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A persistir o quadro nebuloso da política e da economia nacionais, o grande desafio de 2001 consiste na sua própria travessia. Escândalos e denúncias tornaram-se moeda de troca entre os caciques do bloco governista

 

Os três primeiros meses do novo milênio começaram, e não saíram, do clima carnavalesco (no mau sentido) que tomou conta da gestão FHC. Nesse cenário, o PMDB passou a rasteira no PFL, elegeu Jader Barbalho presidente do Senado, e colocou o quase todo poderoso Antônio Carlos Magalhães, após uma disputa crucial com o inimigo peemedebista, às voltas com acusações, gravações, procuradores e capas de revistas num ataque frontal a FHC.

Confirmou-se, após uma campanha que forrou de cartazes, banners e folhetos todas as paredes internas e até algumas externas da Câmara, expondo o Parlamento brasileiro ao ridículo, a eleição do tucano Aécio Neves para a sua Presidência, deixando o PFL sem as presidências das duas Casas do Congresso. O PMDB manteve como seu líder Geddel Vieira Lima em meio a gozações de colegas que recebiam séries de fitas de vídeo com o nome "Geddel vai às compras", mostrando os gastos da sua família.

Persistindo esse achincalhe no trato da coisa parlamentar, os próximos meses tendem a ser complicados para o lado do governo. É uma imagem "muito ruim, tendo que carregar Geddel e Jader, além dos problemas com ACM e o desgaste de abafar mais uma CPI", constata o presidente do PT, deputado José Dirceu.

A dança dos partidos do bloco governista, ou o aumento da fissura provocada durante as disputas no Parlamento, está apenas no primeiro round, provocando expectativas e adiando decisões. "Como isso vai terminar ninguém sabe – diz o líder do PDT, Miro Teixeira –, tudo vai depender de um conjunto de fatores, a começar pela economia: se ela for bem, esses políticos do bloco se sentirão desestimulados em aumentar a oposição ao presidente, por medo da repercussão eleitoral em 2002", avalia. Em sua opinião, se a economia for mal, eles não contarão com o eleitorado de oposição e vão perder aquele que se orienta pelas ações do governo, via obras, liberação de recursos orçamentários, nomeações etc.

O "se" permeia as análises conjunturais, em especial na questão econômica. Para o líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra, a manutenção ou não da base governista depende fundamentalmente de como vai estar o governo FHC lá para abril, maio do ano que vem. "Se a economia continuar dando sinais de recuperação, se não houver maiores crises, se não acontecer um recrudescimento da crise internacional que venha a ter reflexo no Brasil, e se Fernando Henrique vier a ser um bom eleitor na sua sucessão, será mantida a unidade PSDB+PMDB+PFL", diz Dutra. Detalhe também lembrado por José Dirceu: "é preciso levar em conta que até agora nenhuma divergência foi relativa à economia ou ao rumo para o país, ainda que elas existam dentro do governo, do PSDB e do empresariado". Imaginar os próximos meses é, no dizer de José Eduardo Dutra, "um exercício arretado de futurologia".

O governo FHC, em seus 21 meses terminais, pode ser transformado num grande balcão, acredita o líder do PT na Câmara, deputado Walter Pinheiro. O plano social lançado pelo governo no início de março, durante o tiroteio ACM x FHC, é uma demonstração do mercado persa avistado pelo líder petista. Extraindo verbas da população, de pensionistas, e "até quem sabe da produção", o governo tenta passar uma nova faceta social, lançando programas de grande penetração, mas que têm o propósito de aglutinar forças suficientes para 2002.

Essa força significa "grana" para ajudar na eleição de deputados, governadores, senadores – ou seja, o "velho mertiolate para colocar nas feridas abertas durante o processo eleitoral da Câmara e do Senado", ataca Walter Pinheiro.

Mas esse estilo de disputa pelos postos do poder, que traz a público atos de corrupção tantas vezes encobertos por abafamentos de CPIs, traz à memória brasileira o caso Collor, lembra o cientista político Francisco de Oliveira. "Esses processos podem facilmente fugir de controle, como aconteceu com Collor, a partir de uma denúncia aparentemente desparafusada de seu irmão, reconhecidamente perturbado, mas a bola de neve cresceu...". Semelhante à retirada de dois ministérios do PFL, logo após as denúncias de ACM, recuperados imediatamente, porque ninguém ali está brincando, Chico de Oliveira ressalta que, algumas vezes, "o interessante não é uma bola de neve que cresça por efeito cinético, mas a política que a faz crescer". "Àquela altura – recorda – políticos perceberam a fraqueza do presidente e passaram a cobrar mais pelo apoio, entre os quais os tucanos, que ganharam dois ministérios; a partir daí, a bola de neve cresceu e deu no que deu".

Para a deputada federal Jandira Feghali, do PCdoB, apesar das muitas rachaduras já ocorridas na base do governo, nenhuma chegou a esse porte, "porque deslocou-se de dentro da base do governo uma pessoa do núcleo de poder durante todos esses anos e, particularmente, nesses seis anos de FHC. ACM representa uma fissura muito poderosa, pelas informações que tem".

No período FHC, segundo o Diretório Nacional petista, são pelo menos onze os grandes episódios de denúncias que atingiram o bloco governista e foram abafados pelo Planalto, apesar de todas as iniciativas de investigação, tanto da oposição como do Ministério Público: maio de 95, caso Sivam; novembro de 95, Proer; fevereiro de 96, pasta cor-de-rosa; novembro de 96, precatórios; maio de 97, grampo no BNDES; novembro de 98, dossiê Cayman; janeiro de 99, Bancos Marka e FonteCindam; julho de 2000, sobras de campanha e caso Eduardo Jorge; e, agora, o caso ACM. Alguns desses vieram à tona novamente em março, como o dossiê Cayman, via O Globo e Folha de S.Paulo, e o caso Eduardo Jorge, provocado pelas gravações de conversas entre o senador

Antonio Carlos Magalhães e três procuradores do Ministério Público, entre eles o combativo Luiz Francisco, do Distrito Federal. O mesmo que enfrentou Hildebrando Pascoal e o senador cassado Luiz Estevão se enroscou perante magistrados e setores da sociedade pelo vaivém das justificativas sobre a gravação não autorizada da conversa entre procuradores e ACM.

Mas o resultado desse imbróglio pode ser a ausência do PFL na chapa sucessória do atual bloco governista. Afinal, ACM revelou, por dentro, a quantas anda o país na era FHC.

Na avaliação de José Dirceu, é grave a situação do PFL, já que envolve não apenas suas divisões internas, ACM versus Marco Maciel, mas sua ruptura com o governo e sua posição independente. ACM não é um cacique qualquer, reforça Chico de Oliveira, "ele tem o quarto eleitorado do país e ninguém se elegerá presidente sem os votos da Bahia". Minas é o segundo colégio eleitoral, e ninguém se elegerá presidente com o eleitorado mineiro fortemente dividido. "Trocar Itamar e ACM por Marco Maciel e Jorge Bornhausen é coisa de estrategista tucano", brinca Chico, lembrando a saída melancólica de Itamar Franco da Presidência, "enxovalhado por FHC".

Agora, é ACM que se encontra, pelo menos no momento, em uma posição de "independência, quase de oposição" ao governo, avalia Dutra, além de não estar em "situação confortável em seu estado, porque há dificuldade de unidade no seu grupo". Olhando nessa direção, ACM poderia voltar a ser uma liderança regional, garantindo a unidade de seu grupo e seu poder na Bahia, abstendo-se de ter maior influência no plano federal.

Se o que está valendo nessa disputa é a queda-de braço-interna do PFL e deste com o PMDB, se essa exposição das falcatruas continuar prevalecendo neste primeiro semestre, a oposição deve centrar seus objetivos na apuração das denúncias, caracterizando o que é esse governo, avalia Jandira Feghali. Miro Teixeira acredita que os partidos de oposição estão fazendo tudo certo, ao longo desse período FHC. "Estamos denunciando, atuando, participando do movimento social; dentro do Parlamento vivemos massacrados, somos 100 entre 513 deputados, 17 ou 18 senadores entre 81", conta o líder pedetista, cobrando a unidade da oposição. Afinal, diz, o passado "já demonstrou que essas forças que apóiam o governo, como não se unem ideologicamente, têm uma facilidade muito grande em se reagrupar".

Mesmo com as fissuras e problemas, concorda Walter Pinheiro, "a recomposição do bloco do poder vai ser feita com instrumentos e elementos tão perniciosos e nojentos", que caberá à oposição utilizá-los na campanha 2002, repetindo as eleições municipais de 2000, quando a bandeira da ética prevaleceu.

O governo estaria vivendo então, nessa crise mais ampla, "o fim de um ciclo, de um modelo, o fim de um condomínio", analisa o vice-presidente petista, deputado federal José Genoíno. Nesse momento, afirma, "eles estão reciclando o modelo sem mudar a essência, é, como se diz, mudar sem mudar". Um dos motivos para o "exagero" dessa crise seria a própria insegurança com a proximidade de 2002, porque nas eleições anteriores eles tinham uma perspectiva de permanência no poder e hoje eles não têm certeza de que vão ganhar a maioria, daí o desespero na base governista.

2001 será muito divertido, prevê Chico de Oliveira, que não duvida da tática do PSDB de forçar, por todos os meios, a recomposição de sua base de alianças, reincorporando, quando for possível, ACM.

Entre esses meios, estaria a imagem de Mário Covas. As eleições de 2000 elevaram, todos concordam, a ética e a transparência, "e até mesmo virtudes privadas, como a honestidade, ao primeiro plano da política", constata Chico de Oliveira. "O luto quase nacional pela morte de Covas mostrou que era sua aura de honestidade que deixou a impressão mais forte de seu governo", assim, "uma virtude pessoal transforma-se em varinha de condão para a política".

De uma legenda do bloco governista, o PMDB, o empresário e senador mineiro José Alencar cobra a alternância no poder como único caminho para acabar com o quadro atual de corrupção. Mesmo que seja um pouco demorado, é preciso "acabar com a impunidade, com o roubo, porque de outra forma, os meios para acabar com isso poderão ser não democráticos, o que seria uma pena", diz o senador.