Internacional

O mundo assistiu, perplexo, à chegada à presidência de George W. Bush, nomeado presidente com 500 mil votos a menos que seu adversário, Al Gore

Quando George Walker Bush (Dubya para os amigos) tomou posse em 20 de janeiro último, a caravana de limusines que o conduzia passou com dificuldades pela massa de 25 mil manifestantes que, entre gritos e vaias, acusava-o de ter roubado as eleições. Um espetáculo que não se via desde 1973, quando Nixon foi eleito em plena Guerra do Vietnã. Isso porque Bush foi nomeado presidente dos Estados Unidos com 500 mil votos a menos que Al Gore, depois de um mês da recontagem de votos na Flórida, que demonstrou de que maneira milhares de pessoas, especialmente afro-americanas, foram postas à margem de um sistema eleitoral vendido como o verdadeiro exemplo da democracia1 Como é possível? Como pode passar por "compassivo" o governador que mais assinou penas de morte durante seu mandato? Como pode ser apresentado como um exemplo de capacidade de gestão quem fez fortuna graças ao pai e aos amigos do pai, aos quais fez perderem milhões de dólares em um time de beisebol e em uma indústria de petróleo? Como pode falar em reconciliação a um país dividido e nomear um gabinete de reacionários declarados como Ashcroft ou Norton? Como é possível fazer da redução de impostos para os ricos a prioridade máxima de um país cujo índice de pobreza é superior ao do México?

Mas essas coisas acontecem. Ou pelo menos essa era a explicação de Magnólia, ganhador do "Globo de Ouro" em 2000. O filme conta seis estórias inacreditáveis, mas reais, da vida cotidiana na Califórnia, que vão confluindo para um final trágico e cuja principal prova de veracidade é que um dia algo ainda mais imprevisto acontece, chovem sapos sobre a cidade – manchete do jornal do dia em primeiro plano na tela –, o que é decisivo para o desenlace do filme. Talvez Magnólia seja a metáfora da perplexidade com a qual vive uma parte importante da sociedade norte-americana com a chegada à Presidência de Bush filho.

A herança de Clinton

Quando Clinton chegou à Presidência em 1993, os EUA, única potência mundial após a derrocada da URSS, em 1991, proclamaram uma nova ordem mundial, ganharam a Guerra do Golfo – embora tenham sido incapazes de pagar a conta –, tinham a maior dívida externa do planeta, e dois anos de recessão acabaram com o sonho americano de uma melhoria permanente do nível de vida de seus cidadãos.

Em seus oito anos de mandato, Clinton comandou a maior fase de expansão econômica do país desde a 2ª Guerra Mundial, a taxa de desemprego atingiu um mínimo de 4,1%, o excedente orçamentário em 2001 é de 281 bilhões de dólares (incluindo-se a Seguridade Social), a produtividade do setor industrial, em declínio desde 1972, voltou a crescer a partir de 1996. Clinton foi o principal vendedor da idéia de uma "nova economia", de uma nova fase de expansão do capitalismo a partir da revolução informático-tecnológica, com um aumento generalizado da produtividade.

Porém, longe da recuperação, o sonho norte-americano deu lugar a uma sociedade mais dividida social e racialmente: 1% da população recebe 12,2% da renda e detém 34% da riqueza; 9% recebem 21,1% da renda e detêm 34,7% da riqueza; os 90% restantes (e é preciso considerar que o peso do terço superior é determinante) recebem apenas 66,6% da renda e detêm 31,3% da riqueza. Ao aplicar-se o índice Gini, o resultado é de 0,496 para a renda e 0,388 para o patrimônio (cifras 10% superiores às da União Européia e semelhantes às do Panamá ou Venezuela). 12,7% da população vive abaixo do índice de pobreza (10,1% no México), cifra que chega a 36,7% do total de crianças negras e 34% do total de crianças hispânicas.

Se o consumo privado, alimentado pela especulação da bolsa, foi o principal motor de crescimento da economia norte-americana, é preciso assinalar que 48,2% das famílias são acionistas. Entretanto, 42,8% dessas ações são propriedade do 1% mais rico da população, 32,4% dos 9% seguintes e somente 17,8% estão em mãos dos 90% restantes (novamente concentrado no terço superior). Tendo em vista que o endividamento médio privado em relação aos salários é de 103% (frente aos 84,6% em 1989), as conseqüências de um aumento do desemprego, de uma diminuição dos salários ou de uma forte crise da bolsa podem ser dramáticas.

Longe de ter tirado proveito desses anos de vacas gordas para criar uma rede de proteção social, Clinton sofreu sua maior derrota no início de seu primeiro mandato, quando ensaiou, sob a direção de Hillary Clinton, uma limitada reforma do sistema nacional de saúde para estender a cobertura aos setores mais desfavorecidos. Sete anos mais tarde, as pesquisas continuavam mostrando que 77% dos votantes ainda consideravam ser essa uma obrigação não-cumprida do governo federal.

O fracasso da reforma da saúde provocou uma guinada à direita da administração Clinton na busca por um "consenso bipartidarista" com os setores republicanos menos conservadores. Contudo, as conseqüências ideológicas foram dramáticas, especialmente no que diz respeito a questões como a educação, a assistência social, a luta contra a pobreza e a reforma judicial e penitenciária, e lançaram as bases para a ofensiva republicana que apoiou a chegada de Bush à Casa Branca.

Eleito em 1993, Clinton reorientou a política externa do país ao romper com os parâmetros da Guerra Fria. Pretendia criar um novo regime internacional que permitisse a hegemonia dos EUA no mercado mundial, apoiando-se em seu predomínio político no sistema internacional e com o objetivo de longo prazo de assentar tal predomínio em bases econômicas mais sólidas. Sua diplomacia econômica, a prática da globalização, permitiu um crescimento sem precedentes das exportações norte-americanas, na maior expansão do comércio mundial até a data atual (de 4 para 6,6 bilhões de dólares anuais). A Rodada do Uruguai, a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Tratado de Livre Comércio (TLC) com o México e o Canadá, a Apec, os acordos comerciais com a China e a África, o plano de salvação do México em 1995 e a intervenção do FMI e do Banco Mundial, comandada por Summers a partir da Secretaria do Tesouro, nas crises da Ásia e da Rússia eram os elementos de uma estratégia de longo prazo que em oito anos transformou profundamente a situação da economia internacional em favor dos EUA e hierarquizou a concorrência interimperialista, abrindo ao capital os rincões mais remotos do planeta para sua exploração.

Mas as resistências crescentes à necessidade de acumulação do capital norte-americano – das contradições interimperialistas com a União Européia e o Japão aos choques de interesse com a nova oligarquia russa, a burocracia chinesa, as burguesias emergentes do sudeste asiático e da Coréia, até o surgimento das manifestações de rua contra os efeitos sociais e ecológicos da globalização capitalista – acabaram erguendo um muro em Seattle, contra o qual se estatelou a pretensão de uma nova onda liberalizante (com a entrada da China na OMC), que obrigará a nova administração Bush a rever em profundidade a diplomacia econômica de Clinton.

A política externa, que havia sido uma preocupação secundária no primeiro mandato de Clinton, acabou se tornando sua principal atividade. Isto se explica, entre outras razões, pelo bloqueio dos congressistas republicanos a qualquer nova iniciativa interna ou de negociação comercial. Clinton passou de uma concepção reativa às crises na periferia, dominada pela "doutrina Powell"2 – cujo saldo foram os fracassos na Somália ou Haiti em 1989 –, a uma visão muito mais complexa de reconstrução do domínio norte-americano no sistema internacional. O "novo multilateralismo" de Clinton visava a fortalecer e redefinir no pós-Guerra Fria a hegemonia dos EUA na Otan e na Ásia (por meio de uma rede de pactos bilaterais com o Japão, a Austrália, a Coréia e Taiwan e pactos multilaterais como a Asean), limitando politicamente os efeitos da concorrência interimperialista ampliada pela globalização, e dando maior flexibilidade e eficácia à velha política de contenção da Rússia e da China (por meio das negociações para a integração de ambas à OMC e à economia mundial).

Os momentos determinantes foram a crise da Bósnia e de Kosovo na Europa e as crises do Estreito de Taiwan e da Coréia do Norte na Ásia. Nessas regiões prioritárias, Clinton deixou como legado um equilíbrio favorável de poderes solidamente assentado, mas capaz de dar alento a uma autonomia limitada da União Européia que não põe em risco a coesão da Otan, obrigando os não europeus a co-responsabilizarem-se pela gestão das crises na periferia. Entretanto, na terceira região prioritária – o Oriente Médio – em um amplo arco de crises, que vai da Cachemira ao Sudão, o fracasso de Clinton foi patente até o último dia de seu mandato, incapaz de alcançar um acordo de paz palestino-israelense, de desenhar uma alternativa ao bloqueio do Iraque, ou de avançar no diálogo com o Irã. Em menor medida, e de importância secundária, a política dos EUA na África – da crise de Ruanda à guerra civil do Congo – foi incapaz de limitar a instabilidade estrutural da região, provocada pela vertiginosa queda em um abismo de pobreza e de Aids, ao passo que as antigas potências coloniais continuam saqueando seus diamantes, petróleo e minerais.

Os escândalos sexuais ou a corrupção, posta de manifesto pelos indultos firmados antes de deixar a Casa Branca, de certa forma ocultaram o esgotamento e o acúmulo de contradições das políticas interna e externa de Clinton. Em termos eleitorais – mesmo considerando que a participação nas eleições, como é habitual, não superou os 50% dos votantes –, Gore conseguiu uma mobilização sem precedentes do voto democrata, especialmente o negro, que claramente lhe teria dado a vitória não fosse o surgimento de uma alternativa como a candidatura verde e progressista de Nader, a qual refletia nitidamente esses limites da política de "neoliberalismo de rosto humano" da "terceira via" de Clinton. Os democratas perderam não apenas a Presidência, mas também as duas câmaras congressuais e a maioria dos governadores.

Conservadorismo compassivo

O resultado das eleições presidenciais será determinante para a agenda interna da administração Bush. A polarização foi evidente. De um lado, um bloco anti-republicano majoritário (três milhões de votos a mais), que se soma aos blocos progressista (os dois milhões de Nader), sindicalista (59% a favor de Gore, 37% de Bush), negro (90% com Gore, 8% com Bush) e hispânico (2/3 a favor de Gore), que dominam todos os centros da "nova economia". De outro, uma mobilização da elite tradicional republicana, a direita religiosa e a classe operária branca não sindicalizada. Bush e os republicanos têm que reconstruir sua base social a partir do controle das instituições, com uma política ativa que defina um novo centro conservador, cooptando a direita democrata, principalmente a do sul do país, e rompendo com a maioria que votou contra ele.

A chave para administrar esse difícil equilíbrio de interesses conflitantes está em uma mobilização permanente de corte populista. Daí a importância dos centros de estudos e fundações da direita, como a American Enterprise Institute, a Heritage Foundation ou o Cato Institute, para imprimir uma imagem de coerência global ao que não passa de uma somatória de interesses ideológicos reacionários, quando não extremistas. E uma disciplina interna capaz de impor uma hierarquia clara de interesses, da elite da costa leste às igrejas locais evangélicas. As ilusões de alguns setores do Partido Democrata, de que Bush não teria como impor seu programa devido à sua falta de legitimidade, sendo então obrigado a operar uma "co-gestão" no Congresso, já não existem. Como bem assinalou o porta-voz republicano na Câmara de Representantes, Tom DeLay, esta é a oportunidade esperada há uma década para aplicar o programa conservador.

O "conservadorismo compassivo" resulta de uma formulação ideológica de um grupo de intelectuais da direita tradicional, como James Q. Magnet ou Myron Magnet, dos ex-esquerdistas convertidos Marvin Olasky e David Horowitz, e dos católicos neocorporativos como John Dilulio. De modo bastante esquemático, essa tese defende que os EUA estão se tornando uma sociedade cada vez mais polarizada entre uma comunidade regida por valores tradicionais e uma subclasse parasitária e associal, produto da cultura permissiva e das políticas de direitos sociais universais dos anos 60. A subclasse cresceu até ocupar o centro das velhas cidades e trouxe consigo uma cultura de drogas, sexo fácil, criminalidade e dependência da assistência social, a qual só pode ser eliminada com uma reforma radical. O sujeito principal da assistência social não deve ser o Estado e sim as igrejas e as comunidades religiosas, propiciando uma assistência personalizada e direta, transmitindo valores religiosos e obrigando os indivíduos a tornarem-se responsáveis por seu próprio destino, por meio de ajudas pontuais e não de direitos sociais como o salário mínimo, a ajuda a mães solteiras ou subsídios ao desemprego.

O primeiro passo foi a criação – a partir de uma idéia proposta por Olasky – de um escritório de ajuda às igrejas e ONGs religiosas na Casa Branca, para a obtenção de mais apoio federal, comandado por John Dilulio3, que deverá preparar um plano global para o qual conta com 8 bilhões de dólares já previstos no próximo orçamento. Em primeiro lugar, a criação desse escritório fere a Primeira Emenda da Constituição que prega a separação entre o Estado e as igrejas. Em segundo, apesar de toda a verborragia sociológica que acompanha o "conservadorismo compassivo", não há provas empíricas das vantagens da privatização religiosa da assistência social e sim algumas experiências históricas que, há séculos, têm sido comprovadamente negativas4.

No gabinete, o ex-governador de Wisconsin, Tommy G. Thompson, foi encarregado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos de aplicar essa política em escala federal. Com o ex-prefeito de Indianapolis, Stephen Goldsmith, Thompson seguiu à risca a nova filosofia, reduzindo os gastos de seu estado com a assistência social em 84% desde 1993. Seu efeito prático, longe de compassivo, converteu-se em um darwinismo social para a subclasse. De acordo com um estudo da Universidade de Wisconsin, depois de acabar com os programas de ajuda a mães solteiras, 70% delas haviam encontrado um trabalho majoritariamente temporário, mas de cada quatro, três ainda viviam em estado de pobreza, 70% não haviam tido um aumento da renda e 81% continuavam precisando de "cupons estaduais de comida" para sobreviver.

O responsável pela disciplina interna é Karl Rove, que trabalhou no escritório de Hillary Clinton na Casa Branca. Esta mescla de Beria e Torquemada da direita norte-americana levantou, desde 1977, as fichas de todos os aliados e inimigos de Bush, sem nem mesmo poupar os republicanos que estavam na corrida presidencial. Rove fez da chantagem, das fofocas e das campanhas sujas uma prática habitual de Bush e seus aliados, aos quais serviu como diretor de campanha em várias ocasiões, além de introduzi-los na teologia do "conservadorismo compassivo".

Com efeito, Bush entregou a gestão da política interna à direita mais conservadora. Elaine Chao, secretária do Trabalho, vem diretamente da Heritage Foundation, inimiga declarada dos sindicatos; Melquiades Martinez, da Fundação Cubano-Americana, acabou sendo nomeado secretário de Habitação depois de uma carreira de especulador imobiliário e de opor-se às moradias de proteção oficial na Flórida; o secretário de Educação, reverendo Floyd Flake, depois de ter apoiado as políticas racistas de Giuliani, prefeito de Nova Iorque, apesar de ser negro, é um defensor ardoroso da privatização do ensino público em favor dos colégios religiosos; a secretária de Meio Ambiente, Christine Whitman, tem grandes interesses na indústria petroleira, compartilhados com o vice-presidente Cheney, com o secretário de Comércio Evans e com a conselheira de Segurança Nacional Rice, sem contar com o próprio Bush. Se a eles somarem-se um barão do alumínio como o secretário do Tesouro, Paul O’Neill, ou um porta-voz das indústrias farmacêutica e militar como o secretário de Defesa Rumsfeld, veremos que a lista de interesses não é tão diferente da lista da oligarquia russa que governa Moscou, apesar da revolução tecnológica da "nova economia".

Contudo, de todos os membros do gabinete, o mais significativo pelo reacionarismo é o "fiscal geral" John Ashcroft. Sua nomeação parece obedecer a um pacto fáustico de Bush com a direita republicana para derrotar nas primárias John McCain. Defensor ferrenho de uma política penal mais dura, da pena de morte e dos direitos dos estados contra o governo federal (inclusive o direito da Confederação, à época, de manter a escravidão), Ashcroft é um inimigo declarado do movimento pelos direitos civis e das mulheres. Caberá a ele selecionar os juízes federais e, em definitivo, também alguns dos aspectos mais dramáticos da "compassiva" ofensiva conservadora: o ritmo das execuções dos condenados à morte e a eliminação do direito ao aborto.

Corte de impostos para os ricos

O debate sobre o corte de impostos tornou-se o principal eixo da campanha eleitoral de Bush, chegando a ponto de apresentar-se como uma espécie de panacéia contra a recessão econômica. Não obstante, a iniciativa partiu em primeiro lugar dos democratas, que prometeram uma redução fiscal de vários bilhões de dólares às classes médias e menos favorecidas, como forma de distribuir os benefícios do equilíbrio orçamentário, conseguidos, entre outras razões, por meio de cortes substanciais dos gastos sociais. Porém, tanto Clinton como Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, negaram-se rotundamente a tal, deixando Gore desorientado quando Bush começou a acrescentar zeros à sua oferta, até chegar a 1,6 bilhões de dólares em dez anos.

O principal argumento para a redução fiscal é o da luta contra a recessão, alentando o consumo privado. Contudo, o Congresso só poderá aprovar esta proposta no verão e, embora retroativa, seus efeitos só serão sentidos em meados de 2002, depois de quase um ano de recessão. Os cortes seriam de 20 ou 30 bilhões de dólares no primeiro ano, representando, no melhor dos casos, um aumento de apenas 0,5% do consumo, em toda evidência insuficiente para alterar o ciclo econômico.

Seu efeito seria especialmente injusto porque 43% desses cortes beneficiariam apenas o 1% mais rico do país (ainda que só contribuam com 21% dos impostos por renda e salários). No total, os 20% mais ricos se beneficiariam de 71% dos cortes fiscais, e as famílias modestas, de renda anual de 30 mil dólares, não receberiam nada, apesar de pagarem impostos.

A proposta de Bush foi muito criticada ainda durante a campanha eleitoral, a começar pelo "Manifesto" dos 300 economistas. Robert Rubin, secretário do Tesouro de Clinton, demonstrou, no New York Times, a falácia das projeções de Bush para dez anos, com um superávit estimado de 6 bilhões de dólares, que implicaria aumento sustentável da produtividade, apesar da anunciada recessão, transformando a "nova economia" em um autêntico milagre celestial mais que eletrônico.

As pesquisas revelaram que a promessa de corte fiscal foi a principal causa do voto em Bush. Em setembro de 2000, em pesquisa realizada pela Associação de Aposentados (AARP), 74% dos pesquisados eram favoráveis a uma redução de impostos. Mas, ao assinalar as prioridades, 51% aprovavam não o plano Bush, e sim a aplicação dos cortes para melhorar a educação (77%), sanear a seguridade social (69%), financiar o Medicare e ampliar a cobertura de saúde (65%). Apenas 44% manifestaram-se favoráveis aos cortes fiscais individuais; o pagamento da dívida e a defesa tiveram índices ainda menores (39 e 33% respectivamente).

Todas as pesquisas subseqüentes apontam resultados semelhantes, que demonstram até que ponto a resposta à crise social e racial dos últimos dez anos gera angústias profundas na sociedade norte-americana a qual, longe de buscar fórmulas como o "conservadorismo compassivo", aspira a uma ampliação permanente dos direitos sociais universais, que serão o campo de batalha decisivo nos próximos anos.

Redefinir o interesse nacional

Em nenhum outro aspecto os perfis de Gore e Bush eram tão opostos quanto nas relações internacionais. Ao tempo que Gore podia se dar ao luxo de apresentar uma longa lista de sucessos comerciais e diplomáticos enquanto enviado especial de Clinton, Bush era incapaz de pronunciar o nome dos chefes de Estado aliados. Apesar disso, Bush ganhou o segundo debate sobre política exterior, batendo na tecla da necessidade de defesa dos "interesses nacionais" dos EUA frente ao "multilateralismo" e às "intervenções humanitárias" da administração Clinton.

A equipe mais sólida do gabinete Bush é formada por Powell, secretário de Estado; por Rumsfeld, secretário de Defesa; por Rice, conselheira de Segurança Nacional, e por Zoellick, representante especial para o comércio. Todos têm uma ampla experiência nas administrações Reagan e Bush pai e suas posições quanto à política exterior são consensuais. Longe de ser um segredo, esse consenso foi exposto em pormenores antes das eleições.

O conceito de "interesse nacional" torna-se o eixo de uma política realista, herança direta da "Nova Ordem Mundial" proclamada por Bush pai, que implica uma concepção imperial global – embora não em escala universal – da hegemonia norte-americana. De acordo com essa concepção neoliberal, os valores da democracia e do livre mercado encontram sua mais pura expressão nos EUA, centro do sistema internacional, e expandem-se para a periferia desse sistema. Ordem imperial e progresso são uma mesma coisa.

A globalização é um processo objetivo e natural de desenvolvimento do mercado, que beneficia especialmente os EUA, única economia com influência sobre todo o sistema. Mas a globalização encontra-se ainda em uma fase de regiões-continentes protecionistas (TLC, UE, China, Rússia, Japão e sua zona de influência asiática) que deve dar lugar, por meio de novas rodadas liberalizantes que abarquem gradativamente todos os setores econômicos, a uma articulação dessas regiões em torno de um sistema econômico mundial único. Para tal é imprescindível fortalecer a posição dos EUA, aumentando seu poderio militar, seu controle da própria região continental (ampliando o Tratado de Livre Comércio frente aos acordos do México e do Mercosul com a União Européia) e reformando instrumentos de intervenção como o FMI e o Banco Mundial.

No entanto, a expansão do mercado e uma nova era de prosperidade econômica geram tensões tanto internas – pelas conseqüências sociais da modernização – como externas, na periferia mais atrasada histórica e culturalmente. Por isso é preciso uma política de gestão dos interesses dos EUA que seja uma somatória de equilíbrios regionais (Pacífico-asiático, Europa e Oriente Médio), na qual a hegemonia norte-americana seja assegurada por meio de um complexo sistema de alianças como na Ásia (fortalecendo os pactos bilaterais com a Austrália e o Japão, a Coréia do Sul e Taiwan e o subsistema de seguridade da Asean), de uma hierarquia de pactos bilaterais no Oriente Médio (estratégico com Israel e a Arábia Saudita; de cooperação com a Jordânia e o Egito) e da Otan na Europa.

Os EUA devem intervir quase que exclusivamente somente quando seus interesses estratégicos estiverem em jogo nessas regiões, devem evitar um acúmulo de responsabilidades e as intervenções na periferia, "humanitárias" ou não, as quais devem ficar a cargo das potências regionais aliadas, cujas contribuições econômica e militar para a gestão da ordem internacional, sob hegemonia norte-americana, devem ampliar-se.

Os focos de tensão desse sistema imperial são a contenção de três grandes potências regionais, com interesses e valores próprios, que competem com a hegemonia norte-americana em sua própria esfera de interesses: Rússia, China, Índia e, uma quarta menor, mas de igual importância, o Irã. Os EUA devem conter e limitar a expansão dos "interesses nacionais" desses Estados por meio de equilíbrios de poder e alianças regionais, ao mesmo tempo que devem fortalecer as mudanças internas, por meio de sua integração ao sistema econômico mundial. Um segundo elemento de tensão internacional é representado por "Estados terroristas" como o Iraque, Cuba, Líbia ou Coréia do Norte, cujas tentativas de desestabilização do sistema internacional só podem ser contidas com o bloqueio e a força permanentes, evitando que comprem armas de destruição de massa de fabricação própria ou por meio da proliferação interessada e sem controle de potências regionais tais como a China ou a Rússia.

Mais voluntarista que real, essa concepção quer ser uma ruptura com a política exterior de Clinton e quer restabelecer um vínculo com a política externa de Reagan e Bush pai. Entretanto, como toda visão política global, traz conseqüências: em primeiro lugar, ao exagerar nas críticas a certas políticas de Clinton, o "realismo" da nova administração Bush limita sua própria margem de manobra. Assim, Clinton é acusado de não ter levado a cabo uma política de contenção da Rússia e da China, de ter feito demasiadas concessões no terreno econômico e geoestratégico (Chechênia e o Mar do Sul da China), de ter enfraquecido a aliança com as potências européias ao não ter definido claramente os objetivos políticos e militares da intervenção norte-americana no Iraque e no Kosovo, de não ter resguardado os próprios interesses comerciais na América Latina ou na Ásia frente à concorrência da União Européia e das políticas protecionistas regionais, como as de Mahatir, primeiro-ministro da Malásia, ou, finalmente, de depender excessivamente da opinião pública.

Afinal, a realidade é muito mais simples e insistente: a hegemonia norte-americana baseia-se em um status quo cuja manutenção torna-se cada vez mais difícil em função das contradições interimperialistas, da reafirmação de "interesses nacionais" competitivos em nível regional, da definição de zonas de influência privilegiadas, do acúmulo de ressentimentos e resistências e da crise social e ecológica do sistema. A primeira grande prova a ser enfrentada por Bush será o Oriente Médio, com a situação explosiva da Palestina depois do fracasso do processo de paz e a eleição de Sharon. Até o momento, sua única resposta foi bombardear Bagdá, demonstrando um desprezo absoluto por qualquer legalidade internacional, e enviar posteriormente – sem saber muito bem para quê – à região Colin Powell, principal responsável militar pela Guerra do Golfo.

O filho da guerra das galáxias

A renovação do poderio militar dos EUA – até torná-lo invulnerável – foi outro dos eixos centrais da campanha de Bush e um elemento estratégico na concepção da política exterior de sua administração.

Durante a campanha, Bush e seus assessores acusaram a administração Clinton de ter dilapidado a herança militar de Reagan e Bush pai por meio de uma série de intervenções militares "humanitárias" na periferia, alheias aos interesses nacionais (uma a cada nove meses), e de ter reduzido o orçamento da defesa, de 400 bilhões para 295 bilhões de dólares anuais nesses dez anos. Uma redução dos gastos cujo maior impacto recaiu sobre o arsenal, os programas de treinamento e os salários dos militares. Segundo eles, Clinton teria aberto uma perigosa janela de vulnerabilidade na defesa do país.

A proposta de renovação militar de Bush é composta de diferentes elementos, por vezes contraditórios, que respondem a uma somatória de pressões de interesses dos diferentes componentes do complexo militar-industrial norte-americano.

No primeiro deles – a situação do pessoal militar – a acusação lançada contra a administração Clinton é no mínimo discutível. A média do tempo de alistamento subiu de quatro para sete anos, como também o nível educacional da tropa; a seleção é mais severa (35% de não-aprovação no período de treinamento frente aos 25% em 1989). O corte orçamentário impôs uma redução do número de divisões ativas e de brigadas da reserva. Mas a corporação dos marines manteve-se intacta. Tendo em vista que a doutrina Powell ainda vigora, é difícil justificar a necessidade de um número maior de divisões, já excessivas. A administração Clinton já havia orçado um aumento de 45 bilhões de dólares em salários e benefícios; Bush limitou-se a aumentar esse valor em 1 bilhão de dólares, o que significará um aumento linear final de 7%.

O segundo elemento – a renovação dos equipamentos militares – é mais substancial. Desde a Guerra do Golfo, o exército norte-americano vem mantendo a mesma geração de sistemas de armamento, tendo reduzido significativamente seu arsenal, sem com isso ter diminuído seu quase absoluto predomínio tecnológico, logístico e seu potencial de fogo em possíveis situações bélicas.

Mas, nos últimos anos, houve um aumento da pressão das diferentes armas e da indústria militar para uma renovação substancial do arsenal, mais ainda frente às perspectivas de recessão e à concorrência da indústria de armamentos européia. Ainda durante a administração Clinton, a junta de chefes do Estado Maior havia solicitado, para renovação de material, um aumento anual do orçamento de 90 bilhões de dólares por dez anos, o qual foi reduzido a 50 bilhões de dólares pelo departamento orçamentário do Congresso.

A resposta da nova administração Bush, além da promessa imediata de 26 bilhões para pesquisa e desenvolvimento militar, foi ordenar uma "revisão estratégica" da política de defesa ao vice-presidente Cheney, ao secretário de Defesa Rumsfeld e ao presidente da Fundação de Estudos do Pentágono, Andy Marshall. A medida em si não é especialmente original, pois durante a administração Clinton foram realizadas duas revisões desse tipo, e a candidatura de Gore/Lieberman havia aceito a petição de um aumento orçamentário para o Pentágono. Mas a orientação da nova administração Bush é a de abandonar os planos atuais de modernização do arsenal e proceder a uma "revolução militar" por meio de um arsenal de "terceira geração" de armas inteligentes e robotizadas que limite ao máximo o número de baixas possível em caso de conflito armado, tornando invulnerável o território dos EUA aos ataques de possíveis armas de destruição em massa de "Estados terroristas", e que fortaleça a superioridade estratégica frente à Rússia ou a China.

O terceiro elemento da renovação militar é a decisão de impulsionar a Defesa Nacional Antimíssil (NMD), que permitiria aos EUA defenderem-se de um primeiro ataque nuclear e responder aniquilando seu adversário graças a um escudo antimíssil. O projeto, fruto de uma fantasia surgida na administração Reagan – a famosa "guerra das galáxias" – voltou a ecoar na administração Clinton, quando o Congresso determinou a uma comissão presidida por Rumsfeld um estudo sobre a vulnerabilidade nuclear dos EUA. A Comissão Rumsfeld publicou um informe em 1998, assegurando que em cinco anos o Irã, o Iraque ou a Coréia do Norte poderiam estar em condições de atacar o território norte-americano com mísseis nucleares. O diretor da CIA, George Tenet, foi obrigado a desmentir publicamente tais previsões. Mas, no início de 1999, Clinton aprovou o desenvolvimento de um sistema limitado de 100 mísseis NMD no Alasca, para proteger a costa oeste de um possível ataque da Coréia do Norte. Os experimentos técnicos revelaram-se um fracasso, mas a indústria aeroespacial fechou contratos polpudos e o projeto ficou em suspenso até a campanha eleitoral.

Se o arsenal nuclear estratégico e as negociações sobre a limitação de seu uso foram um símbolo do status de superpotência dos EUA e da ex-URSS durante a Guerra Fria e permitiram a coexistência desses dois países graças à capacidade de "destruição mútua assegurada", a nova administração Bush quer fazer da "Defesa Nacional Antimíssil" o símbolo inconteste de sua hegemonia na Nova Ordem Mundial neoliberal, atingindo uma capacidade de destruição assegurada unilateralmente.

Interesses dissociados

Como sinalizou o porta-voz do Ministério da Defesa russo, general Ivashov, o NMD só pode estar voltado, de fato, contra a Rússia e a China, únicas potências com capacidade nuclear real para ameaçar os EUA, embora às custas de sua própria destruição. E, em 16 de fevereiro, para demonstrar a ineficácia de semelhante projeto de defesa, que abriria uma nova corrida armamentista ou obrigaria a China e a Rússia a aceitarem sua subordinação estratégica, a Rússia lançou três mísseis com um percurso de mais de 6 mil km. Um mês antes, ao tomar conhecimento dos planos da nova administração Bush, Putin e Jiang Zemin anunciaram estar negociando um tratado de associação estratégica entre a Rússia e a China, a ser firmado em meados de 2001, em Moscou, para coordenar os programas militar e espacial desses dois países.

A resistência dos aliados da Otan na Europa explica-se não só porque o NMD representa uma clara dissociação de interesses estratégicos, subordinando os da União Européia a um nível secundário – justamente no momento em que a UE tem de convencer a opinião pública sobre as supostas vantagens da força de reação rápida européia, de 600 mil homens, no marco da Otan –, mas também porque requer uma intervenção estatal massiva em favor da indústria aeroespacial e militar dos EUA, em fase de plena competição com o setor aeroespacial e militar. Quando o secretário-geral da Otan, o britânico George Robertson, visitou Moscou em 20 de fevereiro, Putin dispôs-se a compartilhar com a União Européia um sistema móvel NMD de 300 mísseis, supostamente muito mais barato e eficaz, capaz de postar-se em pouquíssimo tempo ao redor das fronteiras dos "Estados terroristas". No entanto, a visita de Tony Blair a Washington abriu uma primeira grande fresta nas resistências européias: a participação da indústria britânica nos contratos de desenvolvimento da NMD.

Embora o possível desenvolvimento prático da NMD se perca no futuro, seus efeitos econômicos e políticos são quase imediatos. Se a "revolução militar" e as armas de "terceira geração" tornarão necessário um aumento anual dos gastos com a defesa de 3 a 4% do PIB, os primeiros orçamentos da NMD supõem um aumento anual desses valores de aproximadamente 18 bilhões de dólares, superando os níveis dos gastos militares da administração Reagan. Se o excedente orçamentário nos próximos dez anos é de aproximadamente seis bilhões de dólares, depois da redução fiscal de 1,6 bilhão, prometida por Bush, o orçamento militar consumiria mais da metade do superávit restante, em um gigantesco plano neokeynesiano, que voltaria a fazer do complexo militar-industrial o principal motor da economia norte-americana. Contudo, a história demonstrou mais de uma vez o perigo de se empregar o setor armamentista como locomotiva da economia. O perigo, neste caso, é ainda mais sibilino, pois nenhum outro país está em condições de competir em uma corrida armamentista com os EUA, que pretendem limitar ao máximo a transferência ao exterior de armamentos de última geração. Nessas condições, e uma vez esgotado o mercado interno, a única saída rentável seria uma nova modernização ou o emprego do armamento existente. Os EUA poderiam dar início a uma nova corrida armamentista... com eles mesmos.

Tradução de Mila Frati

G. Buster é colaborador da revista Viento Sur.

("Dubya" é expressão que reproduz o som W na pronúncia em inglês)

Artigo publicado na revista Viento Sur, nº 55/março 2001.