas pelo que eu vejo vai ser difícil. Convenci vários caras a votar no Vicente Cândido (vereador petista da zona sul com atuação na luta por centros de cultura, lazer e esporte), a votar na Marta. Tudo favelado, sofredor, que ia votar no Maluf.

O problema é que o PT investe dinheiro onde ninguém vê: escola, merenda, salário de professor. O povo só vê ponte, túnel, estrada. A cabeça do povo é essa.

Como o PT pode chegar até esse favelado, sofredor, que vota no Maluf?
Tem que ser malandro, bom jogador. Fazer um bem bolado entre agir na raiz do problema e também anestesiar o barato, porque tem coisa que tem que resolver agora, não pode ser daqui a 8 ou 10 anos, o povo não agüenta. Os caras vêem a cidade e é só obra, “pô, o Maluf tá trabalhando”, está acontecendo ali, você pega. Já o PT faz umas coisas invisíveis, com efeito daqui a 20, 15 anos... O povo sofre muito, não tem paciência pra esperar.

Especificamente, na zona sul, o que a Marta deveria fazer?Mano, primeira coisa: arrumar as ruas. É um barato que, ó, o cara cresce o olho: tirar os buracos. E não deixar juntar lixo. Os caras reclamam que na época da Erundina tinha muito lixo na rua. Rua esburacada e lixo. É coisa visível, deixar a cidade mais bonita...

Você já pensou em entrar para a política?
Ô camarada, eu sou um cara meio preguiçoso. Vida de político é só reunião, uma pá de gente. Eu fico estressado rápido... Bom, por enquanto não.

O que você achou de a letra de Homem na Estrada ser lida no Congresso? Será que afetou os deputados?
Difícil falar da cabeça dos outros, ainda mais esses caras aí. Não sei o que abala esses caras, eles vêem criança morrendo de fome, idoso em fila de hospital, 3, 4 dias na maca, não fazem nada pra ajudar, não se emocionam, agora vão se emocionar com a música? É difícil.

Nos últimos anos, você teve a oportunidade de viajar para outros países. Como foi essa experiência?
A Alemanha é um lugar onde eu não queria morar nunca. Não tem criança, não tem cachorro. Conseguiram chegar a um nível de tanta perfeição que as pessoas não querem nem ter filho. A população idosa lá já é maior que a população jovem. Já tem quase mais aposentado que trabalhador. Não é a nossa cara. O Brasil é outra parada. E nos Estados Unidos os caras são todos mimados mesmo. Choram de barriga cheia.

Inclusive o pessoal do rap?
O que eu conheci de rapper americano foi aqui mesmo. Lá eu não conheci ninguém de rap. Só povão mesmo.

A comunidade negra também?
Ah, tudo cheio de ouro, diamante, e reclamando!...

Você também já disse que até 97 quase não conhecia o resto do Brasil. Depois que começou a viajar mais, o que viu pelo país?
Primeiro, encontrei favela em todo lugar. Aqui tem mais, ali tem menos, mas todos têm... Também tem rap em todo lugar. E tem lugar em que a situação é muito pior que aqui.

Alguma região chamou sua atenção?
O lugar onde a minha família vive lá na Bahia, interior de Feira de Santana. Não tem água, não tem o que comer, o povo magrinho, o pessoal quer vir tudo pra São Paulo, uns vêm, viram bandidos, não se arrumam.

Isso alterou a sua visão do país?
A diferença é que você vê o lado verdadeiro das coisas. A gente conhece a Bahia pelo quê? Carnaval? Fui conhecer o interior da Bahia, você vê a diferença lá, o pessoal não curte carnaval igual os caras pensam... O Brasil vende uma cara, mas dentro é outra coisa...

O Brasil tem muito pra crescer, evoluir. Muita gente inteligente, que conhece os problemas, mas fica de mão amarrada. É revoltado, mas não sabe por onde começar. Tinha que unir essas pessoas. Mas pra unir é que é foda.

O que poderia acontecer para o país mudar?
O que pode funcionar é a gente dar sorte e aparecer um governo que faça uns dois ou três baratos pro povo acreditar no cara. Porque a visão que o povo tem do político é que ele está lá pra roubar, pra se adiantar, e vai pular fora. Daí ninguém quer derramar uma gota de sangue pelo Brasil. Ninguém é patriota. Você vê alguém de roupa verde e amarela na rua, alguém com bandeira do Brasil? Não vê. Tem cada vez mais gente torcendo pra Nigéria na Copa.

Ao mesmo tempo em que tem que ser feita a revolução embaixo, o exemplo tem que vir de quem tem mais autoridade. Qual é o exemplo que se tem hoje? O cara sai da periferia, ganha dinheiro, vai morar numa mansão, compra um carrão, abre boate pros bacanas... Então qual é a idéia do periferia? “Eu sou eu, não me envolvo com ninguém, vou fazer a minha, cada um, cada umm”. Pra você ter dois pensando igual é foda. Não sou romântico pra esses lados, sou realista. O barato é difícil. Ninguém confia. “Tá me ajudando por quê? O que quer em troca?” Se um político chegar na favela e começar a fazer muito, vagabundo diz: “É, não sei não, quanto ele não tá ganhando também?”

Será que o PT consegue chegar à Presidência?
A brecha é a Marta fazer um governo “nervoso” mesmo, fazer uns baratos pro povo ver, e procurar uns cargos mais altos. Aí, se ela for uma boa prefeita mesmo, o PT domina a fita toda.

Em 98, no evento que lançou o apoio do Hip Hop ao PT, você levantou o braço do Lula dizendo que a eleição era entre ele, o mano, e o playboy FHC. Na política, de hoje, quem é playboy e quem é mano?
ACM é playboy, defende os boys. O Fernando Henrique é neutro, mas, se apertar, ele vai pros boys. Ele prefere ser neutro o tempo todo, porque já foi do lado dos revolucionários – pelo pouco que eu conheço, né? Não quer nem tanto vender a alma, nem perder o ibope com a classe dele. Ele quer segurar os dois lados e terminar o mandato sem nenhum escândalo. É um covardão, impostor.

Qual conflito é maior hoje: entre pretos e brancos, manos e playboys, ou periferia e elite?
Em primeiro lugar, é o do rico com o pobre. Em segundo, do preto com o preto. Em terceiro, o do branco com o preto.

Em poucas palavras, o que vem à cabeça com estes nomes?
Maluf: Malandrão.
Covas: Neutro. Mas fez a dele.
Bob Marley: Foi um sofredor nato.
Malcolm X: Uma palavra? É muita coisa, mano... Todo preto devia ler.
Martin Luther King: Foi uma vítima. Nasceu pra ser vítima. Muito bonzinho...
Zumbi: Foi um grão de areia, uma lenda. Não o primeiro, mas o mais famoso preto revolucionário brasileiro. Só que a distância no tempo atrapalha. O que seria o Zumbi? Um cara com roupa de tribo, com lança, ou com revólver, não sei...
Jesus: É o caminho. O único caminho.
Marta: Esperança de as coisas começarem a mudar.
Lula: Eu gosto do Lula, mano. Mas ele é uma vítima do preconceito.
MST: Cabuloso.
Rede Globo: Bala de mel: doce, chato demais, não muda nunca.
Brasil: O Brasil é um gueto gigante. Ninguém está aqui porque quer, só porque é obrigado.

Qual deve ser a prioridade da luta da esquerda hoje?
Dar condição para as pessoas ganharem o seu dinheiro. O povo não quer ganhar nada de graça. Ninguém quer ser filho da assistência social. O favelado tem orgulho. Se o PT ganha a eleição e começa a doar salário para as famílias que estão desempregadas, com o tempo não vai mais dar resultado. O cara que vive do seguro do governo é a parte mais baixa da sociedade. E ninguém quer ser a parte mais baixa. Nenhum ser humano quer. Todo mundo quer mostrar seu valor, seu brilho. O PT tem que pregar para as pessoas que todo mundo tem seu valor, não pode baixar a cabeça. Tem que lidar com o povo menos como coitado e mais de igual para igual. O povo não é coitado. A maioria da periferia não quer cesta básica do governo.

A saída pode estar na educação?
É. Em fazer as pessoas terem mais orgulho. Orgulho do país e de si mesmo. É escola pra trabalhar a mente dos moleques e ensinar que ninguém é menos do que ninguém, todo mundo tem capacidade.

Tem que ensinar as pessoas a investir no seu talento, não adianta ser frustrado. Isso não é do preto, ou do favelado, é do ser humano. É isso que tem que ser despertado nas pessoas. Tem que dar a possibilidade de vários trabalhos, profissões, arte, pra levantar o astral do cara aqui dentro, dentro da cabeça.

Eu conheço vários caras que moram na favela, e não pagam pau pra ninguém trocando idéia. Têm uma idéia formada do mundo, sabem o que é bom, o que é ruim... Só que passam o maior veneno! Sofrem, às vezes não têm o conforto de ter todo dia o que comer... Mas não querem que você vá lá dar de graça. Querem ter condições de ganhar o seu sem se humilhar pra ninguém. E ganhar é humilhação, entendeu?

Spensy Pimentel é assessor de comunicação do Instituto Cidadania, jornalista e mestrando em Antropologia na USP.