Sociedade

Um revolução silenciosa: a engenharia genética e genômica

Luís Felipe Pondé é filósofo e professor do Programa de Estudos Pós-Graduados de Ciência da Religião da PUC/SP. Sua tese de doutorado, O homem insuficiente, estudo sobre o caráter essencialmente disfuncional do ser humano, está sendo lançada pela Editora da USP. Tendo feito o curso médico, é também psicanalista pela extinta Biblioteca Freudiana Brasileira, com atuação na supervisão de profissionais da área de saúde que lidam com pacientes terminais

A genômica é um tema do momento. Ela seria, ao lado da informática, uma das duas grandes revoluções tecnológicas em curso. Mas enquanto a informática está transformando as relações humanas de maneira inquestionável, as biotecnologias não têm presença tão evidente em nosso cotidiano. Você afirma que as biotecnologias vão ter um impacto sobre a humanidade equivalente ao que foi a passagem, com o surgimento da agricultura, do nomadismo para o sedentarismo. O que representa hoje a biotecnologia para a humanidade?
Biotecnologia é um nome vago, que pode designar de um exame de laboratório a arar a terra. Mas o foco da discussão é o conhecimento da genética, na genômica e na engenharia genética. Estamos frente àquele tipo de revolução que um dia você acorda e já aconteceu. As pessoas falam de genômica e de genética no jornal e nos jantares, mas o que elas vão fazer é medicina pré-natal genômica, esta é a tradução prática da tecnologia genômica aplicada aos seres humanos. Não teremos, em um futuro previsível, um cenário como do filme Blade Runner, com a construção de pessoas, de replicantes. A transformação do corpo é uma coisa que já estamos fazendo há algum tempo. Além disso, a revolução genômica faz menos barulho do que a informática porque se dá mais no campo privado. Não se discutem a medicina pré-natal, as doenças da família, como quem compra computador em um shopping center. A transformação que a genômica provoca na sociedade tende a ser mais silenciosa.

Depois, as conseqüências da genômica causam mais horror, a cultura sofre mais com o que ela pode fazer conosco do que sofreu com a informática. Vivemos em uma sociedade da informação, na qual a hegemonia do modelo norte-americano de vida produz essa informação pasteurizada, veloz, dependente das máquinas. Já a genômica é mais vertical, mexe com o que no materialismo entendemos como "ser". No paradigma materialista em que vivemos, o ser é a matéria, inclusive a matéria viva. A genômica manipula esse ser vivo, revela o caráter de acaso da natureza. Aquilo que estamos acostumados a pensar como "o natural", a medicina pré-natal genômica acaba mostrando que é acaso. Uma criança que nasça a partir de um estudo do potencial do patrimônio genético dos dois progenitores estará o máximo possível protegida da força do acaso. A genômica revela o profundo caráter cultural do que entendemos como natureza. A cultura ocidental assimilou bem a idéia de Bacon de que a natureza é algo a ser transformado e colocado a nosso serviço. Costumamos pensar que a natureza é alguma coisa que existe previamente, da qual fazemos parte, que não é uma invenção nossa, e que de alguma forma seria oposta à cultura. A genômica está abrindo o ser da matéria e jogando a cultura dentro dele, tendendo a moldar a matéria viva.

Qual o impacto desta revolução na sociedade?
O capitalismo vai ganhar muito dinheiro com isso. O ser humano contemporâneo é fruto da orfandade moderna – ainda que ele fale de Deus e similares, na realidade não confia muito nessas coisas, não vive naquele mundo poroso, permeado pelo sobrenatural, em que o homem medieval vivia. Nessa condição de órfão, é muito clara a tentativa de transformar o seu corpo no melhor possível. A demanda de mercado existente para medicina genômica é gigantesca.

E o fundamental é que as pessoas vão fazer isso sem ter consciência do que estão realizando. Vão simplesmente pensar que estão dando o que há de melhor delas para seus filhos. Você vai com sua parceira ou seu parceiro ao laboratório e, dependendo dos esquemas sociais, políticos ou jurídicos da sociedade, terá acesso a essa técnica de forma A ou B. Fará a seleção dos gametas envolvidos e as melhores possibilidades de material genético gerarão a criança. Isso será tão óbvio quanto é hoje fazer um programa de vacinação contra poliomielite.

Não temos tanta clareza da revolução genômica quanto da informática, também, pelo fato de a revolução da informática estar em curso há mais tempo. A genômica inclusive pressupõe e é uma conseqüência do desenvolvimento da informática, porque nela temos que manipular uma quantidade de informações colossais. Ela já é um desdobramento, é informático-dependente.

A tendência a não percebermos com força a presença da genômica se deve a ela lançar o ser humano em uma angústia muito grande. Isso faz com que as pessoas não queiram falar disso. O ser humano estaria, por meio da genômica, fazendo o papel de Deus. Isso provoca nas pessoas uma certa angústia metafísica – ainda que eu ache que os verdadeiros religiosos, que sofreriam com isso, que não usariam essa tecnologia genômica seriam tão raros como os católicos que não usam camisinha.

Essa abordagem enfraquece muito a reflexão ética em relação à genética e à genômica. Elas são técnicas de emancipação. É típico do ser humano moderno apostar no projeto baconiano, ser prometéico, achar que Adão e Eva fizeram a coisa certa, mas ao mesmo tempo ficar com aquela conversa de que "é contra a condição humana; não está certo; o que vai acontecer?", ou do tipo "exército de robôs nazistas", o que é uma grande bobagem. A associação da genômica não é com o Estado totalitário, é com o mercado. Ela dá dinheiro na medida que vende para o consumidor toda uma gama de produtos que garantem uma maior qualidade de vida biológica. E quem tem isso terá mais chances de ter uma melhor qualidade de vida psicológica.

Mas o temor de enfrentar a genômica vem também do estrago que ela pode causar na sociedade. As pessoas têm medo tanto da genômica causar acidentes genéticos (na terapêutica ou preventiva), quanto de criar uma casta biológica. A preocupação é correta, só que o foco está errado. A possibilidade de a genômica produzir uma casta biológica é diretamente proporcional aos vícios políticos que uma determinada sociedade tiver. Se jogamos a genômica no Brasil, com as desigualdades que marcam o país, será realmente uma devastação. Há as pessoas que utilizam os hospitais de ponta e têm seguros de saúde e uma grande parte da população que não tem acesso a nada disso e será o campo da experimentação de risco feita pelos nossos geneticistas médicos. Isso já está em curso no país, independentemente da genômica. É como se já tivéssemos duas ou três espécies de homo sapiens circulando no Brasil. É, então, muita hipocrisia demonizar a genômica e dizer que ela criará uma casta. Basta pensar no Nordeste, nas crianças com problema de subnutrição na primeira infância, nos danos que isso causa nos caminhos neuronais, no cérebro, no arco-reflexo, pela deficiência protéica.

Temos um problema social que se transforma em biológico e bioquímico. O que a genômica faz, com a agressividade que lhe é característica, é multiplicar isso ad infinitum. Como toda tecnologia agressiva, seus resultados podem ser devastadores. Os acidentes biológicos e sociais que ela poderá causar serão enormes. É importante termos uma discussão muito clara da relação entre o conhecimento do material genético de cada pessoa e até que ponto isso pode ser ou não objeto de manipulação pelo capital, pela sociedade e pelo Estado.

Que tipo de manipulação pode ser feita?
A máquina de Estado pode, por exemplo, usar o material do patrimônio genético de cada indivíduo para identificação. Isso deve ou não ser permitido? Creio que se aceitamos que os genes venham a ser um método de identificação, já abrimos a porta para aquilo que, nos EUA, está sendo chamado de genismo – o hábito indesejável da sociedade ser completamente moldada a partir dos produtos da genômica. Seria, por exemplo, aceitar que uma pessoa só possa ter determinado seguro de saúde se antes passar por um teste genômico.

Isso foi recentemente aprovado em uma comissão que controla os planos de saúde da Inglaterra; eles poderão exigir exames genéticos de seus segurados.
Isso provavelmente vai acontecer. Mas a sociedade inglesa tende a ter mecanismos de redução dos desvios provocados pelo genismo, tornando-os menos radicais do ponto de vista médico do que uma sociedade como a brasileira. E ainda que tenhamos estes mecanismos, na hora que se abre o direito das companhias de seguro ou dos planos de saúde terem acesso ao material genético, todo o aparelho jurídico e financeiro destas empresas vai se adaptar a isso e fazer o cálculo do lucro a partir daí. O que é uma companhia de seguros senão especialista em probabilidades? Se uma pessoa quer adquirir um plano de saúde e tem um material genético que aponta para uma possibilidade maior de desenvolver diabete em uma certa idade, o plano de saúde cobrará mais dela – e aqui está posto claramente um dos desdobramentos da genética preventiva. Como lida com a probabilidade, maior ou menor, de ocorrer uma doença, a genética lhe dá um instrumental para fazer esse cálculo. A lógica é, então, implacável. Uma vez que tudo está aberto a um relacionamento promíscuo com o capital, tudo vai ser transformado em dinheiro e volatilizado. É mais ou menos como com a idade, aos 50 anos paga-se mais por um plano de saúde do que aos dez. Não tem como ser diferente dentro da lógica dominante, que transforma tudo em objeto de lucro. E no Brasil essa lógica tende a ser ainda mais violenta.

Uma criança que não passar pela seleção genômica será uma criança com menos direitos nos planos de saúde e mais cara para sua família. Isso é um exemplo banal de um vetor que vai obrigar as pessoas a utilizarem a genômica para garantir um futuro melhor para os filhos.

Daqui a cem anos, provavelmente, vai se dar risada imaginando que isso pudesse ser um problema para nós, que a sociedade poderia um dia estar sofrendo sobre se "devemos ou não genetizar-nos?" Parecerá como questionar hoje "devemos ou não ter aviões ou telefones?". O potencial de transformação da genômica para a população é enorme; ela garante que se possa fazer um filho com o que há de "melhor" em você. E num paradigma materialista, o que temos além da nossa própria matéria? Infiltra-se água no seio para ficar maior, costura-se o estômago para emagrecer. A cultura narcisista e da saúde, a idéia de que a melhor forma de sermos felizes é ter um corpo de Barbie, diz para a sociedade que o caminho a seguir é o da saúde, do amor e da beleza física.

Como fica a discussão ética?
Há muita confusão na discussão ética sobre o assunto. A genética põe em questão o problema da temporalidade porque trabalha com o que existe em potencial. A criança que tem a trissomia do cromossomo 21 (mongolismo) existe enquanto ato, mas a genética lida com potenciais. A família que lança mão da tecnologia genômica está lidando com crianças que ainda não existem, por isso a terapêutica não pré-natal é um estado paleolítico em genômica. Tenho impressão de que normalmente a reflexão ética parece não se dar conta disso, não consegue diferenciar esses dois momentos. Uma coisa é lidar com o que é ato, outra é lidar com o que é potência.

Se a família, ao lidar com a criança que vai fazer, não garantir para ela uma melhor condição genética antes do nascimento, em nome de qualquer crença, isso é um ato claro de violência política. Pelo simples fato de que se está negando à criança o direito de ter uma vida biológica melhor. Claro, ela pode ser atropelada do mesmo jeito, bater a cabeça na parede, tudo isso pode acontecer. Mas as pessoas normalmente confundem o acaso inevitável com o evitável. Se uma criança nasce com um problema muscular que faz que ela não ande e isso poderia ser evitado, se aí existe uma escolha dos pais em jogo, temos um problema sério de "militância antigenômica infeliz".

Tais desdobramentos sociais e políticos seriam também aplicáveis a outros "ramos" da genética médica, tais como a terapêutica ou a genética preventiva?
Penso que o foco do problema é a medicina pré-natal, por isso quase a uso como sinônimo. A genômica é uma espécie de upgrade radical do ser humano, pois adentramos o campo da potência antes de se fazer o ato. A genética pré-natal trabalha com as potencialidades genotípicas, a programação em si, enquanto na genética terapêutica ou preventiva pós-natal (as brincadeiras frankensteinianas) estamos atolados no ato já realizado, ou seja, no fenótipo. Sabemos que a medicina se realiza de modo mais "puro" ou eficaz quando é preventiva e a pré-natal genômica é essa vocação levada ao paroxismo do humanismo biologizante. Concentrar-se nas terapêuticas pós-natal (ou na clonagem) parece-me um erro de abordagem; isso faz muito barulho "útil" para a mídia e prepara o horror silencioso que não será capaz sequer de identificar a genômica com a "amorosa" medicina pré-natal. É "bom" se perder em discussões "metafísicas" sobre o materialismo impessoal da clonagem para, em off, se reafirmar cinicamente o direito à genômica pré-natal. O que está em jogo na genômica é menos a clonagem e mais a manipulação concreta de categorias temporais materializadas no corpo humano.

Você coloca a medicina genética como um direito?
Sim, é aí que quero chegar. Na medida em que a tecnologia genômica vai entrando na sociedade via medicina pré-natal, torna-se um direito da criança receber o melhor tratamento genômico disponível. Senão, estará aberta a crenças do tipo "sou contra a transfusão de genes", ou coisas como "só tem genômica quem é rico".

Mas qualquer direito só existe como resultado da luta por ele. Se um novo direito está colocado, o de não sofrer os danos de uma série de acasos na produção biológica, deixar o mercado definir quem terá esse direito produz conseqüências desastrosas.
Isso mesmo, como no exemplo das companhias de seguro e planos de saúde. Pode-se ter uma lei semelhante, mas ao lado disso devemos lutar por mecanismos que trabalhem na direção oposta.

A questão é bastante complexa. Pode-se imaginar que identificando determinados agrupamentos genéticos indesejáveis, chegaremos a uma dimensão jurídica da genômica, definindo esse material genético como, além de indesejável, criminoso. Existe, todavia, um problema sutil aí: os pais vão ter filhos e vamos tornar um direito da criança que ela resulte da melhor tecnologia genômica disponível na sociedade em determinado momento. Isso significa que os pais não têm direito de se recusar a passar pelo estudo genômico. Isso pode ser compreendido como uma violência contra os pais, porque eles podem ver nisso uma invasão de privacidade. Mas se isto não se transformar em um direito jurídico da criança, ela pode nascer carregando um material genético que outras crianças já não carregarão mais e ter dificuldades de adaptação.

A genômica traz toda uma gama de problemas, escolhas e, esperamos, direitos. É nesse sentido que digo que ela tem a ver com a passagem do nomadismo ao sedentarismo, porque abre possibilidades que não sabemos aonde irão nos conduzir. No exemplo que estou dando desse gene criminoso absolutamente hipotético, teríamos um direito completamente estranho a um sistema jurídico como o nosso: imagine que um laboratório possa vir a pagar uma multa gigantesca a uma pessoa porque no processo de seleção do material genético dos pais, ele foi incompetente e não identificou determinado gene que causa uma doença indesejável.

A genômica não deixa de ser uma revolução informacional, porque o que está em jogo é a informação, é um conhecimento determinado e a modulação e alteração total da sociedade a partir desse conhecimento. Esse conhecimento é quase bíblico, no sentido mítico, abre espaço para um salto qualitativo na condição da espécie humana. As pessoas passarão de uma condição em que coletavam ao acaso os genes, para começar a cultivá-los, por isso a pré-natal é o foco e não os ramos "paleolíticos" (a pós-natal) da genômica.

Pensando estes problemas no Brasil, observamos, de um lado, a tendência crescente na sociedade de consumo, narcisista, de se moldar o corpo, em que gente como Xuxa já produz a Sacha por manipulação ainda não genômica; de outro, o aborto não é legal na imensa maioria dos casos, mesmo naqueles em que a criança nasceria com deficiências muito graves. O choque entre essas duas realidades é brutal.
O aborto é um bom exemplo. Ele é ilegal, mas a parcela da população que tem acesso, pode pagar ou tem informação, quase todo mundo faz. É por isso que não acredito que vá existir algum tipo de ilegalidade "prática" da genômica.

No Brasil há uma sociedade cínica, na qual normativismo ideológico barato é pregado como determinismo científico: quando o Pedro Malan diz "a Turquia entrou em crise, logo...". A economia é uma palhaçada, no sentido de que as previsões que "as autoridades econômicas" – algo como os teólogos medievais especializados em demonologia criminal – fazem, só têm algum valor de ciência para quem é analfabeto em ciência.

A genômica tende a ser, pela forma como a sociedade brasileira está estruturada, um dos mais agressivos instrumentos de violência social que já tivemos. Justamente porque ela pode entrar nesse campo do discurso ambíguo, meio religioso, meio cultural, pelo medo que ela desperta e, ao mesmo tempo, vai seguramente entrar pela porta dos planos de saúde caros e das pessoas de classe social mais alta, que assim como têm acesso a instrumentos médicos mais avançados e vivem mais, vão ter filhos melhores. Sem dúvida, a genômica pode ser um dos infernos sociais mais claros que alguém pode imaginar para o futuro do Brasil.

Como tudo que é agressivo na ciência, o que a genômica revela é a agressividade e violência social que preexiste a ela. Porque ela tende a se ajustar aos vícios ou valores – no Brasil vício e valor são quase sinônimos – que a sociedade tem. O seu resultado social pode ser de uma verticalidade gigantesca.

Uma das coisas que tende a se colocar na genômica é que não se trabalhará só com os genes da família, mas que pode-se introduzir numa sociedade de mercado os genes desejáveis, comprados e vendidos.
Isso vai acontecer, mas é difícil prever quando e como. Não estou pensando nisso como notícia no Fantástico, mas como algo meio banal – você pode ter acesso a determinados genes, que podem custar mais caros ou mais baratos. Tudo depende se a genômica vai ser ou não devorada pela sociedade de mercado – o que tende a acontecer no Brasil, onde tudo é devorado pelo mercado. Uma família mononuclear, um homem ou uma mulher poderão comprar material genético de um parceiro do sexo oposto no sentido de mesclar genes desejáveis, que seriam patenteados e comercializados por determinadas companhias, como a Celera Genomics. A idéia de laço de sangue vai se tornar, mais do que hoje, questionável, frente a laços genéticos adquiridos para garantir o melhor futuro da criança. É evidente a associação entre isso e a idéia da propriedade privada, no sentido do que você compra, tem acesso, tem direito. Isso é o paraíso do capital, no sentido de que ele se apropria da própria matéria viva. É por isso que falo da ontologia, da vertigem. É um horror ontológico porque a genômica parece sacudir todos os referenciais materiais, temporais e morais que temos.

Isso produz uma obsolescência muito profunda das referências de valor, do paradigma moral dominante na nossa sociedade. Como enfrentar isso?
Uma maneira de enfrentar seria ensinar genômica na escola. A genômica é um caso específico do projeto científico ocidental. Podemos fazer discussões sobre isso nas faculdades, escrever teses, artigos, mas continua sendo para especialistas. E grande parte dos especialistas em genética não tem a menor noção do que está fazendo do ponto de vista social e filosófico. Na esmagadora maioria das vezes, quando um especialista da área médica ou genética fala sobre este assunto não percebe em absoluto o foco filosófico, sustenta posições puramente técnicas que têm em geral o efeito de esvaziar a angústia geradora da ação política e social. Muitas vezes quando adentram o campo reflexivo o fazem via temas que não são realmente o problema, como dar mais importância à suposta controvérsia absolutamente circular que caracteriza qualquer discussão acerca da oposição materialismo determinista x livre arbítrio.

O problema é que de um lado estão os pensadores sem conhecimento genético mínimo e do outro técnicos em genética que nada entendem do pensamento reflexivo, que se arvoram em "filósofos" pelo simples fato de conhecerem a seqüência dos genes. O fato de saber construir pontes não faz com que alguém seja capaz de compreender o drama urbano. Mas isso é em parte resultado das próprias ciências ditas humanas que optam pela militância dogmática em favor de uma determinada corrente em detrimento do árduo trabalho de conhecer a tradição reflexiva do Ocidente.

Assim, não vejo como lidar com a genômica do ponto de vista da formação moral senão dentro de uma transformação ampla da escola. Uma coisa é fazer uma espécie de plano de conscientização sobre isso, como uma campanha de prevenção da Aids. Isso é importante. Mas a reforma da educação é indispensável, porque como está hoje, cada vez mais voltada para a técnica e a especialização, não serve para quase nada, só para ocupar (mal) as crianças na escola.

Se a genômica é algo do grau de uma revolução como a agricultura, seria um erro apreendê-la como simplesmente uma técnica. Sabemos que a agricultura existe, mas não temos a mínima idéia da transformação que ela significou na história do ser humano. Se o ser humano fosse nômade seria outro, teria outras doenças, outros hábitos, outra estética, outra cognição. Estamos tendo a chance, com a revolução genética, de empreender uma transição da magnitude do caminho do nomadismo à agricultura, só que dessa vez com todo um aparelho de comunicação, de educação e de Estados, capazes, se quiserem, de prepararem essa passagem de uma forma que as pessoas fiquem menos desnorteadas, que não saiamos da coleta para o cultivo dos genes como a humanidade saiu na revolução neolítica.

Tratar a genômica simplesmente como uma técnica e não fazer nenhuma reflexão social e filosófica sobre ela significa a perda de um grande momento histórico. Ela significa uma expropriação? Sim. Mas também um momento da humanidade se apropriar de seu destino. A genômica é fruto do nosso projeto humanista; dizer que ela não é humanista é cinismo. Não estamos sozinhos no cosmos e somos donos do nosso próprio destino?

Mas isso não responde à questão da mudança da estrutura de valores...
Penso os valores no sentido de uma ética contextual, vendo o ser humano como um ser aberto à história, à sociedade, pensado em contexto. Esse processo é que pode ajudar a sociedade a lidar com a vertigem de valores que a genômica produz. Não vejo outra forma de lidar com o tema que não seja dramática. Tecnicizá-lo é escamotear a transformação social envolvida. É como dizer aos nômades, "alguns de nós vamos ficar parados, cultivando a terra, mas vocês podem continuar catando bichinhos na estrada, porque não há nada de diferente acontecendo". Falamos facilmente a palavra "valor", a produção deste é algo mais complexo. Valor é algo que se dá no diálogo entre indivíduos, na relação; a genômica pode vir a ser apenas mais uma referência da condição do "chique-brega" brasileira, assim como carros blindados para se ir ao cinema. A alteração da grade de valor será dada pela forma como nos apropriamos da técnica, e para isso é necessária uma reflexão um pouco maior do que uma salada de bases púricas com pseudometafísica.

A ciência dá possibilidades de ação, mas não parâmetros morais. A ecologia tem se candidatado a oferecer referências sobre como lidar com o que é a vida, freqüentemente mitificando a natureza. Você fala que uma das coisas que está em jogo nessa discussão é uma declaração de guerra à natureza, é radicalizar o projeto científico e iluminista e socializar totalmente a natureza.
Só existe um conceito de natureza porque existe um ser humano que chamou isso de natureza. Para uma pedra ou um cavalo não me parece existir natureza. A natureza como problema é um problema dos seres humanos porque, se fazemos parte dela, podemos causar danos a ela e a nós mesmos.

Pode haver alguns loucos que digam que qualquer dano que causemos à natureza é um dano causado por ela a si mesma, porque somos pequenos micróbios pensantes dentro dessa ameba gigantesca. Isso não tem sentido, a não ser que essa ameba tenha um plano moral e existam micróbios bons e maus. De forma que toda essa reflexão moral sobre a natureza é sempre complicada. Se somos naturais, como o que fazemos pode ser antinatural? Câncer é natural assim como os naturalóides consideram natural as árvores que falam. O conceito "natureza" ou "natural" me parece complicado para construir moral, uma fria para ingênuos, ou pura má-fé.

Parece melhor partirmos de um ponto de vista pragmático e dizer: "não acabem com a camada de ozônio porque vai nos ferrar". A natureza enquanto funções está aí, ela não é uma deusa, mas temos que tomar certos cuidados, porque podemos causar danos, lá na frente, a nós mesmos. A discussão, no caso dos transgênicos, se dá porque não sabemos quais são os efeitos que eles podem ter sobre nós a muito longo prazo. No caso da manipulação genômica de embriões, em tempo glacial não sabemos o que pode acontecer, que danos ela pode causar à biodiversidade. Podemos tranqüilamente ter uma ecogenômica que trabalhe estas questões. Só que, neste quadro, com o consumo da genômica, teremos um problema análogo ao pensarmos os efeitos, a longo prazo, do uso de antibióticos sobre a espécie humana.

Mas não é dessa maneira que a discussão é normalmente colocada pelo movimento ecológico. O fato de existir um Greenpeace defendendo baleias, diminui a mortalidade desses animais. Mas não estamos falando de matar baleias. O problema da ecologia é que é importante defender as baleias, no entanto, em uma cidade como São Paulo, é o homo sapiens que está em extinção. Neste sentido, o discurso sobre a ecologia é muito ideológico e, em certas áreas do planeta, uma piada.

A ecologia é muito fraca como grade de valores morais. Creio que a grande grade de valores morais é, dentro do cenário de orfandade ontológica e ideológica, a possibilidade do gozo maior possível das minhas funções corporais. Isso é que funciona como grade de valores do projeto humanista do Iluminismo. Que pode, de outro lado, se transformar em um narcisismo completo. Depois da Escola de Frankfurt, sabemos que existe uma dialética entre a ação da ciência e da técnica como emancipação e como dominação. Creio, porém, que a assimilação deste humanismo perverso (o narcisismo) como grade de valores pode ser reversível e devemos apostar nisso. O que temos é uma luta interna dentro da própria herança do Iluminismo.

Ainda que tenhamos de fazer uma reflexão de longo prazo sobre o que a genômica pode ter de reflexos indesejáveis, a minha grande preocupação é não declará-la nossa inimiga. Porque isso é parte do cinismo.

O que seria um programa para concretizar o acesso aos direitos genômicos?
Isso deve fazer parte da plataforma dos partidos e ser debatido pelas comissões e deputados que se ocupam da política científica. As pessoas às vezes pensam na política partidária como a fisiologia do poder. Mas o PT, como um partido que vê o Brasil como projeto, pode e deve debater a questão.

Mas há toda uma outra área, a veiculação e o debate pela mídia, que deve colocar isso como direitos básicos do cidadão, discutir a relação entre os planos de saúde e o patrimônio genético, a relação da formação dos médicos e dos profissionais da área de biologia e afins. Colocar essa discussão dentro da formação dos profissionais como exigência curricular, debater a legislação que regula toda a parte hospitalar do país, o atendimento médico público, a saúde pública.

Do ponto de vista legislativo, é necessário partir de um projeto formulado por pessoas que conheçam o assunto. Porque se chegássemos hoje em Brasília para fazer uma discussão jurídica sobre a genética é provável que grande parte dos políticos preocupados com isso caísse nos erros cínicos, já que provavelmente eles próprios não pararam para fazer uma reflexão sistemática sobre o tema e poderiam, por exemplo, demonizar a genômica. Creio que os instrumentos jurídicos e legislativos tendem a ficar claros na medida em que isso aconteça na sociedade no plano empírico.

Existe um amplo mercado de engenharia genética, do qual os transgênicos são parte. Ela já é um ramo dinâmico da economia capitalista, pelo menos na agricultura e, cada vez mais, na pecuária. Mas mesmo em relação a isso, a discussão mal começou.
Não há visibilidade para essa questão. Provavelmente comemos muita coisa transgênica sem sabermos. Podemos pôr o foco no miojo e, de repente, podemos estar comendo batata transgênica no MacDonald’s.

A genômica tende a se instalar em silêncio. Não é que eu esteja trabalhando com teorias conspiratórias, mas ela se instala pelos hábitos. Alguém diz: "ah, o miojo é transgênico? O que é isso, transgênico?" Acaba virando um nome. Você pode dizer "sou contra alimentos transgênicos... mas tenho quatro empregos, chego em casa às onze da noite, e faço miojo". Será que vai fazer mal a longo prazo? Não tenho tanto prazo assim para viver. Não sabemos, mas o sistema social deixa você fazer da luta contra os transgênicos uma bandeira que pode ser esvaziada pela necessidade real do indivíduo de comer em cinco minutos.

Profissionais de saúde dizem: melhore sua qualidade de vida, quando sentir vontade de ficar em casa, respeite seu corpo. Quantas pessoas no mundo conseguem pôr isso em prática? Isso é que chamo de discussão cínica. Demoniza-se uma coisa, quando na realidade não se analisa o seu contexto. As pessoas comem miojo não necessariamente porque gostam, mas por não terem tempo para cozinhar outra coisa. Se proibirmos o tal macarrão instantâneo de circular, aparecerá coisa semelhante. Ecologia só vale se for social.

Precisamos de uma natureza ágil, eficaz e comprometida com o nosso desejo. E a genômica é essa natureza. É uma natureza voltada para nossas necessidades. Se não conseguirmos fazer uma discussão ampla sobre isso, daqui a alguns anos se estará praticando medicina genômica (principalmente a pré-natal) de uma forma muito tranqüila e as pessoas nem vão se dar conta.

Alguns cientistas, como Dawkins, estão dizendo que, com a genômica, será inevitável que passemos a ter várias espécies humanas. Você acha isso também?
Não acredito em uma relação com a biologia que não seja permeada pelo social. Quanto a podermos vir a ter várias espécies humanas, creio que é um dos corações do problema da genômica. Esta possibilidade é diretamente proporcional à colocação disso como problema social e político. É uma ilusão ou, na maior parte dos casos, uma manipulação ideológica, querer transformar a genômica numa tecnologia pura.

E quanto ao envelhecimento? A expectativa de vida praticamente duplicou no século XX, e uma das promessas da genômica é aprofundar essa tendência. No Brasil, já se está vivendo em média quase 70 anos, em algumas sociedades passa-se dos 80. Como fica se projetarmos a genômica nisso?
A longevidade é um dos aspectos que mais força a tendência da genômica ao uso de genes estranhos ao material genético da própria família – o que seria um caso típico de terapêutica pré-natal. Do ponto de vista médico, existem dois tipos básicos de causas de envelhecimento, compreendido como perda gradual das funções biológicas. Uma é a programação genética que a pessoa carrega no seu próprio material. Existem famílias que têm uma programação genética para a longevidade, com pessoas vivendo 80, 90 anos, muito maior do que outras, nas quais se morre aos 50, 60. As tecnologias médicas alteraram um pouco isso, mas as famílias têm longevidade característica. A outra causa do envelhecimento é o desgaste do aparelho biológico devido à exposição a agentes agressivos no meio ambiente. O tal do acaso ou as condições sociais nas quais estamos inseridos – que, quando desideologizamos o problema, tendemos a dizer que é o "natural".

A procura por genes fora do patrimônio familiar radicaliza o vetor econômico da exploração da genômica. O envelhecimento é o inimigo ontológico da nossa sociedade. As pessoas querem ter 50 anos e parecer que têm 25, o que significa a produção de uma forma sofisticada de retardo mental. Se você tem 50 e pensa como 25, você é um retardado mental...

Há sociólogos dizendo que está existindo uma tendência ao prolongamento da adolescência enquanto modo de vida, enquanto cabeça...
Eu entendo que a adolescência é uma invenção histórica. Imagine que a adolescência pode ir até os 40 anos. E ainda há pessoas que acham que temos acesso à natureza pura! A adolescência, como a velhice, é uma categoria social, são construções antropológicas. A tecnologia genômica tende a entrar nesse universo que busca encurralar o envelhecimento. Ela pode aumentar essa posse das funções biológicas e neuronais, pode fazer que a pessoa aumente sua capacidade reflexiva, nesse sentido pode tornar o ser humano mais inteligente, porque permanece ativo durante mais tempo. Mas hoje isso está contextualmente inserido em uma sociedade na qual as pessoas querem ficar com 60 anos parecendo com a Carla Perez...

Na medida que aumentou o número de velhos, a velhice se tornou uma coisa banal, e se descobriu que muitos velhos não são anciãos sábios. Nas sociedades anteriores, as pessoas que chegavam a uma idade avançada o bastante para acumular uma grande memória, alinhavar várias gerações e perceber alterações no poder, eram muito poucas. Elas funcionavam, então, como depositárias do saber. Hoje, temos outras formas de acesso ao saber e à história.

Depois, mesmo tendo perdido esse lugar no espaço público, o ancião, o avô tinha esse lugar no espaço privado da família. Mas isso também acabou junto com a família (ou tende a acabar). Assim, o problema da velhice transcende a questão da genômica. Mais uma vez, a genômica tenderá a se enquadrar no esquema por meio do qual a velhice é vivida como categoria social desqualificada.

Na medida em que o mercado se apresenta hoje como a única grande arena social visível, em que temos uma sociedade de apartheid, na qual os valores dinâmicos são do consumo narcisista, individualista, da indiferença mútua, do espetáculo, há alguma perspectiva para usufruto dessas potencialidades emancipatórias da genômica?
Tendo a pensar que só um certo jacobinismo resolveria no caso do Brasil. As reformas sociais tendem a acontecer aqui em tempo glacial. A genética é um gigantesco detalhe do drama social do país.Temos, então, dois planos de problema. Há um que é o carlaperismo, a precarização da sociedade e da cultura brasileiras. E existe outro problema mais imediato, o fato do capitalismo ter conseguido delinear, no último período, um sistema de forças do qual parece que o Brasil não tem como escapar. Ou seja, de que ele tem um lugar marginal no esquema econômico mundial e tem de aceitar as coisas como coadjuvante fraco. A posição jacobina, que seria romper com esse acordo, aparece como ilusória. Então, reduzindo o problema, para além do narcisismo contemporâneo, do individualismo e tudo mais que existe na nossa sociedade, dizer que no Brasil acabou a tentativa de construir uma sociedade socialmente menos injusta é papo furado, porque isso não foi tentado.

É claro que estamos abertos à influência do individualismo e do narcisismo. Mas a maioria da população do país ainda merece um bom programa da primeira metade do século 20, no sentido político e social. Produzirmos um esquema social no qual se tenha, por exemplo, uma boa educação pública é uma idéia banal, mas ainda atual. A discussão do individualismo, do narcisismo, dos problemas sociais vai passar por esse crivo. Não acredito nesse papo furado de que a miséria é colorida. Eu acho que é preta e branca.

José Corrêa Leite é editor do jornal Em Tempo e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.