Internacional

O destino dos povos judeu e palestino no Oriente Médio esteve e estará atrelado às grandes marés da política internacional. A contraditória dinâmica de integração entre esses dois povos irá ainda exigir profundas transformações internas em cada uma dessas sociedades e em suas relações com o resto do mundo

Os filósofos sempre se ocuparam em interpretar o mundo.
Cabe agora transformá-lo."
Marx, nas Teses sobre Feuerbach, há 150 anos

 

Há muitas décadas de história por trás dos conflitos entre judeus e palestinos que se agudizaram com a eclosão da Intifada em setembro. No futuro próximo da geopolítica mundial esse conflito certamente terá importância equivalente à que teve desde sua origem, que remonta no mínimo à disputa do espólio do Império Otomano pelas potências ocidentais durante os combates da Primeira Guerra Mundial.

O Brasil, hoje indiscutivelmente ator global, não deve ficar alheio a esse conflito. Como nação respeitada por ambos os lados, poderá exercer papel fundamental na construção do diálogo e da paz, seja diplomaticamente ou por meio de iniciativas de sua sociedade civil.

A análise de Breno Altman, no artigo "O ovo da serpente", na edição anterior de Teoria e Debate, é ponto de partida para um debate importante para as forças políticas de nosso país que possam contribuir para o processo de paz no Oriente Médio, especialmente o Partido dos Trabalhadores, que tem uma responsabilidade especial pela sua representatividade junto à opinião pública brasileira e pela relação que desenvolveu com forças democráticas naquela região.

Esse artigo, que traz uma perspectiva histórica preciosa especialmente diante da ênfase sensacionalista da grande imprensa, merece ser polemizado principalmente por recorrer ao fácil recurso de vilanizar unilateralmente uma das partes em conflito, o Estado de Israel e o sionismo, estreitando o campo de diálogo e empobrecendo a contribuição que poderia trazer para tomadas de posições políticas eficazes.

A síntese histórica trazida pelo autor apóia-se no seguinte binômio: por um lado, uma visão idealizada do movimento palestino, a quem Altman chega a atribuir generosamente a capacidade de produzir uma Federação Palestina que, em substituição a um Estado sionista a ser desarticulado (sic), assegurará que esses povos possam viver em igualdade de direitos. Por outro lado, pinta um sionismo também idealizado, mas perverso, num estereótipo bem ilustrado pela citação "cem mil vidas árabes não valem a unha de um judeu", pérola cuja origem o autor fica devendo ao leitor.

O artigo comete o sofisma de confundir uma ideologia nacionalista com o Estado que ela originou e com as posições dos governos circunstanciais que correspondem às correlações de forças sociais em cada momento histórico.

Não estamos aqui justificando qualquer nacionalismo, e sim reconhecendo que eles existem e são elaborados em resposta a situações concretas enfrentadas por determinados grupos étnicos. O nacionalismo judaico (sionismo), escoadouro da luta contra a opressão que massas de judeus sofriam na Europa, caracterizado no artigo como ideologia excludente e opressora, não se beneficia da mesma generosidade concedida por Altman ao movimento de libertação nacional palestino. Ao caricaturar essas duas ideologias, Altman deixa de aprofundar o fato de que, como em qualquer movimento nacionalista, o sionismo conteve e contém extenso leque ideológico, desde o humanismo radical de Borochov, Buber e Leibowitz, até o chauvinismo dos fanáticos partidários de uma limpeza étnica. E vale o mesmo para o movimento de libertação palestino, cuja complexidade tampouco é analisada.

Ao condenar de forma tão categórica o sionismo, Altman dilui o seu alvo, deixando de mirar a prepotência que tem marcado os governos do Estado de Israel, e antagoniza todos aqueles que, simpáticos ao direito dos judeus a uma identidade nacional, e simpáticos, portanto, ao sionismo, mesmo assim se alinham à pressão que deve ser exercida internacionalmente sobre Israel no sentido de uma paz justa com os palestinos, baseada no fim da ocupação militar e no reconhecimento à existência digna do povo palestino, e não na prepotência militar.

Complementando a narrativa histórica trazida por Altman, que valoriza a atual luta de libertação nacional do povo palestino sem reconhecer no sionismo um caráter semelhante (até mesmo com heróis e crianças mártires que houve em profusão na luta pela criação do Estado de Israel), vale destacar que já em 1927 era registrado naquela região recém-incorporada ao Império Britânico o primeiro massacre étnico: o pogrom antijudaico em Hebron, incitado por lideranças islâmicas conservadoras. A mesma elite dirigente que, no âmbito da complexa teia de interesses das potências imperialistas, desfilaria uma década mais tarde em Berlim em apoio ao Eixo hitlerista, e convocaria as massas árabes para uma limpeza étnica com o lançamento dos judeus ao mar. Nessa época, o movimento para a criação do Estado de Israel conquistou o status de "politicamente correto", pois não apenas se dava no âmbito de um êxodo maciço de judeus da Europa Oriental, que congestionavam as quotas da imigração tolerada nos países do Ocidente, mas também porque o sionismo se alinhava aos interesses de outras potências imperiais, capitalistas e socialistas, chegando a ser apoiado até mesmo pela União Soviética na decisão da ONU sobre a partilha da Palestina.

É um injusto equívoco referir-se ao sionismo como ideologia monolítica (quase reproduzindo o famoso slogan "sionismo é uma forma de racismo"), equívoco tão grave quanto a visão da direita judaica, que enxerga o mundo árabe como monoliticamente fanatizado e não-democrático. O sionismo é complexo em sua composição e evolução.

Se há cem anos o sionismo se caracterizava pela busca de saídas para a sobrevivência e dignidade das massas judias pauperizadas na Europa, e há cinqüenta anos buscava, pela negação do judaísmo na Diáspora, incentivar a imigração para viabilizar demograficamente o Estado de Israel, hoje ele tem características totalmente distintas e multicoloridas. Os movimentos sionistas são hoje muito mais movimentos de difusão da cultura judaica fora de Israel do que propriamente arregimentadores de imigrantes.

Ao longo de toda essa evolução, ele acomodou elementos humanistas, socialistas e também racistas, erva daninha produzida por qualquer movimento de afirmação nacional. E no seu interior trava-se hoje feroz debate em relação à questão palestina e à natureza futura do Estado de Israel e sua integração no Oriente Médio. O fato de haver muitos aliados do movimento nacional palestino em organizações sionistas expressivas como o Meretz (maior partido de esquerda israelense, ao qual está ligada a maioria dos kibbutzim), e mesmo no interior da própria Agência Judaica (como o falecido presidente Nahum Goldman), é suficiente para descartar as interpretações simplistas contidas no artigo de Altman e seus congêneres que têm povoado recentemente revistas como a Caros Amigos e páginas de opinião da grande imprensa.

Ao criticar a parcialidade do artigo de Altman, vale também chamar atenção para a imprecisão em detalhes históricos, tais como os relacionados à expulsão dos palestinos: "um milhão e meio de palestinos são expulsos de suas terras, agora pertencentes ao regime sionista". Acima da questão numérica (foram 700 mil, o que não é pouco) está a expulsão em si, uma história muito mal contada por ambos os lados. Por um lado, sim, houve massacres, como a própria historiografia israelense tem mostrado (infelizmente de modo abafado pelo establishment, como a repressão da recente tese de Teddy Katz na Universidade de Haifa sobre o massacre de Tantura). Por outro lado, há também farta documentação evidenciando êxodos em massa (não exatamente expulsões) de palestinos incitados por lideranças aventureiras, que prometiam o breve retorno à sua terra após a eliminação dos judeus.

Outro reparo ao artigo refere-se ao hiato histórico no período imediatamente anterior à eclosão da Intifada. A riqueza da sua perspectiva histórica tem uma descontinuidade nesse período recente que se dá a partir do fracasso das negociações de Camp David (julho de 2000), em que a paz de Oslo desmoronou apesar das ousadas propostas de Barak. Os preparativos da Intifada começaram de fato com a recusa de Arafat. A omissão desse período resulta em supervalorizar, ecoando a mídia internacional, o mito da infeliz visita de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas. Vale acrescentar que essa visita não se deu por acaso, tendo se seguido a ataques de pedras por parte de provocadores palestinos a religiosos judeus no Muro das Lamentações, já no contexto da revolta contra o fracasso da paz.

À parte o caráter incidental e talvez menor desses fatos, teria sido importante identificar a presença do clássico processo de realimentação dinâmica da violência, ou seja, uma aliança tácita entre os extremistas de ambos os lados que, ao cometerem atos terroristas, provocam sistematicamente reações do outro lado que enfraquecem as forças que lutam pela paz. Não há dúvida de que a prepotência do governo israelense, duro com a violência palestina e complacente com a violência dos colonos nos territórios ocupados, nutre e é nutrida pelo terrorismo dos fundamentalistas islâmicos.

Mas as imprecisões do artigo têm o mérito de levantar o desafio de uma reconstrução historiográfica rigorosa e conjunta, especialmente para que as novas gerações, judias e palestinas, deixem de se enxergar acima do bem e do mal, e com isso se flexibilizem para um diálogo que tem bom número de anos pela frente. Para que essas gerações se percebam mutuamente como parceiras que necessariamente serão, será preciso reconciliar as duas histórias. Crianças judias deverão saber criticar os erros de seu passado e conhecer a história do povo palestino, e crianças palestinas deverão deixar de ver os judeus como agentes do mal. Trabalho de gerações, sem dúvida, mas que estereótipos infelizes só contribuem para retardar.

Se desejamos ir além da compreensão da realidade e contribuir para transformá-la, parece-nos imprescindível recusar as caricaturas e considerar o movimento que existe dentro da sociedade israelense e em setores do complexo e contraditório movimento sionista, e que unem judeus e palestinos pela defesa dos direitos humanos, remoção dos assentamentos judeus em territórios ocupados, punição de torturadores, reconstrução de casas demolidas etc. Movimentos que têm recebido apoio internacional como o BatShalom (mulheres judias em parceria com ONGs de mulheres palestinas), o BB’Tselem (Centro de Informações Israelense pelos Direitos Humanos nos Territórios Ocupados), o Rabbis for Human Rights (religiosos que se mobilizam para dar assistência a famílias cujas casas foram destruídas), o Peace Now e muitos outros, além do já citado Meretz, um dos maiores partidos israelenses, que tem tido posições firmes no combate à direita expansionista judaica.

Tampouco se deve ignorar a luta interna e abafada na sociedade palestina pelo direito de livre expressão e outros direitos democráticos.

Enfim, consideramos que, à parte a riqueza da análise de Altman, o artigo aqui criticado termina por confundir mais do que esclarecer. Entendemos ser necessário aceitar, de partida, que esses dois povos, judeu e palestino, têm direito à autodeterminação (inclusive quanto a seu perfil demográfico, questão na qual uma árdua negociação terá que ser travada entre os extremos, ambos inaceitáveis, da limpeza étnica e da total absorção dos refugiados). Requer também aceitar que suas lutas de libertação nacional, embora defasadas por algumas décadas, têm legitimidade equivalente.

É preciso ouvir o outro e combater os estereótipos, tanto na visão que infelizmente prevalece entre os judeus de que a luta palestina consiste no terrorismo, quanto no chavão anacrônico dos que ainda insistem em ver no sionismo uma forma de racismo e em incluir a tragédia palestina na categoria dos extermínios planejados.

Há uma vasta agenda positiva a ser cumprida, e os mecanismos hoje à disposição dessa nova sociedade globalizada em rede podem ser muito efetivos. Mas para tanto é preciso ampliar posições, não estreitá-las.

Para um rápido delineamento dos desafios que estão à frente dos que desejam atuar mundialmente com responsabilidade política nesse conflito, essa agenda independe do governo israelense de plantão, e permanece mesmo apesar dos retrocessos recentes no processo de paz e da atual correlação de forças em Israel e na Autoridade Palestina. Há muito a fazer. Desde a tarefa imediata e permanente de zelar e denunciar as violações ao direito internacional e os desrespeitos aos direitos humanos por parte de israelenses (e também palestinos), até a coalizão internacional pela remoção dos assentamentos judaicos que se interpõem à unificação territorial do futuro Estado palestino, e por acordos justos quanto às questões substantivas mais dolorosas: direito ao retorno dos refugiados, divisão de Jerusalém, controle dos recursos hídricos etc.

Essa agenda compreende uma miríade de possibilidades para promover a consciência na sociedade israelense e seus aliados internacionais de que uma paz baseada nas armas é uma ilusão contra o relógio. Azeitar o diálogo, pressionando por medidas de proteção das populações árabes contra ataques arbitrários. Organizar-se internacionalmente para apoiar lideranças em ambos os lados que defendem o diálogo. Promover a cultura da paz pela ação conjunta de educadores e agentes culturais de vários países (afinal, esta foi designada pela Unesco como "a década da paz"). Debater uma nova historiografia com o reconhecimento recíproco do passado e do direito ao futuro de ambos os povos.

Essa agenda, por si só complexa, corre em paralelo com a agenda doméstica, em Israel e na Palestina, pelo aprofundamento da democracia nas duas sociedades. Especialmente na sociedade israelense, em que as políticas neoliberais, acompanhadas da desproporcional incrustação dos ultra-ortodoxos no aparelho de Estado, vêm fazendo regredir o nível educacional e a propensão democrática da população. Uma sociedade democrática mas contraditória, na qual os árabes israelenses ainda têm status de cidadãos de segunda classe, enquanto se forma uma nova minoria de trabalhadores importados do Extremo Oriente (atingindo já 200 mil), que muito em breve estará também pressionando por seus direitos civis.

Nesse contexto, cabe apoiar as forças democráticas israelenses (irrelevante categorizá-las como sionistas ou não), para que sejam capazes de avançar na transformação do Estado judeu num Estado para todos os seus cidadãos com igualdade de direitos de cidadania. E cabe esperar que o ethos das novas gerações se recupere das deformações causadas pela experiência trágica de oprimir um outro povo, nas palavras de Yeshayahu Leibowitz, o (paradoxalmente?) intelectual sionista e religioso que mais influenciou a numerosa ala crítica e humanista da sociedade israelense.

Mas é preciso também uma agenda para contribuir com a sociedade palestina, cuja complexa estrutura política comporta também lideranças lúcidas e democráticas, as quais, num processo de retomada do diálogo e redução crescente da opressão israelense, tenderão a conquistar posições para democratizar o emergente Estado Palestino, fazendo regredir os fundamentalistas que só conseguem ver a situação sob o prisma da guerra santa.

Não é pouco, mas a história não acabou. Existem todos os ingredientes para que essa utopia possa se realizar, mesmo que o horizonte dure décadas. Assim como há sessenta anos era inconcebível imaginar que França e Alemanha teriam hoje fronteiras abertas e mercados integrados, é difícil imaginar isso hoje para Israel e Palestina. Porém tampouco está escrito nas estrelas que essa marcha da insensatez terá de levar os dois povos ao abismo, nem que as únicas opções sejam aventuras em que um precise "desarticular" o outro.

Finalmente, vale erguer os olhos do que é aparente e se presta às demonizações (para um lado o sionismo, para outro o anti-semitismo), e buscar entender o papel desse conflito no jogo das forças maiores que disputam a hegemonia do poder mundial. A história mostra a pouca sensibilidade dos interesses das potências em relação à destruição e miséria de grupos humanos. Judeus e palestinos no Oriente Médio têm autonomia apenas relativa nesse espetáculo, e a segurança de ambos só será garantida historicamente se souberem se compor e romperem a dependência em relação aos interesses das grandes potências. Qualquer outro caminho que não aponte para a convivência pacífica e integração no ecossistema do Oriente Médio será desastroso.

Afinal, como ensinou aquele simpático velhinho de tantas luzes: é o homem que faz a história sim, mas não do jeito que desejaria.

Sérgio Storch é membro da coordenação do movimento Shalom Salam Paz.