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As esquerdas têm de tomar para si a questão da segurança pública, submetendo-a aos valores da solidariedade, da eqüidade e da liberdade

Nada mais estranho, na tradição da cultura política brasileira1, do que defensores socialistas da democracia radical e porta-vozes da opinião progressista falando em segurança pública. De fato, essa preocupação é muito recente e teve sua origem na superação dos dogmatismos e, simultaneamente, na observação mais desarmada, intelectualmente mais sensível, ideologicamente mais aberta e politicamente mais flexível da experiência cotidiana das classes subalternas nas grandes metrópoles brasileiras durante as últimas décadas do século XX. Isso porque os dogmas das esquerdas limitavam nossa percepção da realidade social e nos condenavam a repetir a velha retórica, segundo a qual insegurança, criminalidade e violência seriam problemas tipicamente burgueses, expressões crônicas das contradições do capitalismo e sintomas, reflexos ou conseqüências da opressão econômica, das diferenças de classe e das injustiças sociais. A polícia, por sua vez, seria um ramo central do aparelho repressivo do Estado, condição indispensável para que se exerça a concentração monopolista da força, cuja finalidade se restringiria à imposição do domínio de classe, conforme diziam as teorias consagradas pelo stalinismo.

Ora, se o crime e a violência, realmente, não passassem de conseqüências e se a polícia fosse apenas o braço armado da exploração econômica, preocupar-se com a segurança pública e com as agências institucionais responsáveis pela aplicação das leis significaria capitular ante a ordem burguesa e colocar-se a serviço do aperfeiçoamento da dominação de classe, viabilizando a harmonia aparente que legitimaria o status quo e garantiria sua perpetuação. Ocorre que a adoção de práticas correspondentes a essas crenças acabou cumprindo um papel político paradoxal: afastou as esquerdas dos segmentos sociais mais pobres, aqueles que mais intensamente sofrem os efeitos da exclusão, porque não levou em consideração suas reivindicações e não os ajudou a superar o drama que vivenciam; enfraqueceu os governos progressistas, tornando-os vulneráveis às críticas predatórias dos oportunistas e também às críticas consistentes, uma vez que tornou esses governos impotentes para formular e implantar políticas que respondessem aos clamores do conjunto da sociedade por menos violência; por sua postura defensiva e desqualificadora da insegurança como questão real, urgente, dramática e específica, omitiu-se na luta contra a hegemonia conservadora na esfera temática da segurança e, sobretudo, permitiu e indiretamente contribuiu para que a polícia, de fato, agisse como se não pudesse ser nada mais que o braço armado da opressão social e econômica. Em outras palavras, a profecia sombria e unilateral da teoria que o stalinismo disseminou auto-realizou-se, como que a comprovar, pelo avesso, que sua tese estava certa, quando, na verdade, ela apenas espelhava e contribuía para concretizar os efeitos perversos de seu próprio equívoco.

Vejamos que práticas eram essas às quais me referi como correspondentes às crenças dogmáticas: quando fora do governo, correspondiam às críticas, às denúncias e às cobranças (justificadas e necessárias, mas insuficientes quando se trata de efetivamente resolver problemas, retomar a iniciativa, assumir a liderança do processo e conquistar a hegemonia); quando no governo, se expressavam por meio do imobilismo e da abulia política que forneciam o pano de fundo ideológico para a conservação das velhas estruturas institucionais, herdadas dos governantes anteriores, aceitas acriticamente e repassadas aos próximos governantes. Essa conservação era nuançada pela tentativa de controle da brutalidade policial, o único traço distintivo –honroso, porém insuficiente – desses governos progressistas na área da segurança. A prática, portanto, reproduzia o caráter negativo do discurso: se não fazia sentido enfrentar a criminalidade, definir políticas contra a insegurança e reformar a polícia em benefício da afirmação de um modelo alternativo, democrático-radical, só restava a apatia, que é, afinal de contas, a contrapartida natural do ceticismo ideológico, ditado pela unidimensionalidade teórica e a miopia dogmática.

Com medo de ficar "a reboque do projeto burguês", como gostavam de proclamar os cultores da velha retórica, as esquerdas puseram-se a reboque do projeto burguês no que ele tinha de pior, de mais abjeto, injusto, violento, discriminador e destrutivo: sua política de segurança, que sequer merece esse nome, porque não tem sido outra coisa senão o estabelecimento de uma espécie de cerco sanitário em torno dos pobres, contendo-os com brutalidade em sua cidadela periférica ou nas favelas, para proteger as camadas médias e as elites. Essa prática, além de inócua para a segurança dos setores privilegiados, bloqueou o acesso dos pobres ao mundo dos direitos democráticos, operando, no plano da forma, como o neoliberalismo opera na esfera da substância: dividindo e excluindo, privilegiando e subordinando. A pseudo-segurança imposta pelos governos estaduais conservadores funcionou como elo, êmulo e simulacro da operação econômica, a um tempo reproduzindo seus efeitos e ajudando a torná-los politicamente viáveis.

Uma reforma profunda

Dito isso, proponho a primeira tese: as esquerdas têm de tomar para si a questão da segurança pública, submetendo-a, com radicalidade, aos valores da solidariedade, da eqüidade e da liberdade, subordinando-a aos direitos humanos e demonstrando eficiência no alcance das metas estabelecidas, o que requer profunda reforma das instituições policiais e a reorientação de suas crenças e práticas.

Alguns corolários derivam-se da tese principal:

1. O crime e a violência serão combatidos e seus perpetradores penalizados, de acordo com as leis, sem distinções de classe, cor, identidade étnica, opção sexual ou gênero. A novidade que não hesitaremos em saudar, da qual nos orgulharemos, naturalmente, será o enfrentamento do chamado "crime de colarinho-branco". A novidade a que teremos de nos habituar com esforço, para a qual teremos de nos reeducar e que deveremos assumir com convicção, será o enfrentamento do crime comum, perpetrado sobretudo por indivíduos dos segmentos sociais com os quais nos identificamos e que estamos vocacionados a defender.

2. Isso significa que passamos a considerar inaceitáveis todas as transgressões à lei, no Estado de Direito democrático, entendido como um quadro dinâmico, um processo contraditório, marcado por conflito e pactuação, sempre aberto a avanços rumo a conquistas substantivas e formais dos subalternos, e estruturalmente sujeito à reversão da hegemonia. Quando se diz inaceitável, quer-se afirmar que a história pessoal de vitimização que eventualmente caracterize o perpetrador da transgressão não deve servir de justificativa ou desculpa para comportamentos transigentes e paternalistas por parte das autoridades responsáveis pela aplicação das leis em um governo de esquerda. Claro que em um país profundamente cruel e injusto, como o Brasil, vários comportamentos transgressivos corresponderão a reações desesperadas à privação. Esse fato pode e deve nos levar a compreender as motivações presentes nesses casos, até para lutar contra as raízes do problema. No entanto, essa compreensão não pode substituir a responsabilidade de fazer com que as regras do convívio social sejam respeitadas. Se essa intransigência atinge quem é legalmente culpado mas socialmente vitimado, nem por isso contraria os interesses da maioria oprimida pelas injustiças sociais, uma vez que o respeito às regras do jogo, pactuadas em um processo político razoavelmente democrático, convém àqueles que pretendem organizar-se, participar da vida política e intervir para mudar a sociedade. Quando se diz intransigência, é claro que se supõe que ela seja moderada pela prudência do legislador e dos juízes, aos quais caberá diferenciar e hierarquizar os delitos, suas circunstâncias, seus atenuantes e agravantes – se não o fizer, será função das esquerdas levá-los a reconhecer tais diferenças, com a sensibilidade social indispensável. Por outro lado, devemos pressionar para que se amplie a aplicação de penas alternativas à privação de liberdade, hoje restritas a 2% dos casos de ilícitos penais (na Inglaterra, 80% dos casos recebem penas alternativas, como serviços comunitários). A prisão não ressocializa ninguém, só aumenta o ressentimento, além de ser onerosa e desumana. Deve ser apenas a solução extrema para os casos de crimes violentos, quando o isolamento do criminoso for um imperativo.

3. Os maiores beneficiados por essa postura legalista serão os mais pobres, submetidos, hoje, nas periferias de algumas grandes cidades brasileiras, à dupla tirania de grupos criminosos, traficantes de armas e drogas, e de policiais corruptos, ou seja, também criminosos. O simples império da lei e o fim da impunidade, com o quê concordariam liberais e conservadores de boa vontade, representariam uma verdadeira revolução popular libertadora nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. Favelas sem o despotismo do tráfico e livres da brutalidade ilimitada, do terrorismo covarde e por vezes letal da polícia bandida, se transformariam em espaços abertos à livre circulação dos indivíduos, à livre manifestação das opiniões, à livre organização e à livre participação política. Lazer, esportes, cultura, sociabilidade, vida cívica e religiosa, educação dos filhos em um ambiente de respeito à vida, aos valores comuns e aos direitos civis: apesar da pobreza e das dificuldades, esses bens podem ser alcançados, desde que a lei passe a valer nos morros do Rio.

Portanto, é urgente apresentar à sociedade uma proposta articulada de política pública de segurança. No quadro político-partidário brasileiro, só o PT poderia liderar um processo de inovação radical, aplicando uma política consistente, ao mesmo tempo eficiente e compatível com o respeito prático aos direitos humanos.

O Partido dos Trabalhadores está em condições privilegiadas para aplicar uma política de segurança pública digna deste nome por várias razões. A primeira delas é muito simples: qualquer política séria de segurança tem de ser apoiada por uma política social integradora forte, voltada sobretudo para a juventude pobre, excluída da cidadania e discriminada, que está à margem do mercado do trabalho, da festa do consumo (para a qual, paradoxalmente, não cessa de ser convocada pelas imagens inebriantes e sedutoras da propaganda) e até mesmo do universo simbólico que estrutura os valores matriciais de nossa tradição cultural. Portanto, só um partido intensamente comprometido com a justiça social, a expansão da cidadania, a integração da juventude e o fim das discriminações poderia oferecer as precondições indispensáveis para que uma política de segurança responsável e conseqüente seja implantada.

Em segundo lugar, o PT, por sua história de lutas e de lealdade aos princípios que defende, está em posição confortável para escapar às atrações do oportunismo eleitoreiro e para resistir à tentação do "realismo" político conservador. Por que seria tão importante, para a implantação de uma política de segurança consistente, evitar o "realismo" conservador e o oportunismo eleitoreiro? Por um motivo elementar: reformar as instituições policiais gera resistência dos setores das corporações para os quais é conveniente o caos atual, a desorganização, a falta de dados confiáveis, a precariedade dos mecanismos internos de controle e a ausência completa de critérios e instrumentos de avaliação da performance individual e coletiva. Compreende-se: sem as condições gerenciais mínimas, não há nenhuma possibilidade de que se implante qualquer política modernizadora e saneadora, pois as polícias continuarão reproduzindo suas práticas tradicionais, graças à inércia ou à liderança de interesses específicos. A polícia civil continuará a ser um arquipélago, uma constelação de unidades quase independentes, verdadeira coleção de baronatos feudais, sem rotinas comuns, padrões universais de trabalho, orientação estratégica ou informações sistematicamente compartilhadas. Por sua vez, a polícia militar permanecerá dando mais valor à disciplina interna do que à eficiência, à disciplina e ao respeito à lei no comportamento externo, na relação direta com a população, sobretudo com os mais pobres e os membros das minorias.

Em alguns casos, as resistências transbordam e se convertem em insubordinação. Em situações extremas, degradam-se em terrorismo contra as autoridades que lideram a reforma e contra a população em geral. Essas práticas criminosas visam desestabilizar o governo e barrar o avanço da política renovadora e moralizante. Daí as dificuldades de operar mudanças. Os maus policiais têm considerável poder de fogo, mesmo sendo minoria nas corporações. Sabem chantagear, ameaçando disseminar o pânico ou grampeando telefones de seus superiores para descobrir seus eventuais calcanhares de Aquiles e tê-los nas mãos. O quadro se complica quando introduzimos outras variáveis, como a pressão irresponsável e predatória dos políticos fisiológicos e oportunistas, que apostam no desastre esperando colher frutos eleitorais futuros, mesmo que isso signifique regressão social grave. Nesse contexto tão delicado e complexo, só um governo ética e politicamente firme – amparado por uma coalizão leal e comprometida com valores e metas superiores – pode ousar enfrentar a corrupção policial, o crime infiltrado nas agências de segurança e a prática trivializada da brutalidade racista, classista, misógina e homofóbica. Afinal, só um governo assim aceitaria correr os riscos político-eleitorais envolvidos em tarefas históricas tão relevantes e radicais – mas também perigosas –, quanto a reforma da polícia e a implantação de uma política decente, séria e eficiente de segurança.

A responsabilidade do PT

Os "realistas" de plantão fariam cálculos negativos, que recomendariam o permanente adiamento dos confrontos em nome da estabilidade, da governabilidade, da acumulação de capital político e da conquista gradual e crescente de posições no xadrez político. À esquerda, os realistas citam Lenin; à direita, citam o próprio apetite de poder. Mas a concepção e a prática, no fundo, não se distinguem. Os realistas sentem repugnância pelo tema da ética na política e temem tudo o que possa colocar em risco as posições de poder alcançadas, mesmo que essas posições só façam sentido se servirem à causa dos enfrentamentos temidos. À esquerda, dizem que ética é coisa de pequeno-burguês; à direita, que é coisa de fraco, politicamente incompetente. Na realidade, ambas as posições confundem-se. São, essencialmente, conservadoras. Talvez o PT seja o único partido politicamente importante, hoje, no Brasil, que possa falar de ética com a cabeça erguida, sem demagogia e com convicção – há vários partidos sérios, mas a maioria deles tem demonstrado impressionante flexibilidade ética nas alianças que fazem, o que torna problemáticos e, no mínimo, ambíguos seus vínculos com a questão. Por isso, o PT provavelmente será o único capaz de liderar um projeto de reforma profunda e corajosa da segurança pública, que desperte resistências e precipite reações desestabilizadoras. No entanto, assim como é indispensável firmeza, compromisso com as convicções, é necessário trabalhar com alianças amplas, ou a liderança em pauta se inviabiliza no nascedouro. O importante é que a amplitude das alianças não descaracterize o programa a ser implementado.

Seja por justiça, seja para que um sistema competente de segurança possa colocar-se em prática, seja porque seria indispensável politicamente para isolar os corruptos, seria necessário incluir na agenda da reforma a melhoria das condições de trabalho dos profissionais de polícia. O PT, também nesse aspecto, credencia-se a cumprir a função. Afinal, os policiais também são trabalhadores e o PT pode pleitear a representação de seus interesses legítimos.

Indispensável para o sucesso de uma política de segurança inovadora, eficiente, democrática, transparente, cidadã e participativa é a confiança popular e sua disposição para apoiar as mudanças. Também nesse sentido o PT ocupa uma posição privilegiada, porque não tem experiências de fracasso nessa área, o que poderia credenciá-lo a merecer a esperança popular, se for capaz de apresentar à sociedade um programa de reformas claro, factível, articulado e ousado.

Um programa de ação

Outra tese diz respeito à natureza da política de segurança que, a meu juízo, o PT deveria defender. É uma ilusão considerar possível provocar mudança no comportamento dos policiais apenas com medidas educativas, com aumentos salariais e com a criação de mecanismos internos e externos de controle. Ainda que essas providências sejam essenciais e urgentes, não serão bem-sucedidas se não vierem combinadas com uma reorganização administrativa, que propicie a implantação de um sistema racional de gerenciamento e que determine novas rotinas, capazes de gerar informações qualificadas e automaticamente acessíveis a todos os setores pertinentes da instituição. Redefinindo-se rotinas e informatizando-se o trabalho, diagnósticos adequados, planejamento e avaliações regulares tornar-se-ão possíveis, viabilizando um controle razoável dos procedimentos policiais na ponta. Em outras palavras, o controle da corrupção e da brutalidade policiais, isto é, a moralização do aparelho policial, é indissociável de sua modernização.

Paralelamente à modernização, seria indispensável investir na valorização não apenas salarial do trabalho dos policiais e na criação de instrumentos de participação da sociedade. Um dos bons exemplos de progresso nessa frente dupla é a metodologia conhecida grosso modo como "policiamento comunitário", a qual se tem revelado, nos países e regiões onde tem sido experimentada, uma forma promissora de descentralização, ao transferir responsabilidade analítica e criativa aos policiais nas ruas, ao valorizá-los como seres humanos e como profissionais, ao estimular o diálogo permanente, tornando-os mais próximos da população e, portanto, mais respeitados. Nesse modelo de policiamento, a descentralização, que tende a ser tão eficaz na mudança de comportamentos, pode desempenhar seu papel positivo sem riscos de produzir efeitos perversos, na medida em que a transferência de poder para os policiais nas ruas é contrabalançada pela instauração de mecanismos dinâmicos de supervisão e de articulação estratégica.

Em síntese, parece-me que a agenda do PT para uma verdadeira revolução na segurança pública deveria incluir os seguintes itens2, todos eles organicamente interdependentes e subordinados ao princípio, segundo o qual, é necessário compatibilizar eficiência policial e respeito aos direitos humanos:

1. Modernização das polícias, nos planos gerencial e tecnológico (desburocratização, racionalização das rotinas, mudanças funcionais, sofisticação dos sistemas de comunicação, informatização, criação de bancos de dados, de intranets e de redes virtuais interinstitucionais, desenvolvimento de softwares segundo padrões unificados, introdução de programas georreferenciados, fim das carceragens nas delegacias, integração com os juizados especiais, o Ministério Público e a Defensoria Pública, criação de posições novas nas delegacias, como administrador, recepcionista, assistente social). No Rio de Janeiro, criamos as delegacias legais, justamente com essas finalidades.

2. Revolução na área da polícia técnica, o que exige desburocratização, convênios com universidades, investimento em tecnologias, contratação de pessoal altamente qualificado e treinamento dos quadros atuais, mediante cooperação internacional.

3. Requalificação profissional de todos os policiais, envolvendo formação na área de direitos humanos, especialmente de direitos das minorias. São indispensáveis seminários constantes, oferecidos por entidades da sociedade civil e universidades, sobre racismo, homofobia, misoginia, o Estatuto da Criança e do Adolescente (que jamais foi aplicado a sério e que, sem ser testado corretamente, vem sendo criticado como se fosse a fonte de todo o mal) e a questão ambiental, em sua interface com as leis e a cidadania.

4. Valorização salarial e melhoria das condições de trabalho, envolvendo planos de moradia, planos de saúde familiar, possibilidade irrestrita de ascensão na carreira, mediante cursos e concursos, em ambas as polícias, e oferta regular de atendimento psicológico.

5. Moralização das polícias, por meio de um amplo conjunto de medidas que devem incluir: em lugar das corregedorias, criação de mecanismos internos de controle, desburocratizados e vacinados contra o corporativismo, sob supervisão externa, comunitária e interinstitucional; criação da ouvidoria autônoma, com mandato, recursos e poder para investigar e intervir. É também preciso criar mecanismos de indução positiva, premiando o bom comportamento e valorizando o profissional correto, que investe na própria capacitação e que obtém o respeito das comunidades. A melhoria das condições salariais e de trabalho, assim como a modernização já referida, são peças-chave nesse processo. Com tecnologia simples e barata, por exemplo, já é possível filmar todas as operações policiais, nas favelas e no asfalto, seja em uma blitz, seja em um confronto armado. Pode-se facilmente inferir as conseqüências do uso adequado dessa tecnologia se houver uma estrutura organizacional habilitada a acompanhar os resultados das operações.

6. Participação comunitária é uma condição indispensável para que as reformas se processem com transparência e na profundidade requerida e para que se reconstitua a confiança nas instituições policiais. Suas formas podem ser as mais diversas, desde centros de referência e conselhos comunitários de segurança, até a presença em grupos estratégicos. No Rio de Janeiro, com esse fim, criamos, além de 34 conselhos comunitários de segurança, alguns centros de referência (contra o racismo, a homofobia, em defesa das crianças e dos adolescentes, de defesa da mulher e de proteção ao meio ambiente).

7. É necessário integrar as polícias militar e civil, mesmo nos marcos da legislação atual, que dita a dualidade. É possível fazê-lo, respeitando as especificidades de cada instituição, com um reordenamento das responsabilidades territoriais, fazendo delegacias e batalhões compartilharem responsabilidades e os induzindo ao trabalho comum, nas esferas do planejamento, da operação e das avaliações. Há meios de integrar as respectivas formações profissionais no ciclo básico por meio de vários cursos comuns, mesmo respeitando a diferença das carreiras e dos treinamentos. No Rio de Janeiro, criamos as áreas integradas de segurança e o Instituto de Segurança Pública, exatamente com essas finalidades.

8. É urgente criar uma política de proteção das mulheres, porque elas são vítimas de modalidades específicas de violência e precisam de defesa especial, por meio da ampliação da rede de delegacias especiais de atendimento à mulher (ou delegacias de defesa da mulher), da requalificação de seus quadros profissionais, valorizando-os, e por meio da criação de abrigos e de uma rede de apoio à mulher, em parceria com entidades da sociedade civil, com movimentos sociais e com secretarias estaduais e municipais de Saúde e Educação.

9. É necessário promover a expansão do modelo de policiamento comunitário na PM e a introdução de núcleos interinstitucionais de investigação do tráfico de armas e dos crimes financeiros (lavagem de dinheiro), para que possamos superar a pseudopolítica irresponsável de invasão bélica das favelas (que mata policiais e a população local, sem alterar em nada o funcionamento do varejo do tráfico de armas e drogas), deslocando nossa atenção estratégica para o "atacado" da criminalidade violenta, em suas fontes. Para isso, impõe-se o treinamento especializado dos investigadores.

10. O Programa de Proteção às Testemunhas é uma eficiente criação da ONG pernambucana GAJOP e deve ser estendido a todos os estados da Federação.

11. Se os juízes não se convencerem da importância da aplicação das penas alternativas à privação da liberdade, vamos nos perder nessa rota autofágica do encarceramento, que é onerosa, ineficiente, desumana, não ressocializa ninguém, só alimenta ressentimento e dissemina know how criminoso. Prisões deveriam ser o recurso extremo para aqueles casos violentos que exigem o afastamento da sociedade. Mesmo assim, teriam de ser inteiramente reformadas para se converterem em casas de trabalho, educação profissional e humanista.

12. É indispensável que políticas sociais e mudanças econômicas atuem sobre a juventude pobre, integrando-a à sociedade e lhe oferecendo esperança e referências simbólicas para identificação positiva.

13. É necessário pensar a política de segurança como um conjunto multidimensional e articulado de iniciativas diferentes e simultâneas. Nenhuma ação isolada resolve o problema, mas o conjunto pode fazer uma diferença significativa, reduzindo a violência, a criminalidade e transformando as polícias, que hoje são parte do problema, em parte da solução.

14. É indispensável mudar radicalmente o padrão de relacionamento entre as autoridades de segurança e a população, alterando drasticamente a relação entre essas autoridades e a mídia. Tragédias não se explicam; não se deve ser defensivo; a verdade autocrítica dói e desgasta mas, a médio prazo, recompensa e reconstitui a confiança perdida; todos os dados sobre a criminalidade (não as informações sobre investigações específicas em curso, é claro) são públicos e têm de ser colocados à disposição da mídia e da sociedade, pelos recursos disponíveis, em especial a internet.

15. Finalmente, é preciso passar a ver a política de segurança pública como política social e econômica, não só por seu possível impacto benéfico sobre a sociedade e a economia, mas também porque cada uma de suas iniciativas pode representar, em si mesma e diretamente, a oportunidade de geração de emprego e renda e da prestação de serviços de interesse comunitário. Os batalhões da PM, por exemplo, podem funcionar como centros de educação, esporte, cultura e lazer, acesso a emprego e tecnologia3.

Se o Partido dos Trabalhadores propuser à sociedade brasileira a discussão da política de segurança rapidamente delineada nos itens acima, talvez se fortaleça, eleitoralmente, e, acima de tudo, talvez se credencie a agir com boas chances de êxito em uma das áreas mais delicadas e difíceis de nossa realidade, demonstrando, definitivamente, sua maturidade para governar o Brasil.

Luiz Eduardo Soares é assessor especial de segurança pública da Prefeitura de Porto Alegre