Internacional

A intensificação dos ataques israelenses contra os palestinos coloca em xeque as negociações de paz no Oriente Médio. O processo inaugurado com os acordos de Oslo parece fadado ao fracasso. As ruas de Gaza e da Cisjordânia rejeitam a hegemonia sionista na região. O Estado de Israel responde com uma política cada vez mais agressiva e expansionista

Os momentos finais de Mohammed Jamal al Durah foram registrados em 30 de setembro pelas câmaras de TV. O menino de doze anos, arrastando-se pelo chão, buscava proteção nos braços do pai. Balas disparadas pelo exército israelense voavam sobre suas cabeças. Uma delas acabou com a vida de Mohammed, a sangue frio. As tropas de Israel tinham ordem para liquidar com os protestos palestinos iniciados dois dias antes. A sanha repressiva não teve limites. A imagem da criança assassinada ficará como uma das cenas mais cruéis do século que se encerra.

Os conflitos tiveram início após uma visita de Ariel Sharon, líder do partido conservador Likud, o maior da oposição, à Esplanada das Mesquitas em Jerusalém, um dos locais mais sagrados para os muçulmanos. O veterano general, acompanhado por uma forte escolta militar, quis dar uma demonstração de que qualquer cidadão israelense poderia andar por qualquer parte dos territórios reivindicados pelos palestinos. Sua arrogância teve como troco uma onda de revolta. A polícia respondeu com brutalidade, levando sete manifestantes à morte em apenas duas horas. A resistência palestina – armada com paus, pedras e algumas poucas armas de fogo – não esmoreceu. No final de novembro, os cadáveres já se contavam às centenas.

O governo de Tel-Aviv, de hegemonia trabalhista, poderia ter evitado a tragédia. Bastava proibir a movimentação de Sharon. Mas a lógica da direção sionista, em meio às tensas conversações de paz dos últimos meses, impelia para um gesto de força. Melhor ainda que esse passo fosse dançado por um adversário. O cálculo mostrou-se perfeito. Sharon é um dos personagens mais odiados pelos árabes. Quando era ministro da Defesa, em 1982, conduziu o massacre de Sabra e Chatila, no sul do Líbano. Mais de 2 mil palestinos foram abatidos por milicianos treinados e financiados por Israel. Provavelmente não estava nos planos de Ehud Barak, no entanto, a transformação de um ato isolado em uma cadeia de acontecimentos que levasse ao renascimento da Intifada. Mas os palestinos, como ocorreu entre 1987 e 1993, voltaram à insurgência.

Talvez os rebeldes não amedrontem, por ora, o poderoso exército israelense. O problema, porém, é que acertaram o coração da política impulsionada pelos trabalhistas desde o início da década. Sob os corpos que caem estão os acordos de paz estabelecidos a partir das negociações de Oslo em 1993. O plano israelense de pacificar a região por meio de concessões territoriais lentas e limitadas esbarrou novamente na fúria palestina. Apesar da fartura de recursos bélicos e financeiros, Israel viu-se diante de escolhas temíveis. Se evitasse uma reação dura contra a revolta, corria o risco de ver seu pequeno império assolado por um levante de proporções cada vez mais amplas e incontroláveis. Rejeitou esse caminho. O envelope aberto por Barak foi o que continha um plano baseado no aprofundamento das ações repressivas e na guerra contra o povo palestino. Ainda que às custas de levar o país ao mesmo cenário que forçou a mudança tática realizada há quase dez anos.

No final dos anos 80, tanto os dirigentes sionistas como os palestinos enfrentavam situações bastante incômodas. A OLP, acossada pelo desmantelamento do sistema socialista, perdia sua principal fonte de armas e dinheiro. Os países árabes, atravessados por profundas divisões, demonstravam que sacrificariam a causa palestina se esse fosse o preço para um novo espaço na ordem pós-soviética. A maioria estava disposta a atenuar suas hostilidades contra Israel para estabelecer relações diplomáticas e comerciais mais satisfatórias com os EUA. A baixa constante no preço do petróleo empurrava os países produtores a uma peleja sem tréguas para ampliar os mercados compradores. Apenas os governos que não puderam ou não quiseram um lugar nesse trem, por motivos políticos ou econômicos, sustentavam uma orientação nacionalista e antiamericana – com o objetivo de manter o braço de ferro com as potências ocidentais e defender sua margem de lucro na exportação petrolífera. O caso mais emblemático desse grupo resistente foi o Iraque de Saddam Hussein. A ocupação do Kuwait, em agosto de 90, representou uma medida extrema para impedir o realinhamento da região ao redor dos interesses de Washington, em um movimento pilotado principalmente pela Arábia Saudita. Yasser Arafat, o chefe histórico da resistência palestina, apostou suas fichas no esforço de guerra iraquiano. Quando os americanos e seus aliados derrotaram as tropas de Bagdá, a OLP estava a um passo do precipício. Apesar da rebelião popular nos territórios ocupados pelos israelenses, os líderes palestinos estavam prestes a trocar sua estratégia de décadas, cujo centro era a destruição do Estado de Israel, por alguma política de convivência com o sionismo.

Tel-Aviv também tinha seus problemas, e graves. O fim da Guerra Fria e a aproximação dos Estados Unidos com as burguesias árabes enfraqueciam o principal argumento para a atração de capitais que irrigassem a economia israelense. A instalação de uma importante base militar americana na Arábia Saudita, além dos acordos de cooperação firmados pela Casa Branca com a Síria e o Egito, causou a expectativa de um corte nos subsídios dos EUA. A adoção de propostas para um clima de distensão, por outro lado, poderia favorecer a entrada de investimentos não-militares e a penetração de produtos israelenses nos mercados árabes. A Intifada também era um espinho na garganta das elites sionistas. Mais que um drama político, virara um horror econômico. O fechamento sistemático das fronteiras israelenses, para conter as ondas de protesto, bloqueava o acesso da força de trabalho palestina – bem mais barata e disposta aos serviços mais pesados. O corte nesse fluxo, associado às inúmeras greves de trabalhadores árabes e palestinos residentes nas grandes cidades israelenses, tinha provocado um prejuízo de US$80 bilhões nos primeiros cinco anos da rebelião. O quadro de dificuldades era completado pelo descontentamento de parte da opinião pública judaica, dentro e fora de Israel, com a política militarista levada a cabo há tanto tempo. Muitas famílias passavam a expressar dor e indignação com a morte de filhos, irmãos e maridos no sul do Líbano, ocupado desde 1978, ou em outros territórios anexados. Se a guerra não trouxera paz e segurança, chegara a hora de acabar com a guerra e encontrar outra saída. Esse era, ao menos, o sentimento que abalava a sociedade israelense nos anos que antecederam as reuniões secretas de Oslo.

O encontro entre Yitzhak Rabin, premiê israelense, e Yasser Arafat, líder da OLP, acabou por expressar uma confluência alardeada pela mídia internacional como a grande chance para a paz. Mas não havia paridade entre os protagonistas. O primeiro estava disposto a alterar sua orientação tradicional, desde que essa operação fosse útil para salvaguardar as fronteiras e os interesses do regime que comandava. O segundo, abatido e isolado, lutava pela sobrevivência política – estava disposto, para tanto, a virar suas costas para a Intifada e acolher as pressões dos palestinos mais ricos, desejosos de uma vida normal em um pedaço de terra no qual aportasse uma porção, por pequena que fosse, do capital globalizado.

Os acordos de paz, celebrados entre a OLP e o Estado de Israel na capital norte-americana, em setembro de 1993, ofereceram aos palestinos a devolução de sete cidades na Cisjordânia e toda a faixa de Gaza – 13% das terras confiscadas dos palestinos a partir de 1947. A cidade de Hebron, em razão da presença de judeus, ficaria sob controle misto. A Autoridade Nacional Palestina não teria status de Estado, ficando proibida de estabelecer bases militares nos territórios desocupados. O exército israelense continuaria com o domínio das zonas rurais que rodeiam as cidades, além dos acessos por terra e mar – na prática, os palestinos não teriam acesso aos recursos hídricos da região e estariam proibidos até de cavar poços de água para consumo doméstico. A maior cidade árabe-palestina da região, Jerusalém, permaneceria sob ocupação de Israel. Os refugiados palestinos, espalhados por todo o Oriente Médio, receberiam indenização internacional, mas não poderiam retornar às suas antigas cidades. A Autoridade Palestina formaria uma força policial nas áreas sob sua direção, utilizando apenas equipamento de baixo impacto e sem o direito de prender cidadãos israelenses. Em casos nos quais a polícia palestina não pudesse deter revoltas que ameaçassem a segurança de Israel, o exército sionista teria liberdade de intervenção. Mas a OLP poderia instalar um Conselho Nacional, espécie de parlamento composto por 82 integrantes, desde que renunciasse à bandeira histórica da destruição do Estado de Israel e não adotasse decisões contrárias aos termos dos acordos. Também passaria a usufruir de pleno reconhecimento diplomático e comercial, incluindo o direito de cunhar sua própria moeda e receber investimentos estrangeiros. Essas foram as regras aceitas por um homem que, nos idos de 1970, chegou a declarar, em entrevista à revista Veja: "Nós não queremos a paz. Queremos a guerra, a vitória. A paz, para nós, significa a destruição de Israel e nada mais." No dia em que colocou sua assinatura ao lado da de Rabin, possivelmente desejou que esquecessem tudo o que havia dito antes.

De uma hora para outra, o maior líder guerrilheiro que os palestinos produziram passou a desempenhar o papel de repressor contra as organizações que rejeitavam os acordos de paz e continuavam a estimular a Intifada. Era sua função como chefe da Autoridade Palestina. Cortou na própria carne com a expectativa de que os israelenses cumprissem sua parte. Apostava que a fórmula da coabitação entre os dois estados terminaria vingando. Bastaria os palestinos terem paciência. Mas o modesto sonho de Arafat acabou moído nas engrenagens do regime político e social construído pelo sionismo.

Recuemos um pouco na história. O contexto histórico que envolve a ascensão do pensamento de Theodor Herzl, um dos fundadores do movimento sionista, o homem que pregava por "uma terra sem povo para um povo sem terra", é marcado por uma crise profunda da economia capitalista, que desembocará na primeira guerra mundial, de 1914 a 1918. Há uma feroz disputa pelos mercados e o ressurgimento do nacionalismo exacerbado. A vitória da aliança franco-britânica sobre os alemães e seus aliados, entre os quais a Turquia, faz do imperialismo inglês o herdeiro do Império Otomano, que engloba todo o Oriente Médio. O problema estratégico dos novos senhores era estabelecer sua hegemonia na região – cuja riqueza petrolífera já era conhecida como uma estupenda reserva econômica – contra os diversos grupos nacionalistas árabes. O governo inglês decide, então, estabelecer uma cabeceira de ponte com a criação de um enclave ocidental na Palestina. Através da célebre Declaração de Balfour, incentiva a "construção de um lar nacional para o povo judeu". Magnatas do petróleo, como o Barão de Rotschild, começam a financiar a emigração massiva de judeus para a região, que antes somavam apenas 25 mil. No final dos anos 30, passavam dos 400 mil, muitos deles foragidos do nazismo. O aporte massivo de capitais permitiu a formação de milícias armadas para combater as demais nacionalidades e culturas. Seu lema era "cem mil vidas árabes não valem a unha de um judeu".

A iminente eclosão da segunda guerra mundial, no final dos anos 30, obrigou a Inglaterra, ameaçada pelo nazismo, a procurar o apoio dos países árabes contra a Alemanha. Para atrair sua simpatia, restringiu a entrada de judeus na Palestina. Os americanos, emergentes no cenário mundial, abraçaram a causa sionista e passaram a fornecer armamento pesado às milícias, que golpearam as próprias posições inglesas. A ONU decreta em 1947 a divisão definitiva da região entre um Estado judeu e outro palestino que jamais sairá do papel. As tropas do Irgun, o grupo militar chefiado por Menachem Béguin, desfecha violentos ataques contra os palestinos antes mesmo da proclamação do Estado de Israel. As nações árabes reagem militarmente contra a partilha, mas são derrotadas no campo de batalha. Os israelenses conquistam um território três vezes maior que aquele inicialmente traçado pela ONU. Um milhão e meio de palestinos são expulsos de suas terras, agora pertencentes ao regime sionista, e espalham-se principalmente pelo Líbano, Egito, Jordânia e Síria. Outros 600 mil permanecem em Israel, sem direitos civis e servindo de mão-de-obra barata na economia do país.

O fluxo de judeus para a Palestina aumentou depois desses episódios na fundação de Israel e continuou ativo até a década de 70, mas declinante a partir dos anos 60. Na segunda metade dos 80, a composição étnico-cultural da população israelense apontava para a possibilidade iminente dos judeus converterem-se em uma minoria dentro do seu próprio Estado. Os árabes e palestinos, graças à migração da mão-de-obra e uma taxa maior de natalidade, ameaçavam reproduzir o quadro populacional do princípio desse século. Tal fenômeno era claramente um fator de desestabilização, cuja conseqüência natural seria o desenvolvimento de um sistema político cada vez mais repressivo e baseado na segregação. Um regime bastante semelhante ao apartheid sul-africano, com os riscos inerentes. Esse processo acabou por conter a aplicação do axioma de Herzl. Na lógica sionista, passava a ser necessário mais povo do que terra.

A solução não nasceu em Tel-Aviv, mas na demolição da União Soviética. Centenas de milhares de judeus que viviam naquele país, liberados pela abertura de fronteiras, são atraídos pelas generosas ofertas do governo israelense. A esmagadora maioria será enviada para os locais onde havia terra sem povo, ao menos sem povo judeu: os territórios tomados dos palestinos nas guerras entre 1947 e 1973. Os judeus russos viraram, em dez anos, uma massa de colonos disposta a defender sua terra a qualquer preço. Numerosos, alteraram a própria base do sistema eleitoral, reforçando os partidos que não aceitam fazer concessões aos palestinos. São suficientemente fortes para empurrar o governo em direção a uma política agressiva de colonização, ainda que pagando o preço de inviabilizar a estratégia traçada por Rabin. As novas obras em construção nas colônias israelenses nos territórios palestinos, por exemplo, aumentaram 51% nesse trimestre com relação ao mesmo período de 1999. O primeiro-ministro trabalhista, Ehud Barak, ergue mais moradias nessas colônias do que seu antecessor de direita, Benjamin Netanyahu.

Mas não se trata apenas de mais tetos judeus em seara palestina. Cada nova casa nessas áreas significa maior necessidade de recursos hídricos, segurança policial e outros serviços que são subtraídos da gente liderada por Arafat. Apesar dos acordos de paz refletirem necessidades objetivas da política israelense, a dinâmica do Estado confessional aprofunda os conflitos e suprime o direito histórico de existência do povo palestino como uma nação soberana. Aí está o ovo da serpente.

As ruas de Gaza e Cisjordânia entenderam esse descompasso antes do chefe da OLP. Não parecem respeitar seus pedidos de cessar-fogo para que os dois lados possam voltar ao leito de Oslo. Não acreditam que esse caminho possa levá-los a um porto seguro. A tese pode ser perigosa, mas está lançada pela Intifada: não haverá convivência possível entre judeus e palestinos enquanto o Estado sionista não for desarticulado e substituído por uma Federação Palestina na qual todos os povos possam viver em igualdade de direitos. Aqui também há semelhança com a África do Sul, cujo regime teve que ser abatido pela combinação de forças entre a resistência interna e o boicote internacional.

A velha liderança palestina talvez abane a cabeça e ache uma falta de realismo a rebelião dos jovens que enfrentam quase de mãos nuas as tropas do Estado sionista. Mas a vida já ensinou que mais vale uma longa jornada com destino bem traçado, ainda que sejam enormes os obstáculos a saltar, do que um atalho que percorre terreno movediço e faz soçobrar o transeunte no meio da caminhada.

Breno Altman é jornalista.