Nacional

A energia está sendo interrompida por falta de investimento em geração elétrica, o que não é um acidente da natureza

A crise foi atribuída à escassez de chuvas pelo presidente da República em dois pronunciamentos em cadeia nacional. Foi um equívoco técnico e um erro de lógica dos assessores que o informaram. O Brasil há muitas décadas utiliza a geração hidrelétrica e após a década de 60 não ocorreu falta de energia elétrica no Sistema Interligado. A hidroeletricidade ultrapassa 90% da geração elétrica e foi tecnicamente planejada considerando a variação das chuvas. Caso contrário, sempre haveria crises nos períodos secos, pela lógica. Não houve crises de energia elétrica porque os reservatórios foram dimensionados para acumulação de água nas usinas hidrelétricas, por até cinco anos. A água nos reservatórios, quando completamente cheios, corresponde à potência média de 235 milhões de kW. O consumo é 305 000 milhões de kWh por ano, que corresponde a uma potência média de 34 milhões de kW. A maior parte do consumo e do armazenamento de água está no Sistema Interligado, que abrange as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Se todos os reservatórios ficassem cheios ao mesmo tempo e se todo o país fosse interligado eles acumulariam água para atender o consumo atual por 235/34 = 6,9 anos. Entretanto, eles não ficam cheios simultaneamente e nem todo o país está interligado. Os reservatórios foram planejados com um modelo que leva em conta a pior seca ocorrida em um período de muitas dezenas de anos. As obras das barragens foram pagas pelo consumidor e pelo contribuinte. Como o consumo cresce ano a ano, é necessário ampliar sempre a capacidade de geração, construir novas usinas, hidroelétricas ou termoelétricas, além de usar alternativas energéticas, como o bagaço de cana e o lixo urbano, promover a conservação para economizar energia aumentando a eficiência, gerar eletricidade distribuída nas empresas usando o gás natural que está sobrando. Nada disso foi feito e foi-se gastando a água que devia ser guardada.

O nível máximo de água nos reservatórios no Sudeste até 94 atingiu sempre mais de 93% da capacidade, mas a partir de 95 declinou, atingindo no máximo 70% em 98 e 59% em 99. O declínio foi mais acentuado no nível mínimo que ficava entre 81% e 64% e passou a 49% em 96 e 19% em 99. Embora 2000 tenha sido pior de janeiro a outubro, foi melhor do que 99 em novembro e dezembro, mostrando que as chuvas não foram más nestes meses. São Pedro foi até amigável. O que alentou o governo a postergar as medidas de racionamento, só agora tomadas. Isto foi um erro, pois devia se preparar para a pior hipótese e não arriscar jogando com a sorte. O armazenamento de água veio se exaurindo há muito tempo, não teve sentido o governo levar um susto com a falta de chuvas.

A causa da crise foi falta de investimentos na expansão, que decresceram: US$ 11,1 bilhões em 89, 7,1 bilhões em 93, 4,5 bilhões em 95 e 6 bilhões em 98. Em conseqüência o consumo veio crescendo mais rapidamente que a capacidade instalada: as duas curvas divergem geometricamente. O mesmo ocorreu com a transmissão, como ficou evidente no blackout de 99. No fim de 2000 e início de 2001, água em excesso vertida em Itaipu poderia ter aliviado a crise economizando água dos reservatórios do Sudeste, mas a 3ª linha de Itaipu não está concluída. A linha da Argentina não pode ser usada devidamente por falta de transmissão do Sul ao Sudeste.

Os economistas da corrente neoliberal opinam que a privatização das geradoras federais ainda não privatizadas evitaria ou resolveria a crise. Mas os grupos que controlam as empresas geradoras e distribuidoras privatizadas, com o dinheiro das tarifas, distribuem dividendos, exportam dinheiro para o exterior a títulos diversos, aplicam em outros negócios e não expandiram o setor na medida necessária. Os consumidores residenciais com a privatização tiveram suas tarifas aumentadas, atingindo por kWh cerca de US$ 100 no Rio, enquanto é US$ 75 em Paris, US$ 63 em Oslo e na casa de US$ 60 e US$ 70 em muitas cidades norte-americanas, em países de salários muito mais altos que o Brasil. Aumentar as tarifas, como pedem os grupos estrangeiros que controlam grande parte da distribuição e parte da geração, é insuportável para grande parte da população. Alguns argumentam que o custo no Brasil é maior, mas não é verdade. Hoje a energia, basicamente hidrelétrica, gerada por Furnas é vendida às distribuidoras por cerca de US$ 20/MWh. A de Itaipu é cerca de 50% mais cara pois metade é paraguaia. A das usinas a gás natural, a maioria privada, será US$ 40/MWh. Com a privatização de Furnas sua energia tenderá ao preço da energia das termelétricas a gás pela lógica do investidor privado, que se apropriará de uma enorme renda.

Já ouvi o argumento de que o problema se deu na geração, privatizada em parte, e não na distribuição grandemente privatizada, logo nada teria a ver com a privatização. Mas as empresas estatais foram enquadradas na política de privatização e não foram autorizadas a investir, como afirmou o ex presidente da Eletrobrás Firmino Sampaio, ao passar seu cargo. Por sua vez, as distribuidoras privadas estão em geral muito abaixo do limite autorizado para geração, poderiam gerar muito mais do que geram, a exemplo da Cemig e da Copel. Apesar de erradamente os contratos de concessão não as terem obrigado a isso, elas poderiam articular com o governo a criação de produtores independentes, para comprarem deles energia de modo a cumprirem sua obrigação de fornecer energia aos consumidores, sob seu monopólio na área de concessão. Elas entraram nos leilões aceitando a regra do jogo que separou a geração da distribuição. Na Califórnia isto trouxe dificuldades para as distribuidoras, obrigadas a cumprirem os contratos com o consumidor. Aqui o contrato foi esquecido contra os consumidores, sem a energia pela qual pagam. A tarifa não paga só a energia presente, não interruptível, mas a energia futura garantida no contrato. Uma analogia é um cidadão comprar uma mobília, pagá-la e o vendedor não a entregar completa por falta de madeira. E elas querem ressarcimento por perdas!!!

Quanto às geradoras estatais, questionava-se sua capacidade de investir. Mas este é hoje um falso problema. Desde a Lei de Desequalização Tarifária de 93, cancelando as dívidas intra-setoriais, elas ficaram ótimas financeiramente. O nível de endividamento destas empresas é de 10 a 15%. Podia ser normalmente de 50% ou mais, havendo um potencial de alavancar recursos. A confissão do fracasso da privatização do setor elétrico ficou implícita no plano de termoelétricas prioritárias, que o Ministro Rodolpho Tourinho propôs aos investidores privados em 2000. Ora, se o mercado funcionasse no setor elétrico não precisaria de plano do governo. Apesar disto, das 49 usinas inicialmente previstas apenas 15 estão de fato andando, das quais 13 por iniciativa da Petrobrás, estatal.

O clima criado na sociedade pode reduzir muito o consumo. O governo joga com esta chance. É viável a medida tomada pelo governo permitindo às empresas negociarem para que uma possa "adquirir" o excesso de redução de outra. No comércio há mais desperdício e os cortes são mais fáceis na iluminação. Embora o maior consumo seja na indústria, deve-se ter o cuidado de preservar o emprego, já baixo no país, embora privilégios tarifários da indústria possam ser revistos.

O mais grave é o setor residencial: cortar o consumo de uma família que gasta de 100 a 200 kWh por mês é duro. Nestas casas o que conta é geladeira, chuveiro elétrico e iluminação. O uso de lâmpadas eficientes seria melhor mas são caríssimas, inacessíveis para as famílias nesta faixa de consumo. Podia haver um programa de fornecimento delas pelas companhias elétricas, deixadas de fora, apesar de serem co-responsáveis com o governo. Todos devemos torcer para o governo acertar e controlar a crise, para a população não sofrer mais ainda, mas devemos exigir a mudança de certas regras e da postura punitiva do governo, que de culpado passou a juiz enquanto o consumidor que é vítima passou a réu.

Luiz Pinguelli Rosa é vice-diretor da Coppe/UFRJ.