Sociedade

Filósofo da ciência, australiano de nascimento, mas trabalha há muito tempo no Swarthmore College, na Pensilvânia

Hugh Lacey é filósofo da ciência, australiano de nascimento, mas trabalha há muito tempo no Swarthmore College, na Pensilvânia. De 1969 a 1971 foi professor no Departamento de Filosofia da USP, e desde então mantém estreito contato com o Brasil, vindo ao país com freqüência, como neste ano, como professor-visitante nesse departamento. É um crítico da maneira como a ciência e a tecnologia são praticadas no capitalismo, propondo concepções alternativas, no desenvolvimento das quais os movimentos populares têm um papel fundamental. Dedica-se especialmente às questões da agricultura, questionando a biotecnologia e os alimentos transgênicos, e defendendo os métodos da agroecologia. Em português, publicou em 1998, Valores e Atividade Científica (Discurso Editorial). Em inglês, saiu em 1999, Is Science Value-free?: Values and Scientific Understanding (Routledge). Lacey tem interesse nos comentários dos leitores; seu endereço eletrônico é [email protected]

Como surgiu seu interesse pela relação da ciência com a sociedade?
Formei-me em matemática e física, mas cedo me interessei pela filosofia e pelas ciências sociais e sua relação com as ciências naturais. No mestrado e doutorado, estudei história da ciência e principalmente filosofia da ciência. A natureza do conhecimento científico e a relação entre ele e a vida cotidiana das pessoas eram questões que me instigavam. No estudo da filosofia da ciência, achava interessante a distinção entre ciência pura e aplicada. Os filósofos da ciência consideram a ciência aplicada simplesmente como uma conseqüência do sucesso da investigação científica. Mas a ciência está estreitamente ligada à tecnologia. A ciência moderna é um tipo de investigação dos fenômenos naturais realizada quase sempre com a idéia de aplicação deste conhecimento. Assim, embora não se possa identificar ciência e tecnologia, o tipo de conhecimento que a ciência produz na sociedade atual está, apesar de algumas exceções, muito vinculado à aplicação prática no mundo social. Situo-me, desta forma, na trilha aberta por Bacon, que estabeleceu uma ligação profunda entre investigação e aplicação.

A aplicação não é simplesmente uma conseqüência do conhecimento. Desde o início, o tipo de conhecimento que queremos obter tem que se relacionar com o tipo de conhecimento que queremos aplicar. E esta questão torna-se candente em um momento que novas tecnologias estão sendo muito rapidamente introduzidas em várias áreas novas – não só nas áreas tradicionais das ciências físicas, mas também da medicina, da agricultura e da educação. O papel da ciência deveria ser, então, o de produzir o conhecimento necessário para o desenvolvimento humano.

Você é australiano, vive nos Estados Unidos e tem um vínculo antigo com o Brasil. Fale-nos um pouco de sua trajetória e preocupações.
Nasci em Sydney e estudei inicialmente na Universidade de Melbourne na Austrália, onde fiz a graduação e o mestrado. Depois, fiz o doutorado em Indiana, nos Estados Unidos. Lá conheci minha esposa, que é brasileira. Fui professor na Universidade de Sidney uns três anos, dei aulas na Universidade de São Paulo entre 1969 e 1971 e depois fomos morar nos Estados Unidos. Assim, desde 1972, trabalho lá.

Mas se sempre me preocupei com a ciência e trabalhei como filósofo, também me interessei pela política dos movimentos populares. Sou católico, acompanhei com atenção a Teologia da Libertação, e no Brasil tive contato com grupos de comunidades de base. A partir daí, segui com grande interesse este tipo de movimento.

Coloquei-me a questão do que a ciência, as práticas e os conhecimentos científicos podem representar para movimentos como as comunidades de base ou o MST, por exemplo. Ficou claro, para mim, que geralmente os desenvolvimentos científicos servem muito mais aos interesses das instituições dominantes na sociedade do que aos interesses populares. Mas os grupos organizados do movimento popular precisam obter e usar conhecimentos. A partir daí, procurei saber quais são as características da investigação científica moderna que possibilitam sua apropriação muito mais pelas instituições dominantes. E, por outro lado, como pode o conhecimento científico ajudar os setores populares?

O conhecimento científico predominante é do tipo, como eu chamo, materialista. Nas teorias nós tentamos explicar as coisas em termos de estruturas, processos, interações e leis subjacentes aos fenômenos, abstraindo as relações das coisas com a vida humana, e as relações ecológicas e sociais. Esta explicação é muito importante porque facilita o controle de objetos naturais. É o conhecimento necessário para os desenvolvimentos tecnológicos modernos. Mas me perguntei se não seriam possíveis outros tipos de investigações empíricas e sistemáticas, não só em termos da estrutura e leis subjacentes, mas também, por exemplo, em termos do lugar que as coisas ocupam em sistemas ecológicos e sociais.

Para mim, foi fundamental identificar uma alternativa a essa ciência, na qual claramente obteríamos conhecimentos práticos importantes. Encontrei esta alternativa na agroecologia. A agroecologia não rejeita o conhecimento materialista; ela o utiliza para ajudar a identificar os elementos constituintes dos ecossistemas, como bactérias e outras entidades microscópicas. Mas o interesse da agroecologia é como produzir dentro de agroecossistemas dados, não só de forma produtiva, mas também sustentável no sentido ecológico e social. Existe uma ampla literatura sobre o tema. Em segundo lugar, os métodos agroecológicos têm uma continuidade com o conhecimento tradicional da agricultura em vários locais. E terceiro, é um tipo de conhecimento desenvolvido no decorrer da interação com grupos populares no campo. A agroecologia me oferecia, então, um modelo do que pode vir a ser uma outra ciência, pensada a partir de objetivos diferentes.

Você caracteriza a ciência não a partir de procedimentos, mas sim de valores cognitivos. Como os objetivos perseguidos pela ciência poderiam ser mais importantes do que o próprio método para definir o que vem a ser a ciência?
Eu prefiro falar em várias abordagens da pesquisa científica. Minha noção de ciência não é uma noção radical, mas um pouco mais geral do que aquela dominante. A ciência é uma investigação sistemática e empírica. Isto é, a relação com dados observáveis sempre é um fato importante na avaliação dos enunciados. Mas é necessário distinguir o que chamo de valores cognitivos de outros tipos de valores, como os valores sociais ou os valores morais, por exemplo. Um valor cognitivo é um critério para avaliar uma teoria científica, por exemplo, se ela torna possível previsões, explicações, coisas desse tipo. A simplicidade é um outro valor cognitivo. São os valores cognitivos que tornam possível avaliar as teorias. Mas uma teoria deve representar o entendimento de coisas. Entendimento que, para mim, envolve sempre explicação e também identificação das possibilidades de um domínio de fenômenos.

Para conduzir um programa de pesquisa é necessário primeiro identificar os tipos de possibilidades que queremos investigar – por exemplo, na agricultura, quais devemos preferir, as potencialidades, tais como as da biotecnologia, geradas pelas estruturas e leis subjacentes às coisas, ou as possibilidades das coisas como parte de agroecosres sociais, como por exemplo, a solidariedade e a justiça social – ou, do outro lado, a competitividade e a lucratividade. Mas quando adotamos uma estratégia e formulamos teorias, é necessário avaliar a teoria à luz dos dados e dos valores cognitivos. Em outras palavras, os valores sociais podem determinar as possibilidades de interesse, mas eles nunca podem mostrar exatamente, concretamente quais são as possibilidades. Para determinar quais são as possibilidades é necessário avaliar as teorias à luz de dados e valores cognitivos.

Essa colocação me parece se demarcar de duas visões. De um lado, uma concepção que vê a ciência como totalmente neutra, pairando acima da sociedade produzindo um conhecimento universal, a-histórico. De outro, uma visão que vincula a ciência aos interesses dos grupos que produzem o conhecimento, na qual a ciência não tem um alcance universal. Sua abordagem se diferencia desses dois enfoques, reconhecendo uma determinação social, mas ao mesmo tempo atribuindo uma universalidade ao conhecimento científico.
Acho que sim. A palavra universal é um pouco complicada, mas acho que podemos dizer que quando avaliamos se uma teoria é boa, sempre fazemos um juízo universal no sentido de que a aceitação desse juízo é conseqüência somente da relação entre teoria e dados empíricos e o uso dos valores cognitivos. Todo mundo pode, de qualquer perspectiva, fazer exatamente o mesmo juízo, pelo menos em princípio. Mas quando fazemos isso, identificamos certos tipos de possibilidades das coisas e talvez você não tenha interesse nessas possibilidades, mas sim em outras. Talvez não tenha interesse se isso não dá lucro – como no exemplo da tecnologia agroecológica, já que geralmente os métodos agroecológicos não são muito rentáveis. A biotecnologia moderna certamente dá lucro para as grandes empresas, mas os pequenos produtores que usam métodos da agroecologia não têm muito interesse nela. Existem certos tipos de possibilidades biotecnológicas, mas eles querem investigar as possibilidades de agroecossistemas sustentáveis. Os valores sociais, portanto, têm um papel neste nível da determinação dos interesses, mas não no nível estritamente cognitivo. A existência de possibilidades biotecnológicas pode ter um alcance geral, mas isso não significa que todo mundo precise se interessar por essas possibilidades.

Você diz que o real não se limita ao atual, mas inclui também o possível. Esse tipo de discussão sobre possibilidades alternativas me parece inteiramente correto, mas ele não é pouco usual na filosofia anglo-saxônica?
Sim, e por essa razão eu citei Roy Bhaskar no meu livro. Ele é um dos poucos que trata deste tema. Uma teoria contém o que chamo de encapsulação de possibilidades, isso é importante para a aplicação, para a tecnologia. Novas tecnologias realizam novos tipos de possibilidades. Por isso, eu não tenho um quadro do mundo, como se o mundo estivesse aqui e nós tentássemos descrevê-lo. O mundo é uma fonte de possibilidades e podemos agir nesta direção ou em outra, e promover tipos diferentes de possibilidades. Mas é muito importante não confundir realidade com atualidade, isto é, a atualidade dos fenômenos já realizados até agora, porque talvez amanhã as possibilidades de realizá-los sejam diferentes. É importante, então, identificar possibilidades de interesse dos movimentos populares, no mesmo sentido que as grandes corporações buscam identificar novos tipos de possibilidades que lhes interessam. Para ter lucro elas precisam produzir um produto, e ao criá-lo, elas realizam novos tipos de possibilidades que lhes dão lucros.

A visão da ciência como um campo aberto de possibilidades, em que interesses e perspectivas diferentes se confrontam, é muito diferente da idéia da ciência como modelo geral de racionalidade, resgatando a idéia iluminista da ciência como um elemento importante para a emancipação humana. A ciência normalmente é apresentada como um modelo fechado, como um modelo de racionalidade única, universal...
O modelo dominante sugere que dentro da metodologia da ciência existem dois elementos principais: teoria e dados empíricos. A racionalidade da ciência envolveria fundamentalmente um certo tipo de relacionamento entre os dois, por exemplo, por meio da idéia de experimento. Mas minha filosofia da ciência é posterior à obra de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, defendendo que a ciência engloba não só teoria e dados empíricos, mas também um outro elemento, que Kuhn inicialmente chama de paradigma de pesquisa. A investigação é sempre conduzida dentro do contexto de um paradigma. Creio que minha noção de estratégia é uma generalização da noção de paradigma, e é um pouco mais clara do que ela. Mas se as fontes da minha idéia estão em Kuhn, ele tem a idéia de que dentro de uma ciência madura da pesquisa normalmente só há um paradigma, enquanto na minha posição múltiplas estratégias ou múltiplos paradigmas podem funcionar simultaneamente, sendo necessário escolher entre eles. E esta escolha envolve, pelo menos em parte, referências a valores sociais. Aí, de novo, minha posição difere da de Kuhn. Meu modelo de racionalidade envolve sempre a relação entre a investigação científica, incluindo a investigação experimental, por um lado, e os valores, interesses e práticas, de outro. Não podemos separar considerações de valores – além dos valores cognitivos – do domínio da racionalidade científica.

A noção de que a ciência é o único modelo de racionalidade é, para mim, uma posição paradoxal, porque ela sempre teve uma ligação muito estreita com algum tipo de metafísica – no século XVII e XVIII, por exemplo, com posições materialistas e mecanicistas. Mas sendo metafísicas, estas posições só podem ser adotadas como pressuposições. E se podemos adotar uma pressuposição, podemos em princípio adotar outra diferente.

Quais seriam os pressupostos para se pensar estas ciências alternativas?
Vou usar mais uma vez o exemplo de agricultura. Na moderna biotecnologia, estudamos as estruturas moleculares das substâncias, e a partir daí podemos modificá-las. Este tipo de modelo só tem interesse em certos aspectos, por exemplo, na resistência a pesticidas das plantas geradas por certo tipo de sementes. Mas uma semente não é simplesmente um objeto bioquímico, é também um alimento dentro de um agroecossistema e fonte de possibilidades não só de alta produção de certa cultura, mas também uma fonte de biodiversidade, de sustentabilidade ecológica etc. Quando se quer identificar as possibilidades da semente, freqüentemente se considera que o único tipo de pesquisa possível é dentro da perspectiva do modelo molecular da bioquímica, porque se considera que não é possível investigar de uma maneira sistemática, empiricamente, as possibilidades dentro de perspectivas ecológicas. Temos uma situação em que a noção de um modelo da racionalidade científica obscurece, de fato, uma escolha.

Uma crítica muito contundente que vem sendo feita à ciência no século XX é que ela se transformou de um instrumento de emancipação humana em um instrumento de fortalecimento da dominação sobre o ser humano. Sua abordagem na verdade não procura resgatar essa idéia da ciência como fonte de possibilidades de desenvolvimento humano?
A noção do século XIX, de que a ciência seria um instrumento de libertação é um pouco exagerada, como o é também a noção do século XX, que a vê como um instrumento de dominação. Há um elemento muito importante, na verdade, especialmente da perspectiva do século XX, que é o fato de a Segunda Guerra Mundial ter utilizado a ciência como instrumento de projetos militares e um instrumento muito, muito destrutivo. As ciências do tipo que eu chamo de materialista têm essas possibilidades de uso, mas também produzem coisas como a medicina moderna, a televisão, o computador.

O problema é que quando a ciência segue uma abordagem de pesquisa única isso exclui a investigação de outros tipos de possibilidade. Por exemplo, na agricultura isso envolve a exclusão do desenvolvimento de perspectivas como a da agroecologia. Os métodos agroecológicos poderiam aumentar a produção de alimentos, mas essas possibilidades não foram desenvolvidas em conseqüência da Revolução Verde dos anos 60, que produz mais alimentos, mas também a destruição ecológica e social, o aumento da dependência das grandes empresas e de outros países etc.

Há uma lógica que estava presente na Revolução Verde e está agora também na revolução biotecnológica que diz: essa é a única maneira de produzir comida para alimentar o mundo. "Esta é a única maneira" é sempre parte da justificação desses métodos. Robert Shapiro, o presidente da Monsanto Corporation, sempre fala, por exemplo, que "não há outra maneira de alimentar o mundo". Isso é uma proposição aparentemente empírica, mas os métodos da biotecnologia não podem fornecer evidência de que não há outra maneira de alimentar o mundo. Talvez esses métodos possam produzir uma evidência que os métodos biotecnológicos podem produzir muito mais comida. Talvez. Mas não podem mostrar que não há outra maneira, por exemplo, por meio da tecnologia agroecológica. Para investigar esta proposição empiricamente precisamos, todavia, de investigações dentro de mais de uma abordagem. A legitimação da biotecnologia na agricultura é, freqüentemente, simplesmente uma legitimação ideológica, baseada numa proposição sem evidência. Se não permitirmos múltiplas abordagens, proposições desse tipo sempre serão ideológicas e não proposições defendidas em termos de evidência.

A afirmação do presidente da Monsanto pode ser entendida também como se estivesse dizendo "bom, o ônus da prova está com quem discorda, quem afirma que existem alternativas". Nesse sentido, que evidências existem de que as práticas agroecológicas são alternativas viáveis à biotecnologia?
Nós não temos evidência de que os métodos agroecológicos podem produzir alimentos para o mundo todo, mas temos evidência de que eles podem alimentar muita gente, que neste momento está passando fome. O problema neste momento é que muito mais recursos para pesquisas são envolvidos em investigação do tipo materialista em vez de outro tipo. A falta de evidência pode decorrer ou de os métodos serem insuficientes, ou da falta de recursos para fazer mais pesquisas.

Na análise das possibilidades que estão presentes no desenvolvimento da ciência, há um elemento central: a produção da ciência cada vez mais se dá em função das necessidades da economia capitalista. Isso se reforçou nos últimos vinte anos com o processo de globalização, que impõe a busca do lucro e a pesquisa desenvolvida pelas grandes corporações como o padrão de ciência, enfraquecendo cada vez mais as possibilidades alternativas. Há perspectivas de reverter essa situação?
Esta é uma questão difícil. Acho que o redirecionamento das pesquisas é muito importante e é também a conseqüência de um tipo de mudança nas instituições da pesquisa. Por exemplo, agora as grandes empresas freqüentemente têm enormes laboratórios próprios. Muitas pesquisas são diretamente realizadas pelas empresas. Mas freqüentemente essas empresas patrocinam as pesquisas dentro das universidades. Isso é parte da reforma da universidade, que força os pesquisadores a obterem recursos diretamente das empresas. Mas, por outro lado, temos muitas universidades e muitas ONGs com interesses diferentes. Há alguma contestação a essa maneira de conduzir a pesquisa científica.

Em termos de países, talvez a China seja uma exceção, não sei ao certo. Recentemente, creio que na revista inglesa Nature, saiu uma reportagem de um grande experimento conduzido na China com respeito a métodos agroecológicos. Foi muito interessante, porque uma crítica à agroecologia é que ela pode produzir comida em quantidade pequena para pequenas comunidades mas não, por exemplo, produzir alimentação suficiente para uma grande cidade como São Paulo. Nesse experimento na China eles usaram uma grande área e técnicas muito simples de agroecologia, isto é, de plantar duas variedades de uma cultura, lado a lado, fila por fila, em um campo. Isso ocorreu em uma área com um problema muito comum, um fungo que destrói as colheitas e, portanto, exigiria o uso de muitos defensivos químicos contra o fungo. Mas é interessante que, em dois anos, com esta técnica muito simples de plantação de variedades diferentes, o fungo deixou de ser um problema e a produção da comida foi quase duplicada. Isso é uma demonstração de que métodos alternativos muito simples têm possibilidade de aumentar muito a produção. Acho que há algum espaço para o desenvolvimento de alternativas, embora não tenha grandes esperanças neste sentido.

Por outro lado, nos anos recentes, o interesse do consumidor em comprar comidas orgânicas está crescendo muito. Isso não é conseqüência da propaganda, de anúncios na televisão ou coisas assim, é uma conseqüência de um certo tipo de falta de confiança no agrobusiness em geral. É uma coisa ainda limitada, mas pelo menos nos Estados Unidos muitos produtores pequenos agora podem produzir para o mercado orgânico. Acho que mesmo aqui no Brasil é muito mais fácil obter comidas orgânicas do que há quatro anos. Há forças no mercado que sugerem a necessidade de alternativas. Nos Estados Unidos foi introduzida uma nova definição de comida orgânica recentemente, que exclui qualquer uso de transgênicos.

Finalmente, os sintomas de possibilidades alternativas surgem também com respeito à medicina. Se por um lado as biotecnologias e outras novas tecnologias estão muito presentes, por outro sente-se no público em geral uma necessidade não simplesmente de curar doenças, mas de preveni-las. E isso é precisamente o tipo de conhecimento em que a bioquímica e os fatores do meio ambiente estão muito ligados. Existem, assim, alguns lugares que são fontes potenciais de abordagens alternativas.

Na medida em que o modelo dominante de ciência é o que visa o controle, essa interpenetração crescente entre as grandes empresas e a pesquisa científica tende a crescer...
Acho que sim, mas as possibilidades alternativas também podem crescer. Há, porém, o problema de recursos para a investigação. E também, como uma dificuldade para superar este problema, a atmosfera criada pela predominância da idéia de que só a ciência materialista é ciência genuína. Nas discussões nos Estados Unidos freqüentemente as contribuições da agroecologia são simplesmente ignoradas, as pessoas dizem que não é ciência, é um tipo de conhecimento alternativo, mas não ciência. Dentro desta atmosfera as coisas tornam-se difíceis. Mas há muitas organizações não-governamentais que procuram desenvolvimentos alternativos.

Para que essas possibilidades floresçam é necessário, portanto, uma mudança nessa atmosfera e apoios institucionais. No caso, medidas em que esse apoio teria que vir não só das organizações não-governamentais, mas principalmente de investimento de governos e universidades. Isso implica uma reversão do curso que está tendo hoje a política científica.
Sim. Envolve uma mudança na direção, mas a política científica também não é uma coisa completamente unificada. Por exemplo, neste momento eu tenho uma bolsa da National Science Foundation dos Estados Unidos para escrever sobre métodos alternativos. A National Science Foundation é o centro da política científica nos Estados Unidos e dentro dela há quem brigue por algumas mudanças. Mas acho que essas alternativas precisam ser desenvolvidas nas universidades e em organizações não-governamentais em ligações com o movimento popular. Por outro, mais uma vez utilizando o exemplo da agricultura, creio que os grupos camponeses têm interesse no desenvolvimento de métodos agroecológicos, e por essa razão as organizações não-governamentais podem fornecer recursos para estas investigações. Mas esses métodos não podem tornar-se os métodos dominantes sem uma mudança fundamental na estrutura sócio-econômica.

Como você vê as transformações que estão ocorrendo hoje nos direitos de propriedade intelectual?
Eu tenho algumas idéias sobre isso. É importante observar que é possível obter patentes para sementes transgênicas, mas não para sementes não-transgênicas. Uma resposta freqüentemente dada é que as sementes transgênicas incorporam conhecimento científico. Mas o desenvolvimento delas é feito a partir de sementes tradicionais, que também incorporam conhecimento – o conhecimento agroecológico, que também é bem testado empiricamente, não havendo assim razão para não ser considerado científico. Não há portanto justificativa para que as sementes transgênicas sejam patenteáveis e as sementes tradicionais não. O único motivo para isso é que as transgênicas são parte da lógica do capitalismo, e as tradicionais não são.

Em segundo lugar, recentemente um grupo dentro das Nações Unidas, a Subcomissão sobre Direitos Humanos, escreveu um documento apontando a existência de um conflito entre a concepção de propriedade intelectual da Organização Mundial de Comércio e os direitos humanos aceitos pelas Nações Unidas. A instituição da propriedade intelectual como um direito é parte de um processo de mercantilização completa da produção de alimentos, mas os documentos sobre direitos humanos estabelecem que todo mundo tem direito à alimentação, independente de sua condição econômica. A partir da constatação desta contradição no acordo, está se pedindo à Organização Mundial de Comércio que revise o acordo sobre a propriedade intelectual. Isso é um desenvolvimento muito interessante, que fornece uma base legal para a resistência, estabelecendo que os direitos humanos são mais importantes que os acordos comerciais. Claro que isso não vai resolver o problema, mas fornece uma base para argumentação.

Um dos componentes do debate contemporâneo sobre a política científica são as posições pós-modernas que incluem não só os movimentos ecológicos e de camponeses, mas também, em alguns países, grupos feministas. Como você vê a crítica pós-moderna à ciência?
Acho que há ambigüidades dentro da crítica pós-moderna e das tendências decorrentes. Existe uma tendência chamada construcionismo social, que sustenta que a única maneira de avaliar os resultados científicos é em termos de valores sociais, e como não aceitam a distinção entre valor social e valor cognitivo, afirmam que não há uma distinção profunda entre ciência e ideologia, ciência é sempre parte de uma posição ideológica. Mas temos outra tendência dentro da crítica pós-moderna, que trato em detalhes no meu último livro em inglês, a das críticas feministas à ciência contemporânea. Eu costumo falar de estratégias, por exemplo, estratégia materialista e estratégia de agroecologia, mas podemos falar também de estratégias feministas.

A lógica é exatamente a mesma: as feministas têm valores e objetivos, produzir a igualdade de mulheres e homens, e questionam que tipo de conhecimento nós precisamos para concretizar esse projeto. Elas fazem críticas muito interessantes, especialmente em psicologia e psicobiologia, introduzindo novas abordagens nesse domínio, a partir de sua estratégia. Para mim é muito importante manter a distinção entre valor social e valor cognitivo, mas aceita essa distinção, pode existir uma abordagem feminista, uma abordagem agroecológica, uma abordagem racista se você quiser. Algumas feministas falam de ciência feminista; eu prefiro dizer que se trata de uma abordagem feminista da ciência, não de uma ciência completamente diferente. Mas geralmente, quando discutimos essas questões, as diferenças tendem a ser apenas terminológicas.

O individualismo é outra característica da sociedade moderna estreitamente ligado ao desenvolvimento do mercado. Os valores ligados à emancipação humana trabalham com uma lógica de solidariedade, que não se opõe ao desenvolvimento das potencialidades individuais, mas articula isso de uma forma não-individualista. Que tipo de valor social é necessário para se construir uma ciência comprometida com a emancipação?
Acho importante sempre falarmos dos dois valores, da autonomia e da solidariedade, fazendo a interligação entre eles. Uma pessoa é parte de uma comunidade e parte de uma ordem social, mas também é um centro de ação. Sem a atividade de uma pessoa faltam as condições para a manutenção da comunidade e portanto para solidariedade num sentido importante. Esse valor é fundamental e quero aqui distinguir entre duas concepções sobre a vida: uma concepção de indivíduo que usa a inteligência para alcançar as coisas, para exercer controle sobre elas no meio ambiente, e dessa maneira age autonomamente. Esse é o modelo dominante no sistema capitalista, é uma concepção muito importante no mundo moderno. Mas há outra concepção em que todo mundo participa da instauração do mundo, da criação da história, em que todo mundo é um ser humano, em princípio, no mesmo nível, e a solidariedade é uma condição necessária para a participação de todos neste processo.

Existe, no mundo contemporâneo, um conflito entre essas duas concepções da vida, com o sistema capitalista dominante reforçando a primeira concepção. A segunda, então, está tipicamente presente só em grupos marginalizados, exatamente porque esses grupos sofrem as conseqüências das estruturas criadas pelo primeiro grupo. A solidariedade é alimentada por grupos marginalizados, porque esses grupos têm interesses fundamentais na outra concepção da vida. Para desenvolver valores alternativos como a solidariedade, é necessária a participação numa diversidade de projetos comuns. É preciso ligar-se aos grupos alternativos, marginalizados, populares. E se a solidariedade envolve o desenvolvimento da autonomia, isso implica a necessidade da diversidade, porque é a diversidade cultural e social que possibilita a solidariedade.

Como é que fica a produção de conhecimento a partir desses valores num país como o Brasil, já que também aqui há uma tendência de imposição dos padrões neoliberais na pesquisa científica?
Essa é uma pergunta que eu posso fazer a vocês, porque eu não estou morando na periferia, estou aqui para aprender e falar com vocês sobre isso. Mas, de maneira geral, acho necessário que os pesquisadores desenvolvam contatos profundos com os grupos marginalizados. No mundo em que vivemos, eles não têm condições de conduzir programas de investigação sozinhos. Mas, por outro lado, sem contatos com esses grupos, não se pode entender a realidade da vida das pessoas. Creio que é necessário pensar como criar instituições dentro da universidade, que envolvam a participação de pessoas marginalizadas também para fazer o contato entre os dois grupos. De maneira geral, acho que sem mudanças na universidade as condições para a pesquisa alternativa não vão ser criadas. E talvez as possibilidades para isso sejam maiores em países como o Brasil e a China.

Isso implica que os pesquisadores e cientistas do Terceiro Mundo assumam que há duas lógicas distintas de pesquisa científica e explicitem o compromisso com essa lógica de produção de alternativas...
Acho que sim. Creio que é parte do ideal da universidade obter conhecimentos úteis para os vários grupos sociais. Mas sem o desenvolvimento de práticas alternativas, não vamos criar um tipo de conhecimento relevante. Em certo sentido é muito fácil fazer críticas à situação contemporânea; o difícil é criar programas que gerem outro tipo de conhecimentos, que possam informar desenvolvimentos alternativos. E essa é uma necessidade colocada para a universidade de hoje.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

Marcos Barbosa de Oliveira é filósofo e professor da Faculdade de de Educação da USP.