Economia

Apesar das agências internacionais avaliarem a economia brasileira como de altíssimo risco, há visões otimistas a respeito da retomada do crescimento, que podem ser classificadas como panglossiana produtivista e cambiotimista. Entretanto, qualquer reativação econômica de curto ou médio prazo é insustentável a longo prazo, tendo em vista os desequilíbrios da economia, que se agravam com as políticas de FHC

Não é a primeira vez que surge um superávit de otimismo no Brasil, país dos déficits múltiplos – de emprego, renda, recursos públicos, recursos externos, saúde, educação, segurança, institucionalidade, moralidade, cidadania etc. Este superávit de otimismo está restrito à reativação econômica, e também é facilmente superado pelo déficit das condições objetivas para o crescimento econômico. Estamos diante de mais um miniciclo de otimismo.

O Brasil é, tecnicamente, um forte candidato a uma grave crise econômica ou, então, ao aprofundamento da atual trajetória de instabilidade e desempenho medíocre da economia. Não é por outra razão que todas as agências de risco mantêm o país nos níveis mais baixos de avaliação. A reprovação do Brasil refere-se, naturalmente, a indicadores do passado recente. A eventual melhora dos indicadores no futuro próximo significará uma reavaliação. De fato, algumas agências de risco já indicaram um aumento da nota brasileira. É bem verdade que esta melhora é marginal – no caso da Standard & Poor’s, por exemplo, a atual nota do Brasil (3,0) pode aumentar (na melhor das hipóteses) para uma nota (3,5) igualmente medíocre. Isto já aconteceu com a revisão de notas realizada pela agência Moody’s em outubro de 2000, pois o Brasil passou da nota B2 para B1, o que eqüivale a passar de uma nota 3,5 para 4,0. Na avaliação desta agência, o país oferece uma segurança financeira débil e há uma garantia pequena de pagamento das obrigações no futuro. A economia brasileira continuará sendo considerada como uma economia de altíssimo risco no futuro próximo.

Esta percepção de alto risco para o Brasil a curto e médio prazos é expressa claramente na avaliação da Economist Intelligence Unit (EIU) de Londres1. As estimativas de risco para 2001 realizadas pela EIU em setembro de 2000 colocam o Brasil como o sétimo país de maior risco. A percepção de risco para o Brasil em 2001 é muito elevada, somente sendo superada pelas situações de Mianmá, Zimbabwe, Rússia, Paquistão, Indonésia e Nigéria. Todos estes países estão envolvidos em sérias crises que ultrapassam, inclusive, a esfera econômica.

Os indicadores das agências internacionais mostram, tecnicamente, que o Brasil é um país de alto risco. Em todos os casos o Brasil de FHC é reprovado pelos avaliadores internacionais. Ademais, o país tem se defrontado com enormes incertezas, que muito provavelmente não devem se alterar de forma significativa a curto e médio prazos (pelo menos, até 2001-2002) e que tendem, inclusive, a se agravar se forem mantidos os traços básicos do modelo atual. Neste sentido, a trajetória mais provável de curto e médio prazos é a que tem sido observada nos últimos anos – instabilidade e crise.

Mudança na conjuntura

Há sérios limites ao desempenho macroeconômico no curto e médio prazos. Isto decorre da própria natureza do processo de reativação econômica a partir do final de 1999. Esta reativação seguiu o seguinte processo: melhora da oferta de capitais externos (recursos de organismos financeiros internacionais e investimento externo direto), afrouxamento da política monetária (baixa da taxa de juros e maior oferta de crédito), flexibilização do arrocho fiscal (menores metas de superávit primário). Também houve (e há) um imperativo político. A crescente perda de credibilidade do governo e a pressão social provocaram o acuamento do governo FHC após a eclosão da crise cambial no início de 1999. No contexto de perda de legitimidade do Estado, voltou-se a discutir o tema da governabilidade. Este imperativo político levou o governo a afrouxar as políticas monetária e fiscal.

A redução da restrição das contas externas foi facilitada pelo novo nível de taxa de câmbio, bem como pela nova orientação dada à política cambial. Contrariamente a que muitos analistas argumentam, a mudança de regime cambial não foi o fator determinante. Na realidade, passou-se de um regime de câmbio administrado (centrado no controle da inflação) para um regime de câmbio mais flexível, orientado para o ajuste do balanço de pagamentos. Obviamente, passou-se de uma situação de controle (por meio de bandas) para uma situação de monitoramento e intervenções pontuais no mercado cambial. No entanto, fundamentais foram a modificação na orientação da política cambial e o novo patamar de preço (taxa de câmbio). Isto poderia ter ocorrido no regime de câmbio com flutuação (ativamente) administrada.

Independentemente do regime cambial, a mudança de preços relativos implicou estímulo às exportações e desincentivo às importações e, portanto, tem contribuído para o ajuste da balança comercial de bens e serviços (excluindo pagamentos de fatores – juros e, em certa medida, lucros), bem como para a expansão da atividade econômica interna. No entanto, isto não rompe com o mecanismo tradicional de crise cambial.

A próxima crise cambial envolverá, inicialmente, a pressão crescente sobre a taxa de câmbio, em seguida, o esgotamento das reservas internacionais e, por último, uma depreciação cambial abrupta. Este padrão de eclosão de crise cambial, em um regime de câmbio de flutuação monitorada (de fato, cum intervenções) não é significativamente distinto do padrão do regime de câmbio de flutuação administrada. Para conter os efeitos sobre o nível geral de preços e sobre as expectativas (de mais depreciação cambial e aumento da taxa de juros), o governo repetirá o padrão de ajuste do regime anterior. O governo aumentará, efetivamente, a taxa de juros e promoverá uma política contracionista. Desta forma, interrompe-se o eventual miniciclo de crescimento, que tem na disponibilidade de recursos externos o seu determinante primário.

Na origem do atual processo de revitalização está a melhora das condições de acesso aos recursos externos. Este fato é simples e, até mesmo óbvio, se levarmos em conta que a vulnerabilidade externa da economia brasileira é o principal elemento estrutural da atual trajetória de instabilidade e crise do país. Com a oferta favorável de recursos externos, o país retomará o crescimento (de fôlego curto), ainda que marcado por um desempenho medíocre e cumulativo de desequilíbrios, como vem ocorrendo ao longo do governo FHC. Por outro lado, com a contração da oferta de recursos externos o país enfrentará uma crise cambial e entrará em crise.

Não obstante, há visões otimistas a respeito da economia brasileira a curto e médio prazos. As novas visões a respeito da retomada do crescimento podem ser classificadas em dois grupos básicos: o panglossiano produtivista e o cambiotimista.

Panglossiano produtivista
A primeira visão otimista parte da crença de que a economia brasileira atingiu um estágio superior e, portanto, está preparada para um "crescimento vigoroso, virtuoso e sustentável"2. O silogismo produtivista é simples: (i) a abertura econômica brasileira permitiu um aumento extraordinário da produtividade industrial; (ii) "a chave para o crescimento sustentado está na elevação constante da produtividade"; e, portanto, (iii) a economia brasileira está preparada para um processo de crescimento rápido e sustentado. Segundo o panglossiano produtivista, esse processo depende do aumento da taxa de poupança e dos investimentos em capital humano a longo prazo!

O crescimento econômico é um problema unidirecionado para a expansão da oferta potencial de bens e serviços da economia, na visão dos panglossianos produtivistas. Ocorre, que nem os conservadores (liberais) mais desleixados conseguem se livrar da tesoura marshaliana: oferta x demanda. Os panglossianos produtivistas parecem acreditar que um aparelho produtivo enxuto (que não é o caso da economia brasileira) garante um crescimento rápido e sustentado. Vale lembrar que, em economias mais avançadas com aparelhos produtivos enxutos, a insuficiência de demanda agregada é um fator determinante de crises econômicas3. Ademais, se aparelho produtivo "enxuto" fosse condição necessária e suficiente para o crescimento econômico, o Japão não estaria mergulhado na estagnação desde o início dos anos 90.

A visão panglossiana produtivista também é frágil quando tenta incorporar a relação entre oferta e demanda. Segundo esta visão, a indústria brasileira "estaria em fase de ‘rendimentos crescentes’" e, portanto, "o que se sinaliza é a possibilidade de que no curto e médio prazos a relação incremental capital-produto brasileira venha a ser inferior à que se observou no passado recente. Bastaria uma elevação apenas razoável no esforço de poupança/investimento, relativamente ao período 1990-95, para conseguir-se uma série de avanços fundamentais na supressão de pontos de estrangulamento físicos, na melhoria da competitividade sistêmica e na geração de divisas estrangeiras.4" Este argumento só faz sentido na hipótese de uma significativa capacidade ociosa na indústria brasileira. A realidade parece ser exatamente o contrário, pois já se observava em meados de 2000, no início do processo de reativação, o esgotamento de capacidade ociosa em vários setores5. Inclusive, a hipótese de pressão da demanda interna, que desvia produtos de exportação para o mercado interno, já começava se manifestar em vários setores (em geral, papel e celulose) e, portanto, ter efeitos negativos sobre a balança comercial, já no início da reativação econômica.

Da mesma forma que velocidade não significa dinamismo, aumento de produtividade não implica eficiência dinâmica. Crescimento do PIB de 4% no Brasil está longe de significar dinamismo econômico e, muito menos, desenvolvimento. Aumentar a produtividade do fator trabalho no contexto de queda da taxa de investimento, aumento do desemprego, estagnação econômica, desnacionalização e retrocesso do sistema nacional de inovações é sintoma de ineficiência dinâmica. Este é, precisamente, o caso da economia brasileira em geral e, da indústria brasileira, em particular. Ineficiência dinâmica é um eufemismo para o grave processo de desmonte do aparelho produtivo e de sua adaptação regressiva ao processo de abertura 6.

Os panglossianos produtivistas não conseguem negar que a abertura econômica provocou desequilíbrios sérios no balanço de pagamentos do Brasil. No entanto, acham que isto é uma conseqüência natural da abertura externa. Como resultado, os panglossianos prontificam-se a "esperar Godot" – isto é, o crescimento da produtividade implicaria um aumento da competitividade internacional dos produtos brasileiros. Segundo esta visão, as exportações brasileiras teriam uma expansão extraordinária e, portanto, haveria uma redução das restrições de balanço de pagamentos. Naturalmente, os panglossianos produtivistas não conseguem explicar por que o aumento da produtividade no Brasil tem estado acompanhado de uma queda da competitividade internacional do país no mercado de manufaturados, mesmo quando há um enorme aumento de produtividade superior à valorização cambial (como ocorreu em 1995-98) – conforme assinalavam os defensores da antiga política cambial. A participação do Brasil no mercado internacional de produtos manufaturados reduziu-se de 0,76% em 1990-94 para 0,68% em 1995-98. A fragilidade da estrutura produtiva brasileira tem significado, de fato, uma inserção regressiva do país no sistema mundial de comércio7.

Os efeitos desestruturantes da abertura econômica são totalmente ignorados pelos panglossianos produtivistas. De fato, o país tem experimentado um processo de adaptação regressiva do sistema produtivo. O indicador mais evidente deste processo é a tendência de queda da taxa de crescimento da renda, bem como da taxa de investimento da economia brasileira a partir de 1995. Em uma economia que "desce a ladeira" – o PIB per capita brasileiro cresceu 0,1% anualmente no período 1997-99 – as empresas tendem a estratégias reativas e adaptativas. A lógica microeconômica de reação das empresas tem sido "acelerar a terceirização, abandonar linhas de produtos, fechar unidades, racionalizar a produção, importar máquinas e equipamentos, buscar parcerias, fusões ou transferência de controle acionário e reduzir custos, sobretudo da mão-de-obra"8.

Cambiotimista
A fábula é simples: corrigida a valorização cambial, o Brasil está pronto para um crescimento econômico rápido. Naturalmente, essa visão ignora o desequilíbrio de estoque causado pelo passivo externo da economia brasileira e se concentra nos desequilíbrios de fluxos de comércio exterior. A redução dos desequilíbrios externos deve estar centrada no aumento dos fluxos de exportação. Os cambiotimistas também têm um viés pelo lado da oferta, mas se diferenciam dos panglossianos produtivistas ao introduzir explicitamente a dimensão macroeconômica.

Segundo a visão cambiotimista, "o país se encontra, pela primeira vez em muito tempo, relativamente livre da pressão sufocante dos problemas de curto prazo". Segue o argumento, "o regime de câmbio flutuante contribuiu para aumentar a resiliência da economia. Mais que isto, a superação do câmbio fixo (sic) alimentou a percepção de que o país voltava a contar com algum grau de autonomia na determinação da sua sorte"9>. Os cambiotimistas são em grande número e tocam a mesma música, com pequenas variações de melodia. Mais um exemplo: "Desde a liberalização do câmbio, tivemos uma mudança radical nos rumos e na condução da política econômica. Livre da armadilha cambial, o Brasil vem, aos poucos, recuperando as condições para retomar o crescimento"10.

Na visão dos cambiotimistas a política cambial, centrada no ajuste do balanço de pagamentos, reduziria a necessidade de políticas de contração de gastos (recessão) para enfrentar o desequilíbrio das contas externas. A flutuação mais flexível (leia-se depreciação cambial) permitiria reduções firmes (e, supõe-se, sustentáveis) da taxa de juros e expansões do crédito interno. O trade-off relativo à inflação desapareceria na medida em que "pressão competitiva, aliás, presentemente não falta".

Os equívocos dos cambiotimistas são evidentes. Tratando-se da oferta, se por um lado, eles ressaltam os ganhos de produtividade, por outro, problemas sérios como a falta de competitividade, os gargalos de oferta, e buracos na cadeia produtiva perdem importância frente a um câmbio realista. Curiosamente, os cambiotimistas esquecem que depreciação cambial (provavelmente, acompanhada de desvalorização real efetiva) implica, não em mais pressão competitiva e, sim, menos pressão competitiva. De fato, mudanças de preços relativos (protecionismo) podem ocorrer com um aumento de 10 pontos de percentagem das tarifas (ou o equivalente ad valorem de medidas não-tarifárias) ou, então, com desvalorização de 10%. Ademais, o Brasil tem experimentado um processo extraordinário de centralização do capital (onda de fusões e aquisições), acompanhado de desnacionalização, que, muito provavelmente, está reduzindo a rivalidade entre as empresas.

Deve-se notar, ainda, que os cambiotimistas deixam de lado um fato importante: a redução dos multiplicadores de comércio exterior da economia brasileira. Isto significa que com o aumento significativo da propensão a importar e o crescimento menos expressivo do coeficiente de exportação, os multiplicadores se reduziram nos últimos anos comparativamente aos primeiros anos da década de 90 e aos anos 80. Esta conclusão se mantém quando se supõe que não houve alteração significativa na taxa de poupança privada ou, então, que a redução desta taxa foi compensada pelo aumento da carga tributária. Isto significa que aumentos de exportação, impulsionados por depreciação cambial, tendem a provocar efeitos menores sobre o nível de renda.

Horizonte 2002

Há um imperativo político que não pode ser negligenciado na análise da conjuntura econômica brasileira. Este imperativo político é tão mais determinante quanto mais rápido avança o processo de "africanização" do Brasil. O Brasil se assemelha, cada vez mais, aos países da África subsaariana. Há cerca de três décadas estes países estão mergulhados em crise sistêmica. A partir de 1995 FHC subsaariza o Brasil na medida em que se observa no país a ocorrência simultânea de cinco processos: desestabilização macroeconômica (crescimento medíocre da renda per capita de 0,8% ao ano, desemprego elevado, degradação das contas públicas, déficit crônico do balanço de pagamentos); desmonte do aparelho produtivo (taxas decrescentes e baixas de investimento, desnacionalização, desaparecimento do sistema nacional de inovações); esgarçamento do tecido social (miséria, pobreza, violência, aumento do consumo de drogas, tensão e desigualdade); deterioração política e institucional (meios de comunicação, polícia, Forças Armadas, Judiciário); e perda de governança (incompetência, má gestão, perda de legitimidade e corrupção).

É verdade que a reativação de curto e médio prazos da economia brasileira (2001-2002) é possível e tem, até mesmo, uma razoável probabilidade de ocorrência, na hipótese de manutenção das condições favoráveis de oferta de recursos externos. Por outro lado, também é verdade que há uma probabilidade, igualmente razoável, de eclosão de mais uma séria crise econômica, com as devidas implicações sociais, políticas e institucionais. Neste sentido, os fatores determinantes são a conjuntura internacional e as expectativas dos agentes econômicos internacionais quanto à situação interna (econômica, política; social e institucional) no Brasil.

Há sérias restrições ao crescimento a curto e médio prazos, além da oferta de capital externo para financiar o desequilibro estrutural do balanço de pagamentos do país. Dentre estas restrições cabe mencionar o esgotamento da capacidade ociosa em alguns segmentos, a dificuldade de geração de superávites na balança comercial, risco de gargalo na oferta de energia, preço internacional do petróleo, juros internacionais, preços da commodities exportadas pelo país, limites do processo de privatização, restrições à redução do arrocho fiscal como decorrência dos desequilíbrios de estoque (dívidas externa e interna), e o nível baixo da massa salarial (a média do primeiro semestre de 2000 continuava inferior às médias anuais dos anos 1996-98).

Qualquer reativação econômica de curto e médio prazos é insustentável no longo prazo. Isto resulta dos extraordinários obstáculos e desequilíbrios (de estoque e de fluxos) existentes na economia brasileira, que tendem a se agravar com a manutenção do atual conjunto de políticas do governo FHC.

Não obstante, cabe destacar que há, de fato, uma "fadiga de ajuste" no Brasil, após duas décadas de instabilidade e crise. O eufemismo "fadiga de ajuste" – usado por organismos internacionais – significa, na realidade, que o povo está cansado de tanto sofrimento em decorrência, principalmente, do fracasso do projeto neoliberal do governo FHC. Neste sentido, parece haver um imperativo psicológico – uma ânsia de otimismo e de esperança. Sem dúvida alguma, isto abre novas possibilidades para um projeto que se coloque radicalmente contra o atual modelo, principalmente, no contexto da administração pública (municípios e estados) e do processo eleitoral de 2002.

Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.