Política

Seminários promovidos pelo Instituto da Cidadania resultam em lançamentos, pela editora da Fundação, dos pequenos livros correspondentes a cada um dos seis temas debatidos

A receita era simples e boa. Primeiro passo: em 1999 Lula convida Antonio Candido para pensar e coordenar, pelo Instituto Cidadania, um processo de debates sobre temas capazes de reacender o interesse e a paixão de nossa militância partidária e sindical.

Já era hora de voltar às discussões quentes que marcaram o nascimento do PT e da CUT. Já era hora de socializar todas as perplexidades frente à situação do país e às inclinações do planeta. Melhor ainda se esses encontros conseguissem trocar certezas estéreis por dúvidas mais fecundas.

Passo seguinte, Antonio Candido convoca mais dois pesos pesados da intelectualidade brasileira de esquerda, Francisco de Oliveira e Paul Singer, para tocarem juntos a empreitada. Reuniões e mais reuniões, consultas, convites e confirmações. O noticiário polêmico sobre o Congresso do PT em Belo Horizonte resolveu as dúvidas quanto à escolha do tema. E nasceram os seminários Socialismo e Democracia, realizados entre abril e junho do ano passado, na sede nacional do PT, em parceria pelo Instituto Cidadania, pela Secretaria Nacional de Formação do PT e pela Fundação Perseu Abramo.

O terceiro passo vem sendo o lançamento, pela editora da Fundação, dos pequenos livros correspondentes a cada um dos seis seminários. Três deles já estão à venda e o quarto está saindo.

Economia socialista
O primeiro volume da série, Economia Socialista, registra a memorável exposição feita por Paul Singer no segundo seminário e os comentários de João Machado, professor de economia na PUC-SP, que já integrou a Executiva Nacional do PT durante muitos anos.

Paul Singer, economista e professor da USP, atua na construção do PT desde a fundação, possuindo currículo de vasta produção intelectual e 50 anos de militância de esquerda. Alinha-se, hoje, entre os que propõem mudanças profundas na maneira de conceber tanto a sociedade socialista, entendida como meta, quanto a estratégia para conquistá-la, construindo-a.

Seu texto parte de uma crítica à visão clássica marxista. Detecta nela não a falta de vigor na denúncia do capitalismo feita por Marx e Engels, nem ausência de brilho teórico em suas construções, mas a presença de um certo reducionismo determinista. Trata-se da suposição de que, garantida a apropriação social da produção, estaria pavimentado o caminho para a superação dos conflitos de classe e – sempre a longo prazo – para a extinção do próprio Estado.

Na leitura de Singer, esse reducionismo teve conseqüências problemáticas quando se tratou de edificar a primeira economia socialista, a partir da Revolução Russa de 1917. Travou-se ali uma disputa radical entre os defensores da autogestão e os da planificação centralizada, correspondendo à alternativa entre concentrar poder de decisão nos sindicatos e nas bases operárias, ou nas estruturas estatais e partidárias.

O duelo resolveu-se pela vitória da centralização estatal. Essa centralização produziu, no curto prazo, a derrota da Oposição Operária dentro do Partido Bolchevique e, ao final de sete décadas, foi apontada como uma das principais causas do colapso comunista.

Criticando a economia centralmente planificada pelas restrições que impõe à possibilidade de escolha dos indivíduos, numa clara recepção da crítica dirigida ao socialismo pelo pensamento liberal, Singer acompanha a evolução do chamado "socialismo real" apoiando-se em dados fornecidos pelo húngaro János Kornai no livro The socialist sistem – The political economy of communism.

A síntese efetuada por Singer aponta no sentido de pensar o socialismo, doravante, como construção radicalmente democrática, tanto no que se refere à natureza do sistema político – amplas liberdades e forte participação popular – quanto à condução da produção econômica – autogestão e cooperativismo como formas centrais do que o autor denomina "economia solidária".

Nesse ponto, o texto de Singer é mais sintético do que em seu livro Uma utopia militante, no qual discorre exaustivamente sobre a importância do cooperativismo ao longo da tradição socialista, dos tempos de Robert Owen (1771-1858) até chegar ao próprio Lenin (1870-1924). A vitalidade do cooperativismo nos dias de hoje estaria comprovada pela longevidade dos kibutzim israelenses, pelo vigor das cooperativas bascas de Mondragón e da Lega, no Norte da Itália, bem como dos muitos empreendimentos brasileiros de hoje, industriais ou agrícolas, autogeridos com êxito pelos trabalhadores.

Singer aposta numa via de transformação econômica gradual, pautada pela convivência entre diferentes modos de produção, como já ocorreu na história do próprio capitalismo. Mas confia em que o setor solidário ou socialista terminará impondo, no transcurso de décadas, sua hegemonia sobre as formas rivais de produção.

Um dos pontos mais polêmicos do seu projeto socialista talvez seja a idéia de se construir uma espécie de "parlamento econômico". Seria esse o mecanismo institucional necessário para assegurar uma democrática discussão entre diferentes empresas autogeridas pelos trabalhadores, num contexto novo, em que o mercado socialista "difere do capitalista porque não é matriz de acumulação de capital privado".

Foi exatamente por aí que entrou a cobrança do comentador João Machado, dono de uma sólida formação marxista, de enfoque mandelista. Machado elogia a fala de Singer mas estranha o longo tempo dedicado à crítica da visão marxista clássica, como se essa ortodoxia tivesse muitos defensores no PT. Para o debatedor, o problema é exatamente o oposto: "há uma tendência crescente dos filiados ao PT no sentido de reduzir o socialismo a uma idéia moral bastante vaga".

Como preâmbulo de sua contestação a Singer, considera um erro "identificar qualquer planejamento centralizado com o planejamento total de todas as decisões da economia e, em conseqüência, com um planejamento totalitário".

A partir disso, sua divergência concentra-se na crítica à defesa do mercado como instituição permanente de uma sociedade socialista. Considera "curiosa" a defesa de um parlamento econômico e repisa a tecla da visão marxista clássica acerca do mercado: sua recusa não se apóia unicamente no problema da anarquia imposta por ele à produção econômica, nem mesmo em sua tendência a favorecer os mais ricos. Mas, sobretudo, no reconhecimento de um fato: o que é racional para o mercado pode muito bem não ser racional para a sociedade.

Os que estão familiarizados com esse tipo de debate notarão que as opiniões colidentes entre Machado e Singer reproduzem, a respeito do mercado, boa parte das idéias manifestadas na rica polêmica travada entre o belga Ernest Mandel, um inspirador do primeiro, e o inglês Alec Nove, autor de A economia do socialismo viável, livro que o segundo costuma valorizar.

No mais, Machado manifestou concordância com boa parte das idéias de Singer quanto aos "implantes socialistas" que podem ser introduzidos desde já na sociedade capitalista, por meio de organismos de economia solidária, bem como por movimentos como o MST, desde que inseridos numa estratégia geral de luta pela superação do capitalismo por meio de "um movimento político-cultural socialista amplo, que lhe sirva de referência e no qual se integrem".

O indivíduo no socialismo

O volume O indivíduo no socialismo refere-se ao debate que teve Leandro Konder como expositor e Frei Betto como debatedor. O primeiro destaque vai para o elegante didatismo do curto texto de Konder, filósofo e veterano comunista que esteve entre os introdutores no Brasil de marxistas heréticos para a tradição stalinista, como Walter Benjamin (1892-1940), Lukács (1885-1971), Agnes Heller (1929) e o próprio Gramsci (1891-1937). Vale registrar como bastante oportuna a decisão editorial de incluir como apêndice desse volume a instigante entrevista concedida por Konder a Carlos Nelson Coutinho e José Corrêa Leite na Teoria e Debate nº 41.

O texto de Konder começa recordando que, desde o começo de sua trajetória, o movimento socialista buscou "combinar as liberdades individuais com o fortalecimento da dimensão comunitária", combatendo o individualismo liberal a partir da compreensão de que somente na igualdade econômica, social, política e cultural reunir-se-iam condições para que "os indivíduos pudessem ser – todos! – verdadeiramente livres".

Lembra, em seguida, que Marx reconheceu como fruto da sociedade burguesa uma saudável autonomização crescente dos indivíduos, mas lamentando o alto preço dessa individualização, expresso na dinâmica competitiva e dilacerante do capitalismo.

Mas Konder reconhece, sem subterfúgios, que a experiência socialista concreta do século XX não conseguiu materializar a proposição marxista de conjugar a livre realização individual com o fortalecimento das dimensões comunitárias na vida em sociedade. Ao contrário, o autor não esconde os graves problemas de cerceamento das liberdades individuais pelo rígido sistema burocrático que se desenvolveu em países como a União Soviética e a China.

O comentário de Frei Betto, expoente da Teologia da Libertação, militante da luta armada contra o regime militar de 1964-1985 e autor de best-sellers como Fidel e a religião, parte de uma saudação a Leandro Konder por sua defesa de um "socialismo personalizante". Frei Betto se alegra com a inspiração cristã da indicação de Konder e concede o devido crédito pelo tema ao filósofo francês Emmanuel Mounier (1905-1950), autor de uma pioneira síntese entre cristianismo e socialismo em Revolução personalista e comunitária (1935) e O personalismo (1949).

O escritor dominicano observa, no entanto, que o título do seminário, realçando o termo indivíduo, soa como camisa-de-força liberal, "como se houvesse necessariamente uma oposição entre socialismo e indivíduo. Prefiro pensar o socialismo e a pessoa, ou o socialismo e a subjetividade humana".

Para Frei Betto, na medida em que não existem pessoas atomizadas, porque "estamos todos num jogo de relações sociais", a real polarização se dá entre liberdade pessoal e a desigualdade. Ao concluir seu comentário, realçando a importância da subjetividade humana na luta pelo socialismo, Betto cita um contista cubano, Onélio Cardozo, numa passagem que traz ecos do marxista peruano José Carlos Mariátegui (1895-1930): "O ser humano tem duas grandes fomes: a de pão e a de beleza; a primeira é saciável, a segunda infindável".

Classes sociais

O volume Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo reúne a exposição de Francisco de Oliveira e os comentários da interessante dupla formada por João Pedro Stédile e José Genoino.

Chico de Oliveira, como é conhecido esse sociólogo pernambucano da USP, trabalhou com Celso Furtado na Sudene, nos tempos de Goulart, e foi o titular da pasta Desenvolvimento Regional no Governo Paralelo coordenado por Lula entre 1990 e 1992. Publicou em 1972 um estudo já tornado clássico, Economia brasileira: crítica da razão dualista, ensaio que valeu como tiro mortal na velha controvérsia teórica da esquerda brasileira sobre a existência de dois brasis e sobre implicações da herança pré-capitalista em nossa formação social.

Em sua exposição, Chico de Oliveira partiu da idéia de que existe uma relação "reciprocamente fundadora" entre socialismo e classes sociais. É somente com o surgimento da moderna classe operária industrial que o problema da desigualdade econômica e social, antigo na história medieval, envolvendo a temática da pobreza, passa a projetar-se na idéia de uma nova ordem, que receberia o nome de socialismo. Ao final de 200 anos de história, o que se conhece ainda hoje como classe operária seria, numa síntese enxuta, a representação de uma interação entre sindicato-classe-partido, sendo o PT a "última floração" dessa tradição.

No marxismo do primeiro momento estava muito clara a idéia de que o proletariado caminhava para tornar-se maioria demográfica. Desde Eduard Bernstein (1850-1932), entretanto, existe também uma crítica à centralidade atribuída à classe operária como sujeito da revolução, nessa corrente de pensamento. No final do século XX, acompanhando mudanças estruturais ocorridas em todo o processo produtivo, cresce a argumentação contrária à centralidade do trabalho contida no marxismo. Francisco de Oliveira lembra Claus Offe, Habermas e Robert Kurz entre os nomes de estudiosos que operam nessa direção. Mas é sugestiva a frase utilizada por ele – "dança frenética das aparências" – como subtítulo de sua análise sobre a reestruturação produtiva hoje em curso, sobre os impactos da microeletrônica, sobre a desindustrialização e sobre as tendências no sentido da informalização.

Na verdade, lembra Chico de Oliveira, o estudo de Robert Castel, "As metamorfoses da questão social", demonstra que está ocorrendo, nas últimas décadas, uma ampla extensão do assalariamento. A essa tendência se soma outra, igualmente importante, de ampliação do tempo de trabalho, que é perceptível na expansão dos serviços 24 horas, nos shoppings centers abertos aos domingos, farmácias, videolocadoras etc. Ao mesmo tempo, as relações de trabalho on line, nas quais o trabalhador fica preso ao celular ou ao pager, quebram a distinção entre tempo de labuta e tempo de lazer. O empregado pode ser interrompido até no seu momento mais íntimo de prazer e privacidade por uma convocação do patrão ou superior hierárquico.

Nesse desencontro entre aparência e realidade, Oliveira segue o conselho de Paulinho da Viola, "faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar", propondo uma nova interpretação para o esquema de Marx, ainda válido, do "exército industrial". Essa atualização é necessária para se chegar a uma justa compreensão da identidade e das potenciais diferenças de interesse entre os vários segmentos desse gigantesco contingente de assalariados. Permanecem vivas, no ano 2000, as bases materiais que impelem à busca de "um novo modo de produção fundado nos próprios valores do trabalho e na sua dimensão civilizatória".

João Pedro Stédile, economista gaúcho com especialização no México, é reconhecidamente a principal liderança nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Preferindo não comentar a exposição de Oliveira, lembrou que a esquerda brasileira já cometeu muitos equívocos na interpretação da problemática das classes. Até os anos 60 e 70, atribuiu-se um peso excessivo ao caráter revolucionário do operariado industrial; o velho Partidão sempre esteve preso a ilusões sobre o papel da burguesia nacional; nem o PCdoB escapou desse esquematismo: inverteu os sinais e passou a ver no camponês a força dirigente do processo revolucionário.

Stédile lembra, em contrapartida, que intelectuais de esquerda como Rui Mauro Marini, Florestan Fernandes e Caio Prado Jr. trouxeram importantes contribuições à superação desses equívocos. Trata-se, agora, de reconhecer os erros presentes também nas interpretações dos anos 90, durante o apogeu do neoliberalismo, a começar pela cooptação vivida pela intelectualidade universitária.

Como exemplos dessa cooptação Stédile condena, com uma coragem elogiável por seguir sem medo na contracorrente da interpretação hegemônica na esquerda de hoje, a valorização de terminologias como sociedade civil ("que escondem a verdadeira face da sociedade"), a defesa da pluralidade ("como se a pluralidade fosse sinônimo de idéias justas e necessárias"), a utilização de idéias genéricas como cidadania ("fazendo com que se esquecesse ou se escondesse por trás dela a contradição que existe em nossa sociedade entre capital e trabalho") e a promoção das questões de gênero e raça como centrais para as transformações sociais.

Nessa crítica, o tom é mais ácido ao se referir às ONGs, tratadas genericamente como criação do Banco Mundial e de outros organismos internacionais, por meio das quais "os intelectuais foram separados da luta de classes para ficarem em uma entidade que não tem compromisso nenhum com a transformação da sociedade". Nesta última carga, é impossível deixar de notar a influência de um ensaio de 2000, "Os intelectuais pós-marxistas e as ONGs", do norte-americano James Petras, intelectual marxista bastante dogmático, que ensina na Universidade Estadual de Nova York.

Ao concluir, depois de apresentar uma lúcida atualização das classes e frações de classe hoje presentes na área rural brasileira, João Pedro realiza uma boa síntese das principais contradições que envolvem o nosso povo. A primeira seria a dependência externa, exigindo um verdadeiro projeto nacional; a segunda seria a contida na oposição capital-trabalho, que não poderá ser resolvida apenas por programas como o da Renda Mínima; a terceira envolveria a questão da democracia, onde o problema da terra desponta como nó principal; por último, Stédile enfatiza o estrangulamento representado pelo monopólio dos meios de comunicação e de difusão cultural.

José Genoino, deputado federal do PT e provável candidato a governador em 2002, possui também invejável currículo de militância política. Foi dirigente nacional da UNE e membro do PCdoB durante muitos anos, tendo sido preso em abril de 1972 na chamada Guerrilha do Araguaia.

Em seu comentário, queixou-se com razão de estar num debate que não se vincula diretamente aos temas que vem trabalhando regularmente hoje. Mas apresentou reflexões muito bem construídas, contestando Chico de Oliveira a respeito da relação reciprocamente fundadora entre socialismo e classe social. "O socialismo, como proposta de organização de uma nova ordem social, econômica e política, é o resultado de atividades teóricas de indivíduos e de ações políticas de partidos, não podendo, portanto, ser entendido como uma substância secretada pela própria classe operária".

No essencial, o comentário de Genoino seguiu a trilha das formulações que vem defendendo há anos, às vezes tidas como heréticas no contexto petista. Trata-se, por assim dizer, de um posicionamento limítrofe entre a defesa um socialismo concebido como referência valorativa e uma radical adesão a uma idéia de democracia que não se confina ao reduto do político, mas abrange também a igualdade econômica e social. O que pressupõe, como propôs abertamente ao finalizar, a necessidade de revolucionar o conceito de revolução.

Paulo Vannuchi, jornalista, é da equipe do Instituto Cidadania e membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate.